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sábado, 22 de janeiro de 2022

Avraham Milgram (Tito) responde aos equívocos e argumentos inaceitáveis da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro sobre um tema histórico - Fabio Koifman e Rui Affonso

A Newsletter da Conib – Confederação Israelita do Brasil – publicou recentemente (11/01/2022) uma resenha crítica da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro ao artigo dos historiadores Fabio Koifman e Rui Afonso, num livro publicado a propósito da controversa questão dos vistos concedidos no Consulado do Brasil em Hamburgo por uma funcionária, em 1939-41, que viria a casar-se com o escritor Guimarães Rosa, Aracy Moebius de Carvalho. 

Nessa resenha Tucci Carneiro tece críticas aos dois historiadores que um dos organizadores do livro, o historiador Avraham Milgram, achou tremendamente injustas, mas não apenas isto, totalmente equivocados e indignas de uma resenhista séria. Avraham Milgram tentou que a CONIB publicasse suas observações a essa resenha distorcida, o que a CONIB recusou fazer, para não "aumentar a polêmica", justificaram-se os editores. 

O texto original das críticas infundadas dessa historiadora figura neste URL: https://www.conib.org.br/historiadora-maria-luiza-tucci-carneiro-critica-polemica-sobre-serie-lancada-pela-tv-globo/ (cujo teor é transcrito ao final). Mas a CONIB não quis publicar a réplica do historiador israelense.

Em consequência Avraham Milgram resolveu divulgar suas respostas, que eu recebi, como abaixo. Em nome da honestidade intelectual, publico suas respostas ao artigo, uma vez que a Newsletter da CONIB, tendo feito o agravo, recusou-se a publicar estas respostas.

Paulo Roberto de Almeida


 Resposta à historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro na polêmica sobre a série lançada pela TV Globo, publicada no Newsletter da CONIB em 11 de janeiro de 2022. 

Sou Avraham Milgram, historiador aposentado do Yad Vashem que supostamente não deveria me envolver na "polêmica sobre a série lançada na TV Globo", principalmente por ser um evento que ocorre no Brasil, enquanto eu vivo em Israel. Porém, querendo ou não, me encontro envolvido visto que publicamos, Anat Falbel, Fábio Koifman e eu, o livro Judeus no Brasil história e historiografia – ensaios em homenagem a Nachman Falbel (Rio de Janeiro: Garamond 2021), que inclui o artigo dos historiadores Fábio Koifman e Rui Afonso "Os vistos concedidos no consulado de Hamburgo 1938-1939" pp. 123-156 


 Neste estudo, excepcionalmente documentado, os autores demonstram que todos os vistos outorgados a judeus perseguidos através daquele consulado foram concedidos legalmente de acordo as diretrizes do Itamaraty, pelos cônsul-geral Souza Ribeiro, indubitavelmente antissemita, e pelo vice-cônsul, o prestigiado escritor João Guimarães Rosa que viria a casar com Aracy Moebius de Carvalho, funcionária e secretária do consulado. Um destes vistos concedido a Margarethe Levy, que testemunharia a favor de Aracy no dossiê do Yad Vashem, tinha seu passaporte carimbado com o "J" vermelho, detalhe importante, vejam p. 129, nota 13 e p. 135 do referido artigo. A documentação analisada pelos historiadores, mostra que os procedimentos legais que permitiram a saída de Margarethe Levy, bem como a de outros testemunhos era no entanto desconhecida pela comissão jurídica que reconheceu Aracy como Justa das Nações no início dos anos 1980. Não se trata de inculpar a dita comissão pelo desconhecimento do que hoje nos é revelado pelo artigo documentado em base ao arquivo do Itamaraty, que efetivamente, não se limita a homenagem concedida à Aracy de Carvalho. Diria até que este último é um mero detalhe, importante para a memória e menos para a história. O principal, para aqueles poucos que acompanham esta polêmica, se refere aos procedimentos do Itamaraty, ou seja, a implementação dos vários decretos leis e o emaranhado de diretrizes, ordens, circulares, telegramas que envolviam os cônsules no exterior e não apenas no consulado em Hamburgo no final da década de 1930. Esta complexidade foi destrinchada em grande parte, senão na sua totalidade, no artigo dos dois historiadores o brasileiro Koifman e o português Rui Afonso. Todavia, há questões não resolvidas, que provavelmente jamais serão. Por exemplo, quais foram os motivos que levaram beneficiários de vistos brasileiros legais outorgados em Hamburgo a solicitar o reconhecimento da Aracy de Carvalho como Justa das Nações? Estas e outras questões de teor histórico constituem o trabalho dos historiadores. Saber, conhecer, enriquecer o conhecimento, compreender o comportamento humano, desmistificar crenças e buscar a verdade são a raison d'être de cientistas sociais. É isto que aprenderam nas universidades: questionar, inquirir, escavar arquivos, ler toneladas de papéis velhos, num diálogo constante com o passado para decifrar o presente. Aqui chegamos ao âmago da questão, o confronto e desafio da história vis-à-vis da memória. 

Considerando o estudo publicado de Fábio Koifman e Rui Afonso por um lado e minha expertise sobre o Holocausto por outro, faço os seguintes comentários à crítica da historiadora Tucci Carneiro: 


1. "na mesma ocasião em que foi homenageado o embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas. Ambos, Souza Dantas e Aracy, têm em comum o fato de 2 transgredirem as normas antissemitas das Circulares Secretas impostas pelo governo Vargas a partir de 1937". 


Resposta: Aracy foi homenageada em 1982 e Souza Dantas em 2003, mas o que deve ser salientado é que este último sim transgrediu as normas do Itamaraty a ponto do embaixador ter sido repreendido e enfrentado um processo administrativo, enquanto Aracy nem foi repreendida, e não porque ela agiu na surdina, mas porque efetivamente não houve transgressão da sua parte no que diz respeito às diretrizes que restringiam a concessão de vistos a "semitas". 


2. "Questionar “o heroísmo” de Aracy de Carvalho e a “verossimilhança da narrativa” com a realidade dos fatos, como foi feito em algumas das críticas, pode ainda abrir caminho para o discurso que nega o Holocausto"


Resposta: O trabalho de investigação dos historiadores não tem absolutamente nenhuma relação com a negação do Holocausto, pois a sua pesquisa está inserida na história do Nazismo e da perseguição aos judeus, da política de teor antissemita de restrição a sua entrada no Brasil, e na análise dos procedimentos de concessão de vistos do consulado brasileiro em Hamburgo. Onde exatamente se encontra a má fé e o antissemitismo que motivaria os negadores do holocausto? Seria o caso de verificar no google o que significa negação do Holocausto. Me admira a falta de compreensão de algo tão simples e evidente, além de constituir uma acusação difamatória contra os historiadores Fábio Koifman autor do livro sobre o embaixador Luís de Souza Dantas e Rui Afonso, autor de obras sobre o Justo português, o cônsul Aristides de Sousa Mendes (Um homem bom e Injustiça). 


3. "A historiografia brasileira tem comprovado com base em documentos pesquisados junto ao Arquivo Histórico do Itamaraty que, ao facilitarem os vistos de imigração aos judeus perseguidos pelos nazistas, os diplomatas e funcionários brasileiros em missão no exterior corriam risco de vida, de prisão e, até mesmo, de perderem seus cargos sob pena de sofrerem um processo administrativo como ocorreu com Souza Dantas"


Resposta: Absolutamente errado. Nenhum diplomata brasileiro correu perigo, seja porque usufruíam de imunidade diplomática, seja por conta da Judenpolitik da Alemanha Nazista que visava escorraçar os judeus do território alemão. Nenhum diplomata estrangeiro correu perigo por auxiliar os judeus perseguidos. O cônsul chinês em Viena, Feng Shan Ho, concedeu centenas de vistos para judeus que lhes possibilitaram entrar em Shanghai ao mesmo tempo em que Eichmann se empenhava dia e noite para expulsá-los da Áustria. Eichmann certamente ficou feliz com o procedimento do cônsul chinês, bem como do cônsul-geral dos EUA, John Wiley, que ao testemunhar a brusca e violenta perseguição contra os judeus nas ruas de Viena buscou explorar ao máximo as possibilidades de ajuda humanitária aos requerentes de vistos, empenhando-se em agilizar e facilitar o processo de aprovação desses vistos sem infringir as normas estabelecidas pelo State Department. Algum deles sofreu por isto? Nenhum, com exceção do cônsul português Aristides de Sousa Mendes e o embaixador brasileiro Luís de Souza Dantas, porém não pelos nazistas, foram justiçados por Oliveira Salazar e Getúlio Vargas. 


4. "E, se até o presente momento, conhecemos apenas alguns nomes daqueles que conseguiram os “vistos de salvação” com a ajuda de Aracy, é pelo fato dela não ter autorização para assinar os documentos diplomáticos por ser funcionária da sessão de passaportes do Consulado Geral do Brasil em Hamburgo". 


Resposta: É claro que Aracy não estava autorizada a assinar passaportes, visto que era secretária. No entanto, com os resultados da pesquisa de Koifman e Afonso, conhecemos um número grande de nomes, as circunstâncias e o modus operandi da concessão de vistos brasileiros, todos legais, (vejam pp. 154-156), procedimentos que Aracy não esteve envolvida. 


5. "Aracy, além dos vistos, conseguia forjar passaportes sem o “J” vermelho que, se mantidos, denunciariam a identidade judaica do seu portador às autoridades consulares e nazistas"


Resposta: Absolutamente errado. Mesmo aqueles judeus que testemunharam alegando que Aracy "forjava passaportes sem o 'J' vermelho", entraram no Brasil com o 'J' vermelho nos seus passaportes, inclusive aqueles poucos que solicitaram seu reconhecimento no Yad Vashem. Aracy forjava passaportes sem o 'J' vermelho? Efetivamente, nas toneladas de livros de história sobre o Holocausto jamais foi mencionado ou reconhecido algo do gênero. E os nomes "Sara" e "Israel" apostos nos passaportes com o mesmo objetivo de identificar a origem judaica dos seus portadores? Pergunto, Aracy também fazia-os desaparecer dos passaportes dos judeus? Se assim fosse, seria porque haviam filo-semitas, corruptos ou antinazistas no ministério do Interior do 3o. Reich...! Nem um e nem outro. Não tenho outro termo para definir este argumento senão fake news


6. "No entanto, se contabilizarmos as assinaturas do cônsul Guimarães Rosa nas Fichas Consulares de Imigração emitidas entre 1938 e 1942, certamente teremos uma dimensão aproximada dos judeus salvos pelo casal. Algumas destas fichas estão disponíveis na Base de Dados Arqshoah: www.arqshoah.com." 


Resposta: O fato das assinaturas de Guimarães Rosa constarem nos passaportes não atesta que estes vistos foram outorgados ilegalmente contra as diretrizes do Itamaraty, para um melhor entendimento, é necessário ler o artigo dos dois historiadores acima mencionado. 


7. "Pergunto: os críticos negam (ou desconhecem?) a veracidade dos testemunhos sob a guarda do Yad Vashem, assim como as gravações realizadas pelo projeto coordenado por Steven Spielberg junto a Shoah Foundation, as pesquisas da historiadora Mônica Raisa Schpun (autora do livro “Justa”) e as entrevistas gravadas pela equipe Arqshoah/Leer-USP?" 


Resposta: Muito pelo contrário. Os historiadores não só não negam os testemunhos como estes últimos corroboram e comprovam o que Koifman e Afonso alegam sobre a legalidade dos vistos concedidos aos autores dos testemunhos. Por exemplo, na p. 135 (idem nas pp. 146-147): "Não por acaso, no depoimento de Margarethe Levy, que se encontra no dossiê do Yad Vashem, ela mencionou o depósito que o casal realizou em troca da concessão de um visto, como também a transferência de valores de outros judeus alemães que obtiveram visto naquela oportunidade, exatamente os que o cônsul informou e solicitou instruções ao MRE. Mais do que isso, Souza Ribeiro ainda anotou nos passaportes do casal Levy, conforme as ordens que recebeu: Temporário—Visado conforme o que dispõe o artigo 280 do decreto no. 3.010, de 10 de agosto de 1938. Temporário para ser regularizado no Brasil. Foi efetuado o depósito de 98:860$000 (noventa e oito contos, oitocentos e sessenta mil reis) no Banco do Brasil em S. Paulo, dinheiro proveniente do Estrangeiro, conforme carta de 26-9-1938 desse Banco, arquivado neste Consulado Geral. (Ass.) S. Ribeiro"

Quem não conhece e nega os conteúdos dos testemunhos do dossiê do Yad Vashem é Tucci Carneiro. Mas nunca é tarde para conhecer e estudar este dossiê, assim como a documentação do Itamaraty! E não seria demasiado a Tucci Carneiro ler (e aprender) com o artigo mencionado, nem que fosse para tomar conhecimento da seriedade, profundidade e densidade documental que há nele, e jamais julgar às cegas. 


8. "Ressalto aqui o valor pedagógico da série Passaporte para a Liberdade que, certamente, serve de alerta para os perigos do antissemitismo assumido como política do Estado alemão entre 1933-1945, e reforça a importância da solidariedade em tempos sombrios." 


Resposta: Este é um ponto a favor de Tucci Carneiro que ela soube pontuar. Como ultimamente a Globo afirmou, se trata de uma série de ficção, e neste contexto, como Tucci Carneiro, eu também estimo o valor educativo da minissérie televisiva para informação e formação ética e civil das gerações de hoje e futuras. O que incomoda a autora da crítica à crítica é a desmistificação da concessão ilegal de vistos referida à Aracy, que enfraquece o teor historiográfico - ideológico e denunciativo - de Tucci Carneiro que etiquetou a predominância absoluta do antissemitismo nas elites políticas do Estado Novo. Todavia, se o leitor quiser compreender como foi possível a presença do discurso oficial sigiloso antissemita (ideologia) no milieu do Itamaraty e consulados no exterior, paralelamente a predominância de muitas ambiguidades e da permissividade relativa na concessão de vistos (práxis), o artigo de Fabio Koifman e Rui Afonso é um prato cheio. Exemplo de historiografia inteligente e honesta. 


Avraham Milgram 


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Historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro critica polêmica sobre série lançada pela TV Globo

A recente polêmica sobre a série Passaporte para Liberdade, lançada pela TV Globo em 20 de dezembro de 2021, coloca em dúvida as ações salvacionistas de Aracy Moëbius de Carvalho reconhecida como “Justa entre as Nações”. Este título lhe foi concedido pelo Yad Vashem em Jerusalém, em 8 de julho de 1982, na mesma ocasião em que foi homenageado o embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas. Ambos, Souza Dantas e Aracy, têm em comum o fato de transgredirem as normas antissemitas das Circulares Secretas impostas pelo governo Vargas a partir de 1937.
Questionar “o heroísmo” de Aracy de Carvalho e a “verossimilhança da narrativa” com a realidade dos fatos, como foi feito em algumas das críticas, pode ainda abrir caminho para o discurso que nega o Holocausto.
A historiografia brasileira tem comprovado com base em documentos pesquisados junto ao Arquivo Histórico do Itamaraty que, ao facilitarem os vistos de imigração aos judeus perseguidos pelos nazistas, os diplomatas e funcionários brasileiros em missão no exterior corriam risco de vida, de prisão e, até mesmo, de perderem seus cargos sob pena de sofrerem um processo administrativo como ocorreu com Souza Dantas. E, se até o presente momento, conhecemos apenas alguns nomes daqueles que conseguiram os “vistos de salvação” com a ajuda de Aracy, é pelo fato dela não ter autorização para assinar os documentos diplomáticos por ser funcionária da sessão de passaportes do Consulado Geral do Brasil em Hamburgo. Na documentação do Arquivo Histórico do Itamaraty no Rio de Janeiro, não há indícios do envolvimento direto de Guimarães Rosa com as ações salvacionistas de Aracy, pois certamente, os devidos cuidados foram tomados pelo casal, tendo em vista as restrições impostas pelo Itamaraty. Aracy, além dos vistos, conseguia forjar passaportes sem o “J” vermelho que, se mantidos, denunciariam a identidade judaica do seu portador às autoridades consulares e nazistas.
No entanto, se contabilizarmos as assinaturas do cônsul Guimarães Rosa nas Fichas Consulares de Imigração emitidas entre 1938 e 1942, certamente teremos uma dimensão aproximada dos judeus salvos pelo casal. Algumas destas fichas estão disponíveis na Base de Dados Arqshoah: www.arqshoah.com. Aliás, este é o contexto histórico que dá sustentação à construção da narrativa   da série Passaporte para Liberdade criada por Mario Teixeira com a colaboração da inglesa Rachel Anthony e a direção de Jayme Monjardim.
Ainda que baseada em fatos reais registrados pelo Yad Vashem, uma novela ou filme tem a permissão de adentrar ao campo da ficção, desde que não abra caminhos para o negacionismo e não fragilize o valor dos testemunhos dos sobreviventes do Holocausto.  Sabemos que a narrativa da série Passaporte para Liberdade baseou-se nos testemunhos registrados no Yad Vashem e em documentos pesquisados no acervo da família Tess para reconstituir a história de Aracy e de Guimarães Rosa em Hamburgo, Além destes registros, recorreram também à assessoria de historiadores e sobreviventes do Holocausto com o objetivo de evitar a distorção dos fatos e favorecer os discursos negacionistas que atentam contra a veracidade do Holocausto.
Ao colocarem em dúvida as ações salvacionistas de Aracy (tratadas como “mito” por falta de comprovação), extrapola-se o campo da crítica historiográfica, investindo contra o valor dos testemunhos daqueles que foram salvos graças aos vistos concedidos (e assinados) por Guimarães Rosa durante o período em que ele esteve à frente do Consulado Brasileiro de Hamburgo: 1938-1942. Pergunto: os críticos negam (ou desconhecem?)  a veracidade dos testemunhos sob a guarda do Yad Vashem, assim como as gravações realizadas pelo projeto coordenado por Steven Spielberg junto a Shoah Foundation, as pesquisas da historiadora Mônica Raisa Schpun (autora do livro “Justa”) e as entrevistas gravadas pela equipe Arqshoah/Leer-USP?
Como já escrevi, “os caminhos de liberdade abertos por Aracy e Guimarães Rosa garantiram a preservação da vida de milhares de cidadãos que, naquele momento, emergiam como vítimas da ignorância nazista. Pelas trilhas dos excluídos transitaram grupos heterogêneos que, segundo a classificação totalitária, não eram dignos de continuar vivendo na sociedade alemã. As intermináveis filas de refugiados nos oferecem uma verdadeira tipologia da exclusão, delineada pelo emprego da violência, do terror, da pseudociência, da censura e da mentira, entre tantos outros artifícios totalitários.”
Ressalto aqui o valor pedagógico da série Passaporte para a Liberdade que, certamente, serve de alerta para os perigos do antissemitismo assumido como política do Estado alemão entre 1933-1945, e reforça a importância da solidariedade em tempos sombrios.

domingo, 8 de agosto de 2021

Livro: Raymundo Souza Dantas: o primeiro embaixador brasileiro negro - Fabio Koifman

Um livro exemplar, por um dos grandes historiadores do Brasil:

 

Biografia resgata história do primeiro embaixador negro do Brasil e joga luzes sobre racismo na diplomacia nacional 


Nordestino e de família pobre, o escritor Raymundo Souza Dantas foi primeiro negro nomeado embaixador, sob críticas da elite; pessoas declaradamente negras ainda são minoria ínfima entre os que ingressam no Instituto Rio Branco 

 

Thayz Guimarães

O Globo, 08/08/2021 

 

O embaixador Raymundo Souza Dantas 

Foto: Foto Luis Alberto / Agência O Globo/21-10-1971 

 

Nordestino de origem pobre e analfabeto até os 18 anos, Raymundo Souza Dantas (1923-2002) foi o primeiro negro a figurar no alto escalão da diplomacia brasileira. Sua nomeação pelo então presidente Jânio Quadros a embaixador do Brasil em Gana, em 1961, foi saudada por movimentos progressistas, mas também foi alvo de intensa campanha difamatória por parte da elite nacional, ressentida com a pressão para abandonar sua postura racista — ao menos de forma escancarada — nos anos do pós-guerra, quando veio à tona o genocídio de milhões de judeus pelo Estado nazista.




No livro Raymundo Souza Dantas: o primeiro embaixador brasileiro negro, lançado neste ano pela Saga Editora, Fábio Koifman, professor de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), resgata esse capítulo quase esquecido da diplomacia brasileira e joga luzes sobre o racismo existente na carreira, com um número diminuto de diplomatas negros tendo conseguido atingir os cargos mais altos até hoje.


‘Democracia racial’

Segundo o autor, o Brasil dos anos 1960 gostava de se apresentar como uma “democracia racial”, supostamente livre de preconceitos de cor. Mas isso não significava que as estruturas sociais haviam mudado de fato. Os exemplos de racismo que passaram a ser abertamente discutidos a partir de 1945 ainda persistiam, como a falta de negros nas escolas de oficiais das Forças Armadas e no Itamaraty.

— Em 1961, a elite brasileira já não podia dizer abertamente qual era o problema da indicação de Raymundo para um posto historicamente reservado à nata da sociedade — afirma Koifman. — Como pegava muito mal dizer que ele não servia como embaixador porque era negro, o argumento adotado foi que ele não era ninguém, não tinha expressão como intelectual, jornalista ou escritor, o que também não é verdade.

Nascido em 1923 na pequena cidade de Estância, interior de Sergipe, a 66 quilômetros de Aracaju, Raymundo Souza Dantas aprendeu sozinho a ler e a escrever nos fundos de uma oficina tipográfica onde trabalhou no Rio. Entre meados dos anos 1940 e início dos anos 1960, seu nome já era conhecido na imprensa carioca, com publicações em diversos veículos, entre eles a revista ilustrada O Cruzeiro, editada pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, e o jornal Diário Carioca, onde se tornou próximo de figurões como Nelson Rodrigues e Otto Lara Resende.

No livro, Koifman destaca uma publicação de 1946 do jornal A manhã que cita autores relevantes e promissores, incluindo Souza Dantas, que aparece ao lado de uma jovem Clarice Lispector e de Antonio Candido, mais tarde considerado um dos maiores críticos literários do Brasil.

— Souza Dantas foi nomeado embaixador na mesma leva que o escritor Rubem Braga e o pintor Cícero Dias, ambos também de fora da carreira diplomática. Mas nenhum deles foi tão pesadamente criticado como Raymundo, que era negro, pobre e de família nordestina desconhecida, tudo a que as elites, principalmente as do Rio de Janeiro, tinham horror — afirma Koifman.

Além das críticas diretas que Souza Dantas recebia, especialmente de pessoas ligadas ao Instituto Rio Branco — criado em 1945 para formar diplomatas profissionais —, muitas histórias também foram inventadas a seu respeito, como conta o autor de “O primeiro embaixador brasileiro negro”.

A talvez mais célebre delas dizia que o agrément do brasileiro pelo governo de Gana havia demorado muitíssimo porque Acra tinha se ofendido com a indicação de um negro para comandar a embaixada do Brasil no país, uma democracia africana recém-fundada após a independênca do domínio britânico, em 1957.

— Durante a minha pesquisa, descobri que a historiografia incorporou mitos e boatos que circularam à época e foram sendo repetidos como verdades — afirma Koifman. — No caso do agrément, a aprovação de todos os indicados de fora da carreira foi demorada. A do Rubem Braga, por exemplo, chegou muito depois da de Raymundo, e a do Cícero Dias nem sequer chegou, tanto que ele acabou nem indo para o Senegal.



 Dança com Nkrumah

Outra história inventada, mas repetida nas biografias de Souza Dantas, diz o autor, foi a de que o presidente de Gana e líder político pan-africano Kwame Nkrumah se recusou durante três meses a receber o brasileiro e que, depois de ter concordado com o encontro, o teria maltratado por esperar um tratamento igual ao das embaixadas europeias, para onde eram direcionados diplomatas brancos.

— Essa é uma das grandes mentiras que inventaram contra ele. A recepção oficial de Raymundo em Gana demorou apenas oito dias, e as fotos revelam que ele chegou a dançar com Nkrumah, uma honraria concedida a poucos na cultura local. A rainha Elizabeth II dançou com Nkrumah! — contou Koifman. — A verdade é que a elite brasileira colocava na boca dos outros os seus próprios preconceitos.

Com a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, a missão de Souza Dantas em Gana, que nunca recebeu apoio suficiente — não tanto por ele ser negro, mas mais por ser na África, ressalva Koifman —, terminou de naufragar. Seu retorno para o Brasil, no entanto, ocorreu somente em julho de 1963, depois de um duro período de restrições financeiras, a ponto de a embaixada precisar cortar funcionários e atrasar salários.

Em 2002, o ano da morte de Souza Dantas, o Instituto Rio Branco implantou o Programa de Ação Afirmativa (PAA), um esforço pioneiro de diversificação do funcionalismo brasileiro por meio da concessão de bolsas-prêmio para negros que queiram ingressar na carreira diplomática. A esse programa somou-se, em 2014, a Lei 12.990, que garante ao menos 20% de negros entre os aprovados em concursos públicos.


Sem sucessores

Porém, passados 60 anos da nomeação do escritor, o cenário pouco mudou na diplomacia brasileira, com um número diminuto conseguindo atingir o topo da carreira.

O Ministério das Relações Exteriores disse ao GLOBO não saber o número exato de negros em seus quadros, porque não há um formulário perguntando a cor da pele dos funcionários. Levantamentos feitos por Koifman, no entanto, apontam que apenas mais um negro chegou a ministro de primeira classe, que é o cargo mais alto da diplomacia, equivalente a embaixador.

Informações do ministério dão conta de que 20 candidatos beneficiados com a bolsa do PAA ingressaram no Instituto Rio Branco entre 2002 e 2014. Entre 2014 e 2020, 32 candidatos negros foram aprovados no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, dos quais 27 em vagas reservadas nos termos da Lei 12.990 e cinco por vagas destinadas à ampla concorrência. Isso significa que, de um total de 950 vagas oferecidas entre 2002 e 2020, apenas 5,4% foram preenchidas por pessoas declaradamente negras.

No livro, Koifman conclui: “O precedente foi estabelecido, aos trancos, barrancos e ao custo de muito sofrimento para Raymundo. Mas o fato de tão poucos afrodescendentes terem chegado à posição mais alta do Itamaraty em toda a História do Brasil é evidência mais do que suficiente de que as resistências seguiram a existir e seguem existindo, e de que a sociedade brasileira ainda precisa evoluir muito para poder ser considerada ou se aproximar um dia da tão mencionada ‘democracia racial’”.

 

quarta-feira, 10 de junho de 2020

A Circular de 1937; proibição da imigração de judeus no Brasil - Gustavo Pacheco

Um artigo importante, sobre um dos episódios mais vergonhosos de nossa diplomacia, mas  não apenas da diplomacia, do governo do Estado Novo, ao recusar vistos para judeus no período da ascensão do nazismo na Europa, apenas por puro e simples preconceito racial.
O autor, diplomata, recomenda a leitura da obra de Fabio Koifman, Quixote nas Trevas, sobre o embaixador Souza Dantas, assim como o filme de Luiz Fernando Goulart, Querido embaixador.
Meus cumprimentos ao autor, cujo artigo precede de pouco uma outra época de obscuras posturas políticas e sociais.
Paulo Roberto de Almeida

A CIRCULAR
O QUE VOCÊ FARIA SE RECEBESSE UMA ORDEM DESSAS?
Gustavo Pacheco, diplomata
Revista Época, 12/11/2018 11:19

O embaixador Luiz Martins de Sousa Dantas (ao centro), com Oswaldo Aranha (esq.) e Getúlio Vargas (dir.) Foto: Divulgação

O embaixador Luiz Martins de Sousa Dantas (ao centro), com Oswaldo Aranha (esq.) e Getúlio Vargas (dir.) - Divulgação

Em junho de 1937, todas as embaixadas e consulados brasileiros receberam uma circular de caráter reservado, cujo assunto era “entrada de estrangeiros no território nacional”. Na verdade, a circular tratava da chegada de refugiados judeus ao Brasil. O documento mencionava a “quantidade surpreendente de elementos dessa espécie” que vinham desembarcando nos portos brasileiros, muitas vezes com vistos temporários, e afirmava que a intenção dessas pessoas era “burlar a vigilância das nossas autoridades e radicarem-se clandestina e definitivamente nos centros urbanos e populosos do país, para, numa inadmissível concorrência ao comércio local e ao trabalhador nacional, absorverem, parasitariamente, como intermediários apenas, uma parte apreciável da nossa riqueza, quando, além disso, não se entregam, também, à propaganda de ideias dissolventes e subversivas”. Por fim, a circular proibia a concessão de vistos a toda pessoa de “origem étnica semita”, ordenando ainda que a recusa ao visto fosse justificada “sem qualquer referência à questão étnica”.
O que você faria se recebesse uma ordem dessas? Você não tem bola de cristal para saber com certeza o que vai acontecer nos próximos anos. Só pode contar com a informação disponível no momento e com suas próprias convicções. Como você se comportaria quando alguém batesse à sua porta pedindo um visto que, naquelas circunstâncias, representava praticamente uma garantia de vida?
A circular 1.127/1937 não era um ponto fora da curva, e não foi o único documento oficial que tentava restringir a imigração judaica. Muita gente poderosa, dentro e fora do governo brasileiro, se incomodava com o número crescente de judeus que chegavam ao Brasil buscando refúgio do antissemitismo que se espalhava por toda a Europa. Mas nem todos os funcionários do Serviço Exterior Brasileiro obedeceram à ordem clara e direta de não dar vistos a judeus. Um dos que se recusaram a cumprir as instruções foi Luiz Martins de Sousa Dantas, que desde 1922 comandava a embaixada em Paris.
Quando a circular foi publicada, Sousa Dantas já tinha mais de quarenta anos de carreira diplomática, mas seu profundo respeito pelas tradições do Itamaraty não o impediram de se posicionar contra as políticas racistas de Hitler e mesmo contra a posição de dúbia neutralidade assumida pelo governo brasileiro; em abril de 1940, ele chegou a enviar um ofício reservado ao chanceler Oswaldo Aranha dizendo que não acreditava em “neutralidade perante os crimes cometidos pela Alemanha”.
Após a invasão alemã da França, Sousa Dantas, arriscando sua posição e a própria vida, concedeu vistos a mais de 400 judeus de várias partes da Europa. O governo logo percebeu o que estava acontecendo e, além de repreendê-lo e proibi-lo formalmente de emitir qualquer tipo de visto, abriu um inquérito administrativo contra ele.
Enquanto isso, dezenas de outros funcionários do Serviço Exterior Brasileiro seguiam à risca as instruções da circular 1.127/1937. Nem todos, certamente, eram antissemitas convictos; apenas cumpriam ordens. Mas, mesmo entre os que cumpriam ordens, as atitudes variavam muito.
Em 18 de setembro de 1937, por exemplo, o cônsul-geral em Budapeste, Ildefonso Falcão, enviou um ofício reservado ao Itamaraty, no qual informava que estava obedecendo às ordens da circular: “dando razões outras que não as exatas, ou seja, mentindo oficialmente, tenho recusado o visto em passaportes de um número regular de húngaros de origem semítica”. Mas, numa linguagem tão respeitosa quanto confusa, não deixava de apresentar suas ressalvas: “É que me parece, Senhor Ministro, atenta contra o sentimento de nossa terra fecharmos as portas aos elementos pobres de uma raça, a que tanto devem a humanidade e a civilização, em todas as épocas, e a cujos irmãos banqueiros, em Londres e Nova York, rendemos homenagens, por isso que a eles estamos presos por dívidas vultuosas”. Por fim, observa que a circular estava “criando situações desagradáveis para todas as nossas chancelarias consulares”.
Meses depois, Ildefonso Falcão foi substituído por Mário Moreira da Silva. O tom dos ofícios agora era outro, sem hesitações. Em 1º de abril de 1938, ele encaminhou ao Itamaraty a lista dos nomes dos judeus húngaros cujos pedidos de visto havia negado no mês anterior, tal como determinava a circular: cinquenta e cinco pessoas. Três dias depois, enviou ofício secreto defendendo que a circular não fosse revogada, ao contrário. E justificava sua posição: “Está provado que os judeus, – embora possuam, isoladamente, elementos bons – são, em comunidade, assaz perniciosos e, por tal forma agem, que são tratados, nas suas próprias pátrias de nascimento, como indivíduos nocivos, indesejáveis mesmo, contra os quais se decretam toda a sorte de restrições, com um único objetivo: vê-los partir”.
Luiz Martins de Sousa Dantas é hoje lembrado em todo o mundo como exemplo de dignidade e coragem frente à adversidade. Quem quiser saber mais sobre sua vida, pode ler o livro Quixote nas trevas, de Fábio Koifman, e ver o filme Querido embaixador, dirigido por Luiz Fernando Goulart. Em 2003, Sousa Dantas foi declarado “justo entre as nações”, título atribuído pelo Memorial do Holocausto de Israel (Yad Vashem) a pessoas que arriscaram suas vidas para ajudar os judeus perseguidos pelo nazismo e pelo fascismo.
Quanto a Mário Moreira da Silva, ninguém mais se lembra dele.
Gustavo Pacheco é diplomata e antropólogo.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Transgressões no Itamaraty - Fabio Koifman (FSP, 2013)

Como o Itamaraty cortou a assinatura da Folha de São Paulo e eliminou o jornal de seu clipping diário, o que configurava uma das mais abjetas censuras já vistas na Casa de Rio Branco. Nem na ditadura militar ocorreu tal tipo de discriminação, só compatível com personalidades autoritárias e seus vassalos obedientes.
Por isso mesmo, não apenas em solidariedade, mas como leitura obrigatória, assinei o jornal.
Acabei verificando o que já tinha sido publicado em torno de meu nome no jornal, o que postei neste mesmo blog.
Entre os materiais, este artigo do historiador Fabio Koifman que fala dos dissidentes do Itamaraty, entre eles este que aqui escreve...
Paulo Roberto de Almeida


Transgressões no Itamaraty
FÁBIO KOIFMAN 
Folha de S. Paulo, 15/09/2013 03h05

RESUMO Dentro de um ministério regido por hierarquia e normas próprias como o Itamaraty, atos de rebeldia são pouco comuns. Historiador das relações internacionais faz um apanhado de casos em que representantes do país atuaram contra as regras estabelecidas, com motivações diversas, da convicção ética à pequeneza pessoal.
*
Como em uma orquestra, vige no Itamaraty, ministério hierarquizado e dotado de regras próprias, um ritual de obediência que visaria desmotivar, cercear e eventualmente punir a dissidência. A Casa --como muitos chamam o MRE-- não estimularia a independência de pensamento.
A desobediência não é fato tão comum na história do ministério. A maioria dos diplomatas é disciplinada e segue as regras. Quase sempre é quando as ordens ferem os princípios de um diplomata que pode surgir um transgressor.
Em 2008 fui chamado a falar sobre o embaixador Luiz Martins de Souza Dantas (1876-1954) aos alunos do Instituto Rio Branco em Brasília. Era um sinal positivo e curioso que a Casa convidasse alguém para falar aos futuros diplomatas sobre um embaixador que fez o que eles não deveriam de modo algum fazer: deixar de cumprir as orientações e ordens da chefia.
Representante do país na França ocupada, Souza Dantas não seguiu as orientações do Estado Novo (1937-45) de Vargas e praticou ajuda humanitária, emitindo vistos a perseguidos do nazismo.
Alguns articulistas, acadêmicos e jornalistas têm se referido a Souza Dantas quando opinam a respeito do recente caso envolvendo o diplomata brasileiro Eduardo Saboia, que ajudou na fuga do senador boliviano Roger Pinto Molina, asilado na Embaixada do Brasil em La Paz por quase 500 dias.
Em uma primeira análise, os casos de Souza Dantas e de Saboia têm pouco em comum. Enquanto Souza Dantas encontrou dificuldades morais em seguir a determinação da Secretaria de Estado, Saboia aparentemente teria enfrentado o silêncio quanto a como proceder para contornar a situação envolvendo o senador boliviano.
Nem todas as transgressões ocorridas no MRE deixaram registros escritos; alguns casos de diplomatas rebeldes só puderam ser apurados nos corredores da Casa. Nem todas, também, se deveram a motivos de consciência ou humanitários -várias tiveram mesmo origem em fatos comezinhos.
PERU
Eram fins de 1902 quando Manuel de Oliveira Lima foi indicado para a nossa representação no Peru. Desagradado com o destino, postergou o quanto pôde sua volta do Japão, onde estava lotado, apesar de o barão do Rio Branco ter solicitado com máxima urgência seu retorno ao Brasil --a demora se estendeu por mais de seis meses.
O desentendimento com o barão do Rio Branco agravou-se ao longo de 1903, com a publicação de artigos de Oliveira Lima em jornais expressando críticas às decisões da política externa brasileira. Citando o visconde de Cabo Frio, teria afirmado: "Peru só na mesa, assado, e para quem gosta. Eu não gosto".
Eleito para a Academia Brasileira de Letras, em seu discurso de posse em julho de 1903, na presença do presidente da República e de outras autoridades, Oliveira Lima teceu críticas à situação da carreira diplomática brasileira. Desejava ir para a Europa, mas acabou sendo enviado para a Venezuela onde permaneceu por três anos.
A intempestividade em público também atingiu Rui Barbosa.
Sem ser diplomata de carreira, em 1916 ele foi escolhido para representar o Brasil em importantes cerimônias comemorativas na Argentina. Naquele momento, o governo brasileiro ainda se mantinha neutro em relação ao conflito que seria conhecido mais tarde como Primeira Guerra Mundial.
Em 14 de julho, sob o argumento de que já estavam concluídas as cerimônias oficiais e que se expressava não como representante diplomático --embora tivesse exigido um salário mensal de embaixador--, Rui Barbosa pronunciou um discurso no qual assumia posição favorável a um dos lados em conflito, o dos aliados.
Nessa época, Luiz Martins de Souza Dantas respondia interinamente pelo Ministério das Relações Exteriores. Mesmo com antigas ligações de amizade entre as famílias, a defesa de posição divergente produziu acusações mútuas, bate-bocas nos jornais e o rompimento definitivo entre os dois.
Curioso foi o caso em que uma rebeldia foi respondida com outra.
Mário de Pimentel Brandão era embaixador na Bélgica quando os alemães invadiram o país, em 1940. Bruxelas estava sob bombardeio, o que levou o governo belga e todo o pessoal diplomático a fugir -Brandão inclusive. Do Rio, o secretário-geral do Itamaraty, embaixador Maurício Nabuco, dirigiu a Brandão uma repreensão por ter abandonado o posto sem a devida autorização do governo brasileiro e a divulgou por circular.
A resposta de Brandão, também aberta, foi de que se na antiga Roma de Calígula um cavalo havia sido feito cônsul, não era de se admirar que no Brasil moderno outro cavalo (algumas versões mencionam "burro") houvesse chegado a embaixador e a secretário-geral.
Sem conseguir do governo punição de Brandão pela resposta, Nabuco passou a transgressor: simplesmente abandonou o posto e viajou para Petrópolis e lá permaneceu. Foram precisos meses (e pedidos cordiais do presidente da República) para que o secretário-geral voltasse ao trabalho.
CÉLULA
Em 1952, com o Partido Comunista Brasileiro na ilegalidade, cinco diplomatas foram, a partir de uma denúncia, acusados de criar uma "célula comunista" dentro do MRE. Eram eles João Cabral de Melo Neto, Antônio Houaiss, Amaury Banhos Porto de Oliveira, Jatyr de Almeida Rodrigues e Paulo Cotrim Rodrigues Pereira.
Em 20 de março de 1953 foi publicado o despacho do presidente da República: Vargas seguiu o parecer do Conselho de Segurança Nacional e a proposta do ministro das Relações Exteriores, assinando decretos que colocavam os cinco "em disponibilidade inativa" --ou seja, sem remuneração.
O processo ainda foi enviado à chefia de polícia para promover a apuração "da responsabilidade criminal dos indicados". Os cinco impetraram ações no Supremo Tribunal Federal e só no ano seguinte seriam reintegrados ao Itamaraty. Houaiss e Almeida Rodrigues seriam aposentados compulsoriamente depois do golpe de 1964.
Álvaro de Barros Lins não era diplomata de carreira, mas em setembro de 1956 foi nomeado embaixador do Brasil em Lisboa por Juscelino Kubitschek. Desgastou-se com a ditadura salazarista por criticar o Tratado de Amizade e Consulta entre Brasil e Portugal, que considerava "lesivo" aos interesses brasileiros.
Em 1959 o Brasil concedeu asilo político ao general Humberto da Silva Delgado, líder oposicionista português. O governo português não reconheceu o asilo. Considerando a reação de Kubitschek ao fato insuficiente e acusando-o de cúmplice com as ditaduras, saiu do posto em outubro do mesmo ano. Delgado foi assassinado pela polícia política de Salazar próximo á fronteira espanhola em 1965.
Foi contra a nascente ditadura brasileira que se insurgiu, em 1964, o embaixador Jayme de Azevedo Rodrigues. Em serviço em Genebra na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), ao receber o comunicado da deposição do presidente João Goulart, telegrafou ao Itamaraty: "Não sirvo a governos gorilas". No dia 2 de julho, sua aposentadoria foi publicada com base no primeiro dos atos institucionais militares.
ZUM-ZUM
O regime militar brasileiro teria no diplomata Manoel Pio Correa um aguerrido defensor da ordem. Em 1966, ao assumir a função de secretário-geral, Pio Correa deixou claro que não gostava de diplomatas "pederastas", "vagabundos" e "bêbados" --os termos são do próprio diplomata, conforme citados em suas memórias ("O Mundo em que Vivi").
Logo descobriu que Vinicius de Moraes, lotado ali, não era assíduo ao trabalho. Além disso, era contratado da casa noturna Zum-Zum, em Copacabana, onde se apresentava todas as noites.
Convocou-o propositalmente em uma manhã bem cedo para lhe dar duas opções: ou largava o trabalho noturno e assumia uma função ou pedia licença sem vencimentos. Vinicius foi obrigado a licenciar-se. O AI-5 o aposentaria compulsoriamente em 1968.
A atividade artística quase foi daninhas a outro homem de letras. José Guilherme Alves Merquior foi, desde cedo, muito presente no meio intelectual de sua época.
Em 1962, aluno do Instituto Rio Branco, ele participou da organização de um festival de cinema russo. No ano seguinte (ao fim do qual tomaria posse como terceiro secretário do Itamaraty), foi convidado a dar um curso de introdução à estética no Instituto Superior de Estudos Brasileiros e chamou a falar o marxista Leandro Konder. Teria ainda coordenado uma exposição de fotógrafos cubanos.
Designado para servir em seu primeiro posto internacional em 13 de maio de 1966, teria sido inquirido a respeito dessas atividades que flertavam com a ideologia comunista --segundo conta-se, por pouco não foi cassado.
Uma disputa de cunho pessoal quase coloca o Brasil em um grave incidente com a Síria de Hafez al-Assad --pai do atual ditador sírio, ele havia tomado o poder via golpe de Estado em 1970.
Entre 1969 e 1972, Roberto Luiz Assumpção de Araújo era embaixador em Damasco. Assad passou a cobiçar a casa na qual Assumpção estava instalado, tentando convencê-lo a se mudar. O embaixador não cedeu, e os dirigentes sírios passaram a utilizar outros meios de pressão, que incluíram o corte sistemático de energia e água da residência. Sem sucesso, obstruíram o esgoto, o que produziu uma situação insustentável.
Assumpção, ao invés de dar-se por vencido, arriou a bandeira brasileira e seguiu com o protocolo de rompimento de relações diplomáticas com o país árabe. O caso produziu alvoroço na comunidade sírio-brasileira, que se lançou em reclamações contra Assumpção. Uma ordem expressa de Brasília finalmente convenceu o embaixador a deixar a casa.
Para alguns, os atos de José Maurício Bustani quando diretor-geral da Organização para a Proibição das Armas Químicas (Opaq) o qualificam como transgressor --e, se não o foi com relação ao Itamaraty, certamente pode-se dizer que ele entrou em choque com o governo norte-americano.
Eleito para a Opaq no período 1997-2000 e reeleito para o quadriênio seguinte, 2001-2005, ele agiu de maneira independente a fim de tentar fazer fazer com que as regras valessem do mesmo modo para todos os países.
O governo George W. Bush passou a vê-lo como obstáculo, e Bustani não chegou a concluir o segundo mandato: menos de um ano antes do início da segunda guerra do Iraque, os Estados Unidos passaram a articular pela sua remoção do posto, o que acabou por ocorrer em abril de 2002.
DESALINHO
Com a inauguração do governo Lula e sua diplomacia influenciada pela perspectiva do PT, diversos funcionários tidos como contrários à nova política foram marginalizados na carreira e em suas funções. Um dos casos mais notórios foi o do também acadêmico Paulo Roberto de Almeida, conhecido autor de diversos artigos em "desalinho" com as novas orientações ideológicas.
Ainda há muita nebulosidade em relação ao ocorrido no caso recente envolvendo o nosso diplomata Saboia e o senador boliviano. No momento não é possível saber em que medida instruções informais foram ou deixaram de ser cumpridas. Houve consulta preliminar sobre eventual saída clandestina? Houve resposta negativa e Saboia descumpriu a ordem? Não existiu qualquer ordem e ele atuou no limite ou além de sua competência? Quais foram precisamente as orientações e ações da secretaria de Estado para solucionar o impasse? Os apelos para uma solução foram respondidos?
O distanciamento temporal dos fatos e o acesso suficiente às informações são elementos fundamentais para o esclarecimento das ideias e das ações e bons balizadores de toda e qualquer transgressão, potencialmente transformando os transgressores em egocêntricos, vítimas --nem sempre do Itamaraty, mas também dos governos--, idealistas ou até heróis.

Fábio Koifman, 49, doutor em história e professor da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), é autor de "Quixote nas Trevas: o Embaixador Souza Dantas e os Refugiados do Nazismo"(Record).