Como o Itamaraty cortou a assinatura da
Folha de São Paulo e eliminou o jornal de seu clipping diário, o que configurava uma das mais abjetas censuras já vistas na Casa de Rio Branco. Nem na ditadura militar ocorreu tal tipo de discriminação, só compatível com personalidades autoritárias e seus vassalos obedientes.
Por isso mesmo, não apenas em solidariedade, mas como leitura obrigatória, assinei o jornal.
Acabei verificando o que já tinha sido publicado em torno de meu nome no jornal, o que postei neste mesmo blog.
Entre os materiais, este artigo do historiador Fabio Koifman que fala dos dissidentes do Itamaraty, entre eles este que aqui escreve...
Paulo Roberto de Almeida
Transgressões
no Itamaraty
FÁBIO KOIFMAN
Folha de S. Paulo, 15/09/2013 03h05
RESUMO Dentro de um ministério
regido por hierarquia e normas próprias como o Itamaraty, atos de rebeldia são
pouco comuns. Historiador das relações internacionais faz um apanhado de casos
em que representantes do país atuaram contra as regras estabelecidas, com
motivações diversas, da convicção ética à pequeneza pessoal.
*
Como em uma orquestra, vige no Itamaraty, ministério
hierarquizado e dotado de regras próprias, um ritual de obediência que visaria
desmotivar, cercear e eventualmente punir a dissidência. A Casa --como muitos
chamam o MRE-- não estimularia a independência de pensamento.
A desobediência não é fato tão comum na história do ministério.
A maioria dos diplomatas é disciplinada e segue as regras. Quase sempre é
quando as ordens ferem os princípios de um diplomata que pode surgir um
transgressor.
Em 2008 fui chamado a falar sobre o embaixador Luiz Martins de
Souza Dantas (1876-1954) aos alunos do Instituto Rio Branco em Brasília. Era um
sinal positivo e curioso que a Casa convidasse alguém para falar aos futuros
diplomatas sobre um embaixador que fez o que eles não deveriam de modo algum
fazer: deixar de cumprir as orientações e ordens da chefia.
Representante do país na França ocupada, Souza Dantas não seguiu
as orientações do Estado Novo (1937-45) de Vargas e praticou ajuda humanitária,
emitindo vistos a perseguidos do nazismo.
Alguns articulistas, acadêmicos e jornalistas têm se referido a
Souza Dantas quando opinam a respeito do recente caso envolvendo o diplomata
brasileiro Eduardo Saboia, que ajudou na fuga do senador boliviano Roger Pinto
Molina, asilado na Embaixada do Brasil em La Paz por quase 500 dias.
Em uma primeira análise, os casos de Souza Dantas e de Saboia
têm pouco em comum. Enquanto Souza Dantas encontrou dificuldades morais em
seguir a determinação da Secretaria de Estado, Saboia aparentemente teria
enfrentado o silêncio quanto a como proceder para contornar a situação
envolvendo o senador boliviano.
Nem todas as transgressões ocorridas no MRE deixaram registros
escritos; alguns casos de diplomatas rebeldes só puderam ser apurados nos
corredores da Casa. Nem todas, também, se deveram a motivos de consciência ou
humanitários -várias tiveram mesmo origem em fatos comezinhos.
PERU
Eram fins de 1902 quando Manuel de Oliveira Lima foi indicado
para a nossa representação no Peru. Desagradado com o destino, postergou o
quanto pôde sua volta do Japão, onde estava lotado, apesar de o barão do Rio
Branco ter solicitado com máxima urgência seu retorno ao Brasil --a demora se
estendeu por mais de seis meses.
O desentendimento com o barão do Rio Branco agravou-se ao longo
de 1903, com a publicação de artigos de Oliveira Lima em jornais expressando
críticas às decisões da política externa brasileira. Citando o visconde de Cabo
Frio, teria afirmado: "Peru só na mesa, assado, e para quem gosta. Eu não
gosto".
Eleito para a Academia Brasileira de Letras, em seu discurso de
posse em julho de 1903, na presença do presidente da República e de outras autoridades,
Oliveira Lima teceu críticas à situação da carreira diplomática brasileira.
Desejava ir para a Europa, mas acabou sendo enviado para a Venezuela onde
permaneceu por três anos.
A intempestividade em público também atingiu Rui Barbosa.
Sem ser diplomata de carreira, em 1916 ele foi escolhido para
representar o Brasil em importantes cerimônias comemorativas na Argentina.
Naquele momento, o governo brasileiro ainda se mantinha neutro em relação ao
conflito que seria conhecido mais tarde como Primeira Guerra Mundial.
Em 14 de julho, sob o argumento de que já estavam concluídas as
cerimônias oficiais e que se expressava não como representante diplomático
--embora tivesse exigido um salário mensal de embaixador--, Rui Barbosa
pronunciou um discurso no qual assumia posição favorável a um dos lados em
conflito, o dos aliados.
Nessa época, Luiz Martins de Souza Dantas respondia
interinamente pelo Ministério das Relações Exteriores. Mesmo com antigas
ligações de amizade entre as famílias, a defesa de posição divergente produziu
acusações mútuas, bate-bocas nos jornais e o rompimento definitivo entre os
dois.
Curioso foi o caso em que uma rebeldia foi respondida com outra.
Mário de Pimentel Brandão era embaixador na Bélgica quando os
alemães invadiram o país, em 1940. Bruxelas estava sob bombardeio, o que levou
o governo belga e todo o pessoal diplomático a fugir -Brandão inclusive. Do
Rio, o secretário-geral do Itamaraty, embaixador Maurício Nabuco, dirigiu a
Brandão uma repreensão por ter abandonado o posto sem a devida autorização do
governo brasileiro e a divulgou por circular.
A resposta de Brandão, também aberta, foi de que se na antiga
Roma de Calígula um cavalo havia sido feito cônsul, não era de se admirar que
no Brasil moderno outro cavalo (algumas versões mencionam "burro")
houvesse chegado a embaixador e a secretário-geral.
Sem conseguir do governo punição de Brandão pela resposta,
Nabuco passou a transgressor: simplesmente abandonou o posto e viajou para
Petrópolis e lá permaneceu. Foram precisos meses (e pedidos cordiais do
presidente da República) para que o secretário-geral voltasse ao trabalho.
CÉLULA
Em 1952, com o Partido Comunista Brasileiro na ilegalidade,
cinco diplomatas foram, a partir de uma denúncia, acusados de criar uma
"célula comunista" dentro do MRE. Eram eles João Cabral de Melo Neto,
Antônio Houaiss, Amaury Banhos Porto de Oliveira, Jatyr de Almeida Rodrigues e
Paulo Cotrim Rodrigues Pereira.
Em 20 de março de 1953 foi publicado o despacho do presidente da
República: Vargas seguiu o parecer do Conselho de Segurança Nacional e a
proposta do ministro das Relações Exteriores, assinando decretos que colocavam
os cinco "em disponibilidade inativa" --ou seja, sem remuneração.
O processo ainda foi enviado à chefia de polícia para promover a
apuração "da responsabilidade criminal dos indicados". Os cinco
impetraram ações no Supremo Tribunal Federal e só no ano seguinte seriam
reintegrados ao Itamaraty. Houaiss e Almeida Rodrigues seriam aposentados
compulsoriamente depois do golpe de 1964.
Álvaro de Barros Lins não era diplomata de carreira, mas em
setembro de 1956 foi nomeado embaixador do Brasil em Lisboa por Juscelino
Kubitschek. Desgastou-se com a ditadura salazarista por criticar o Tratado de
Amizade e Consulta entre Brasil e Portugal, que considerava "lesivo"
aos interesses brasileiros.
Em 1959 o Brasil concedeu asilo político ao general Humberto da
Silva Delgado, líder oposicionista português. O governo português não
reconheceu o asilo. Considerando a reação de Kubitschek ao fato insuficiente e
acusando-o de cúmplice com as ditaduras, saiu do posto em outubro do mesmo ano.
Delgado foi assassinado pela polícia política de Salazar próximo á fronteira
espanhola em 1965.
Foi contra a nascente ditadura brasileira que se insurgiu, em
1964, o embaixador Jayme de Azevedo Rodrigues. Em serviço em Genebra na
Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), ao
receber o comunicado da deposição do presidente João Goulart, telegrafou ao
Itamaraty: "Não sirvo a governos gorilas". No dia 2 de julho, sua
aposentadoria foi publicada com base no primeiro dos atos institucionais
militares.
ZUM-ZUM
O regime militar brasileiro teria no diplomata Manoel Pio Correa
um aguerrido defensor da ordem. Em 1966, ao assumir a função de secretário-geral,
Pio Correa deixou claro que não gostava de diplomatas "pederastas",
"vagabundos" e "bêbados" --os termos são do próprio
diplomata, conforme citados em suas memórias ("O Mundo em que Vivi").
Logo descobriu que Vinicius de Moraes, lotado ali, não era assíduo
ao trabalho. Além disso, era contratado da casa noturna Zum-Zum, em Copacabana,
onde se apresentava todas as noites.
Convocou-o propositalmente em uma manhã bem cedo para lhe dar
duas opções: ou largava o trabalho noturno e assumia uma função ou pedia
licença sem vencimentos. Vinicius foi obrigado a licenciar-se. O AI-5 o
aposentaria compulsoriamente em 1968.
A atividade artística quase foi daninhas a outro homem de
letras. José Guilherme Alves Merquior foi, desde cedo, muito presente no meio
intelectual de sua época.
Em 1962, aluno do Instituto Rio Branco, ele participou da
organização de um festival de cinema russo. No ano seguinte (ao fim do qual
tomaria posse como terceiro secretário do Itamaraty), foi convidado a dar um
curso de introdução à estética no Instituto Superior de Estudos Brasileiros e
chamou a falar o marxista Leandro Konder. Teria ainda coordenado uma exposição
de fotógrafos cubanos.
Designado para servir em seu primeiro posto internacional em 13
de maio de 1966, teria sido inquirido a respeito dessas atividades que
flertavam com a ideologia comunista --segundo conta-se, por pouco não foi
cassado.
Uma disputa de cunho pessoal quase coloca o Brasil em um grave
incidente com a Síria de Hafez al-Assad --pai do atual ditador sírio, ele havia
tomado o poder via golpe de Estado em 1970.
Entre 1969 e 1972, Roberto Luiz Assumpção de Araújo era
embaixador em Damasco. Assad passou a cobiçar a casa na qual Assumpção estava
instalado, tentando convencê-lo a se mudar. O embaixador não cedeu, e os
dirigentes sírios passaram a utilizar outros meios de pressão, que incluíram o
corte sistemático de energia e água da residência. Sem sucesso, obstruíram o
esgoto, o que produziu uma situação insustentável.
Assumpção, ao invés de dar-se por vencido, arriou a bandeira
brasileira e seguiu com o protocolo de rompimento de relações diplomáticas com
o país árabe. O caso produziu alvoroço na comunidade sírio-brasileira, que se
lançou em reclamações contra Assumpção. Uma ordem expressa de Brasília
finalmente convenceu o embaixador a deixar a casa.
Para alguns, os atos de José Maurício Bustani quando
diretor-geral da Organização para a Proibição das Armas Químicas (Opaq) o
qualificam como transgressor --e, se não o foi com relação ao Itamaraty,
certamente pode-se dizer que ele entrou em choque com o governo
norte-americano.
Eleito para a Opaq no período 1997-2000 e reeleito para o
quadriênio seguinte, 2001-2005, ele agiu de maneira independente a fim de
tentar fazer fazer com que as regras valessem do mesmo modo para todos os
países.
O governo George W. Bush passou a vê-lo como obstáculo, e
Bustani não chegou a concluir o segundo mandato: menos de um ano antes do
início da segunda guerra do Iraque, os Estados Unidos passaram a articular pela
sua remoção do posto, o que acabou por ocorrer em abril de 2002.
DESALINHO
Com a inauguração do governo Lula e sua diplomacia influenciada
pela perspectiva do PT, diversos funcionários tidos como contrários à nova
política foram marginalizados na carreira e em suas funções. Um dos casos mais
notórios foi o do também acadêmico Paulo Roberto de Almeida, conhecido autor de
diversos artigos em "desalinho" com as novas orientações ideológicas.
Ainda há muita nebulosidade em relação ao ocorrido no caso
recente envolvendo o nosso diplomata Saboia e o senador boliviano. No momento
não é possível saber em que medida instruções informais foram ou deixaram de
ser cumpridas. Houve consulta preliminar sobre eventual saída clandestina?
Houve resposta negativa e Saboia descumpriu a ordem? Não existiu qualquer ordem
e ele atuou no limite ou além de sua competência? Quais foram precisamente as
orientações e ações da secretaria de Estado para solucionar o impasse? Os
apelos para uma solução foram respondidos?
O distanciamento temporal dos fatos e o acesso suficiente às
informações são elementos fundamentais para o esclarecimento das ideias e das
ações e bons balizadores de toda e qualquer transgressão, potencialmente
transformando os transgressores em egocêntricos, vítimas --nem sempre do
Itamaraty, mas também dos governos--, idealistas ou até heróis.
Fábio Koifman, 49, doutor em história
e professor da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), é autor de
"Quixote nas Trevas: o Embaixador Souza Dantas e os Refugiados do
Nazismo"(Record).
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