Abaixo uma entrevista que eu dei para o jornalista Lourival Sant'Anna do jornal
O Estado de São Paulo em NOVEMBRO de 2006, quando ainda não se cogitava de se ter um BRIC diplomático, ou pelo menos quando ainda não existiam movimentações nesse sentido, mas quanto Lavrov e Celso Amorim já trabalhavam nesse sentido (e eu desconhecia esses encontros até então reservados).
O Estadão fez um editorial em cima dessa entrevista logo depois, o que deixou o chanceler Celso Amorim especialmente furioso comigo.
Encontrando-o no final do ano ocasionalmente, disse que estava voltando ao MRE para trabalhar sob sua gestão. Ele apenas me disse secamente:
"– É, mas a sua entrevista ao Estadão não lhe ajudou em nada."
Virou as costas e saiu. Nunca mais falei com ele.
Paulo Roberto de Almeida
O BRIC e a economia mundial
Algumas questões de
atualidade
Entrevista concedida ao
jornalista
Lourival Sant’Anna – O Estado de São Paulo
Paulo Roberto de Almeida
Rio de Janeiro, 9 de
novembro de 2006
Publicada na edição d’O Estado de São Paulo em
04.12.06, caderno Economia, pág. B7, sob o título “O Bric é só um exercício
intelectual”.
Por que o senhor tirou o “B” do Bric?
Esse Bric não existe. É uma construção
arbitrária, que não se sustenta em nenhum arranjo político-diplomático, em
nenhuma configuração efetiva internacional. É um exercício puramente
intelectual de um banco de investimentos, o Goldman Sachs, que criou essa
figura, sem justificativa em si, a não ser pelo peso específico de cada um
desses países. Eles não interagem entre si, não atuam de forma coordenada para
fins desse exercício feito pelo banco, que é a emergência econômica, como massa
atômica específica, de cada um desses países na economia mundial. Ou seja, eles
terão inevitavelmente um grande peso, inclusive o Brasil, que é pouco dinâmico,
mas cada um por sua própria conta. A rigor, há também a Indonésia, que está um
pouco diminuída hoje, mas vai emergir; a África do Sul, o México – grandes
países que, somados à China, à Índia e ao Brasil, conformariam um G-11 ou G-13
da economia mundial. Isso é relevante, em termos de coordenação da agenda
econômica mundial, mas não há nenhum exercício político-diplomático de
coordenação entre Brics, ou Rics. Cada um tem uma forma específica de inserção
na economia mundial. Cada um tem interesses nacionais, que não são
necessariamente divergentes, mas não são coincidentes.
Mas o
senhor disse também que Índia e China estão ingressando no Hemisfério Norte.
Não, eu disse que, para efeitos de economia
mundial, a Índia e a China fazem parte do Hemisfério Norte.
Por
quê?
Porque essa nova geografia comercial, que
se anuncia como relevante para o Sul, já existe: são os emergentes asiáticos
exportando para o Norte desenvolvido – Estados Unidos e Europa. Para todos os
efeitos imagináveis, o destino econômico da China está intimamente ligado ao
dos Estados Unidos. Os americanos dependem da transferência de recursos
asiáticos para continuar sustentando a sua avidez de consumo. A China depende
enormemente da capacidade comercial deficitária americana, ou seja, que os
Estados Unidos continuem comprando dela. Do catálogo do Wal Mart, 80% ou mais é
chinês ou pode ser feito na China. E a China tem um papel deflacionista
extremamente importante na economia mundial. Assim como a Inglaterra no século
19 ofereceu mercadorias baratas a todo o mundo, a China exerce hoje esse papel.
E a
Índia?
A Índia já é outra coisa. Também é
intimamente integrada aos Estados Unidos, pelas redes de engenheiros, pelos
seus executivos que trabalham na Califórnia ou na Costa Leste, que vão
alimentar a nova economia da inteligência e do conhecimento. A China é
basicamente um laboratório, um ateliê ou uma fábrica. A Índia é basicamente um
escritório de concepção e desenho.
Os indianos desenham aquilo que lhes foi
encomendado desde o Vale do Silício, podendo inclusive agregar algo mais.
Mas o que é desenhado na Califórnia também
o é por engenheiros indianos. Há uma simbiose completa entre concepção e
desenho americano, ou ocidental, e a nova Índia, que está emergindo
paulatinamente e vai ser uma potência em software e em conhecimento também.
Mas
isso é uma pequena Índia.
Claro, estou falando da incorporação de uma
pequena parte da Índia na economia de mercado.
Mas
não atrapalha (a exclusão social)?
Atrapalha internamente.
E
externamente?
Não. A Índia vai continuar com milhões de
miseráveis durante muito tempo, assim como a China. O que elas já fizeram em
termos de crescimento econômico é extraordinário. A China tirou 200, 300
milhões de camponeses de uma miséria abjeta para uma pobreza aceitável, e os
transformou em operários. A Índia também tirou algumas centenas de milhares de
pessoas da miséria. Mas a miséria indiana ainda é monumental, e vai continuar
pelas décadas futuras. Mas isso não importa para a economia mundial, e sim os
grandes fluxos transnacionais de comércio, bens, serviços.
Mas,
no caso da China, isso não foi às custas de um câmbio artificialmente baixo e
de salários baixos até para o poder de compra chinês?
Esses são fatores conjunturais. Acredito
que a China tem uma boa manipulação de sua política econômica, inclusive para
efeitos cambiais e comerciais. Tem uma boa manipulação da sua agenda financeira
– reservas, investimentos externos. Mas tudo isso é superestrutura, é espuma. O
mais importante é o papel da China como produtora de bens correntes no mundo
globalizado.
E
como ela conseguiu isso?
Ela se inseriu na divisão internacional do
trabalho. Quando acabou o socialismo, no fim dos anos 80, o impacto da
incorporação dos ex-socialistas na economia mundial não foi muito grande,
porque esses países eram pouco competitivos - tinham uma participação ridícula
no comércio de bens e de tecnologia internacional - e inexistentes no plano
financeiro. O impacto econômico da inserção do ex-bloco socialista no PIB
mundial foi de 10% ou 15%, se tanto. Agora, o impacto da incorporação do
exército industrial de reserva ex-socialista na divisão mundial do trabalho
provavelmente supera um quarto da mão de obra-de-obra total do mundo. É muito
relevante no plano da alocação de investimentos para fins de produção, montagem
de produtos, enfim, tudo o que requer mão-de-obra. A China, também, em algum
momento, vai ficar um pouco cara, e aí outros países vão ser incorporados.
Acredito que, na parte industrial, a China mantenha a sua preeminência mundial
nas próximas décadas.
Ela está repetindo a história japonesa de
copiar para depois criar.
A
China vai virar um imenso Japão, neste século ainda?
É sempre diferente. A China produz mais
engenheiros do que qualquer país do mundo. Quem produz patentes, inovação
tecnológica, são engenheiros. A China vai construir um poder econômico nos seus
próprios termos, que não necessariamente vai se dar no vácuo ou na decadência
ocidental, e sim em extrema osmose com o Ocidente. As teses de hegemonias,
declínios e substituição de impérios não são muito válidas hoje, porque não se
tem mais uma economia baseada apenas nas matérias-primas ou na força bruta das
máquinas. Como a economia é do conhecimento, tudo isso tende a se disseminar.
Quem está perdendo, na verdade, são os operários americanos e ocidentais. Mas
as empresas ocidentais vão continuar tão fortes quanto antes, inclusive
utilizando mão-de-obra chinesa, claro, para o que for necessário.
E a
inserção brasileira?
O Brasil vai continuar sendo um grande
fornecedor de commodities, o que é bom; um grande fornecedor de energias
renováveis, e isso é excelente. Mas o Brasil é um país de lento crescimento. É
um país moderno. Mas todos os nossos problemas são made in Brazil. Não têm nada
a ver com a globalização. Nada do que é externo é estratégico para os problemas
brasileiros atuais. São deficiências próprias: previdenciárias, educacionais,
organizacionais, corrupção, gasto público... A globalização até ajuda. Mas,
como o Brasil é um pouco avestruz, introvertido, recusa a competição, recusa
acordo comercial, nossa indução à reforma vai ser muito mais lenta. Tanto o
Mercosul como os acordos hemisféricos são muito
menos importantes para o Brasil como mercado do que como estabilização
econômica e indução à reforma, à competição e à inovação. Como continuamos
introvertidos, nosso processo de reforma vai ser muito lento. Não é que não
haja consenso entre as elites quanto a uma agenda de reformas. Não há sequer
consciência de que a reforma é necessária, nos planos tributário, fiscal e educacional.
Com
esse ensino fundamental, o Brasil pode se inserir na economia mundial?
Nós achamos que nossos problemas econômicos
são graves, por causa da falta de uma agenda de
reformas. No plano educacional, é pior do que possamos imaginar, e tendente à
deterioração ainda. A situação é muito pior do que as estatísticas revelam. Não
é apenas do ponto de vista organizacional e de investimentos, mas no plano
mental, de preparação dos professores. Temos enormes problemas pela frente, que
não serão resolvidos facilmente. Sou extremamente pessimista quanto às
possibilidades do Brasil de concorrer numa economia globalizada, na medida em
que nossa situação educacional é pavorosa. Nós não estamos preparados para
capacitar a mão-de-obra, no plano puramente industrial, nem para enfrentar as
exigências da modernidade, da inovação tecnológica. No plano científico, até que
temos muita capacidade. Nossos cientistas são tão bons ou até melhores que os
estrangeiros. Mas a vinculação do sistema científico com o tecnológico é muito
precária. Não há um sistema inovador autogerado. É muito induzido pelo Estado.
E o Estado deixou de ser uma solução e passou a ser um problema enorme. Um
estudo com países da OCDE para o período 1960 a 1996 mostra que o ritmo de
crescimento está correlacionado à carga fiscal. Países com carga fiscal de até
25% do PIB tiveram crescimento anual de 6,6%; aqueles com carga fiscal superior
a 60% do PIB, de apenas 1,6%.
Porque
não têm como investir.
Exatamente. A despoupança estatal é um
fator extremamente negativo. E, no plano tributário, a incidência sobre o lucro
e o trabalho é fator de desemprego, informalidade e não-crescimento. Veja o
caso da Irlanda. Ela saiu do perfil europeu clássico e enveredou pelo caminho
da eficiência, da baixa tributação sobre os lucros e sobre o trabalho. Saltou
de metade da renda per capita européia para acima da média. A China impressiona
porque é grande. Mas a Irlanda, em termos de transformação estrutural, é um
caso único na história econômica mundial.
Quanto
ao R do Bric, a Rússia tem problemas institucionais?
Exato. A Rússia é relevante por seu poderio
atômico. Não foi incorporada ao G-7 por ser uma economia de mercado, o que
obviamente ela não era, mas porque poderia causar problemas. Ela não faz parte
do G-7 econômico, mas do G-8 político, que adota resoluções um pouco inócuas. A
Rússia não conta economicamente, a não ser por sua energia. Como ela é
importante no equilíbrio geopolítico asiático e europeu e no plano energético
mundial, claro que ela fará parte daquele esquema de coordenação. Mas ela
precisa fazer suas reformas internas para ser incorporada na OMC e na OCDE.
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