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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Atraso 'made in Brazil' - Editorial do Estadão (2006), citando entrevista minha com Lourival Sant'Anna

 

Minha oposição primordial ao BRIC, e a tudo o que lhe seguiu.
A Biblioteca do Senado Federal é imbatível para certos tipos de material noticioso. Ela preservou um editorial do Estadão de 2006, no qual eu sou referido nominalmente como contrário ao projeto então inicial (fase ministerial) de coalizão do Brasil com os outros três países do BRIC. Transcrevo o que está em sua base de dados:
Título: Atraso 'made in Brazil'
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/12/2006, Notas e Informações, p. A3
Contrastando com a apagada e vil tristeza do noticiário político pós-eleitoral - dominado pelo ramerrame dos conchavos mofinos sobre o tal governo de coalizão e das brigas de praxe pelo controle das duas casas do Congresso, enquanto o presidente Lula confessa que não sabe como "destravar" o crescimento -, uma entrevista publicada ontem neste jornal traz para o primeiro plano os problemas que tirariam o sono das elites políticas brasileiras, não fossem elas o que são.
O entrevistado é o diplomata Paulo Roberto de Almeida, professor de Economia Política Internacional do Centro Universitário de Brasília (Ceub) e membro do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Falando a título pessoal, com cortante clareza e sem receio de chamar as coisas pelos nomes, ele traça um quadro sombrio das possibilidades do País na ordem mundial, em razão das realidades made in Brazil, como diz, para que não se culpe por elas a globalização.
[A entrevista foi por mim concedida ao jornalista Lourival Sant'Anna, do jornal O Estado de São Paulo, no Rio de Janeiro, em 9 de novembro de 2006 (disponível no blog Diplomatizzando: https://diplomatizzando.blogspot.com/.../o-bric-e...).]
 
Mesmo quando se refere a problemas que já freqüentam o limitado debate público sobre os verdadeiros obstáculos ao desenvolvimento nacional - no sentido pleno do termo -, o estudioso vai mais longe do que a maioria dos seus pares na identificação de suas conexões e conseqüências. Retomando o enfoque de sua palestra no recente Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, no Rio, ele dissocia o Brasil da China e da Índia, os quais, além da Rússia, formariam o que ficou moda chamar Bric.
O acrônimo designa o bloco dos principais países emergentes. Mas, para Almeida, isso não existe. "Eles não interagem, não atuam de forma coordenada. Cada um tem uma forma específica de inserção na economia mundial", esclarece. E, pelo que caracteriza essa forma no caso do Brasil, o professor tirou o B do Bric. Numa visão superficial, o País se distingue da China e da Índia por ser o único dos três que exporta commodities em larga escala, "o que é bom", e como grande fornecedor de energias renováveis, "o que é excelente".
Numa visão aprofundada, porém, o que em última análise afasta o Brasil dessas duas nações, pelo critério crucial do modo de participação na economia globalizada, é a dificuldade aparentemente insuperável de o País viver no tempo presente. A China se inseriu na divisão internacional do trabalho, descartando com uma velocidade espantosa o passado autárquico, e a Índia alimenta a nova economia do conhecimento - a primeira é "um laboratório, um ateliê ou uma fábrica", a segunda, "um escritório de concepção e desenho", sintetiza o pesquisador.
Já o Brasil "é um pouco avestruz, introvertido, recusa a competição, recusa acordo comercial". O resultado inexorável é o crescimento lento. O pior é que não se divisa a proverbial luz no fim do túnel. Exatamente devido ao predomínio dessa arcaica mentalidade de avestruz, o problema nem sequer é a falta de consenso entre a elite sobre a agenda de reformas modernizadoras. Na lúcida avaliação do diplomata, "não há consciência de que a reforma é necessária" - sobretudo na educação.
Já era tempo de alguém familiarizado com o tema dizer em público o que Almeida diz da educação nacional, sem medir palavras. ¿É pior do que possamos imaginar, muito pior do que as estatísticas revelam. Não é só do ponto de vista organizacional e de investimentos, mas no plano mental, de preparação de professores¿, aponta, com precisão cirúrgica. "A situação educacional é pavorosa." Não surpreende, portanto, o despreparo brasileiro, seja para capacitar a mão-de-obra, no plano puramente industrial, seja para enfrentar as exigências da modernidade.
Esse segundo aspecto é o mais assustador. Fala-se muito da má qualidade do ensino, mas não se fala tudo que se deveria. Sabe-se que cada nível do sistema exporta para o seguinte as suas deficiências. Não se ressalta, porém, que, acumuladas, elas limitam dramaticamente a capacidade de adquirir novos conhecimentos da minoria que já não desistiu no começo do percurso. A deseducação, em suma, contamina por inteiro a esfera produtiva e permeia o cotidiano dos brasileiros.
Por isso, para o diplomata Paulo Roberto de Almeida, o Brasil continuará tendo desenvolvimento lento e inserção na economia mundial limitada ao fornecimento de commodities e fontes renováveis de energia.

domingo, 29 de setembro de 2024

A indignação seletiva da diplomacia brasileira Lourival Sant'Anna (Estadão)

 A indignação seletiva da diplomacia brasileira

A subordinação ideológica do Itamaraty
Lourival Sant'Anna
O Estado de S. Paulo
29 de setembro de 2024

A retirada dos diplomatas brasileiros antes do discurso do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, na Assembleia-Geral da ONU, foi uma amostra de subordinação do Itamaraty à ideologia que emana do Palácio do Planalto e aos ressentimentos antiocidentais que dominam a política externa brasileira.

Os brasileiros imitaram o gesto de colegas do Irã, Turquia, Chile, Colômbia, Botsuana, Djibuti e Guiné-Bissau, entre outros. Numa flagrante indignação seletiva, eles não tiveram a mesma iniciativa perante os discursos ultrajantes e delirantes do embaixador russo, Vasili Nebenzia, que usa a tribuna da ONU desde 2022 para repetir as distorções da história da Ucrânia e as paranoias do ditador Vladimir Putin.

Netanyahu proferiu um discurso abusivo e arrogante, repleto de ameaças. Mas, diferentemente de Putin, tratado com mal disfarçada complacência pelo presidente Lula e seu assessor especial Celso Amorim, Netanyahu defende seu país da ameaça real, não imaginária, de inimigos a seu redor.

A indignação seletiva é apenas o pano de fundo da incoerência que torna ainda mais espantoso o gesto dos diplomatas. A retirada do auditório da ONU assinala a ruptura das tradições da diplomacia brasileira, baseadas na sobriedade, profissionalismo e coerência.

O Brasil é uma potência regional média. Não tem o poderio militar, econômico, político e tecnológico para impor seu desejo ao mundo. Países com esse perfil compensam essas fragilidades com o chamado poder brando, construído com a fidelidade a valores universais e, acima de tudo, às leis e tratados internacionais.

TRADIÇÃO. Não é por acaso que corpo diplomático e Forças Armadas são dois estamentos, o que significa um status distinto do restante do funcionalismo público. Essas duas categorias devem estar ainda mais blindadas de influências políticas, porque representam interesses nacionais permanentes, que não podem ser contaminados por interesses eleitoreiros e afinidades ideológicas dos governantes de turno.

A subordinação da política externa a afinidades ideológicas e pessoais de um governante acarreta prejuízos à credibilidade de um país e aos interesses nacionais. Esses danos se amplificam quando, para esconder suas incoerências, o governante distorce os fatos e fere a dignidade de outros povos, como tem feito sistematicamente o presidente Lula. Desde que ele assumiu pela primeira vez a presidência, há duas décadas, a longa tradição da diplomacia brasileira vem desmoronando. @


E COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS


domingo, 28 de julho de 2024

Lourival Sant'Anna questiona o ingresso do Brasil de Lula na Nova Rota da Seda da China de Xi Jinping (O Estado de S. Paulo)

 Lourival Sant'Anna oferece seu artigo sobre a mudança da posição da política externa brasileira pela diplomacia lulopetista, o que lhe parece confirmar a total adesão do Brasil ao projeto chinês de contestação da "ordem global ocidental" e de construção de uma ordem global alternativa, claramente antiocidental. É uma pequena revolução na política externa e na diplomacia brasileira, mais uma.

Transcrevo a imagem da matéria, fracionada abaixo para facilitar a leitura ampliada.









domingo, 2 de junho de 2024

Alinhamento do Brasil com China e Rússia ameaça relação com o Ocidente - Lourival Sant'Anna (OESP)

Alinhamento do Brasil com China e Rússia ameaça relação com o Ocidente 

Além de contrariar um princípio caro da política externa brasileira, o da soberania, a Rússia atraiu contra si uma união militar no Ocidente inédita desde a 2.ª Guerra Mundial

Por Lourival Sant'Anna

 Opinião - É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

O Estado de S. Paulo, 25/05/2024 


A simpatia do governo Lula pelo expansionismo militar russo tornou-se ainda mais explícita na reunião do chanceler chinês, Wang Yi, e do assessor especial brasileiro, Celso Amorim, em Pequim. As conclusões do encontro colocaram na órbita da China a política do Brasil para a Ucrânia.

Em comunicado conjunto divulgado depois do encontro, Brasil e China apelam para que todas as partes envolvidas se comprometam em não expandir o campo de batalha, não escalar os combates e não provocar a outra. Não houve condenação à invasão.

Essas condições equivalem a dizer que a Ucrânia não tem o direito de se defender. Já que ela é o país invadido, os combates terrestres se concentram, por definição, na Ucrânia, com os ucranianos tentando conter os avanços russos e recuperar território.

Desde a invasão em grande escala da Rússia, em fevereiro de 2022, a Ucrânia recuperou 54% do novo território ocupado. Outros 18% continuam ocupados, incluindo os 8% invadidos em 2014. A atitude do Ocidente de normalizar essa ocupação em 2014, a mesma que Brasil e China adotam até hoje, incentivou Vladimir Putin a ampliá-la.

Amorim, que esteve na Rússia há um mês, contou com otimismo a repórteres brasileiros em Pequim ter ouvido de um de seus interlocutores russos que eles querem uma “neutralização”, e “uma zona tampão com tamanho suficiente para que não haja armas que atinjam diretamente Moscou.”

O assessor especial brasileiro demonstra crer que a Rússia invadiu a Ucrânia para se defender de uma ameaça. Não há a menor base factual para essa leitura, promovida pela propaganda de Putin.

Ao contrário, o governo de Volodmir Zelenski fez de tudo para não dar pretextos à invasão russa. Mesmo quando mais de 100 mil soldados russos se concentravam na fronteira, e a Rússia promovia um bloqueio naval contra a costa ucraniana, em dezembro de 2021, Zelenski desautorizou providências típicas para a defesa de um país sob ataque iminente, como a convocação de reservistas ou a escavação de trincheiras.

Em várias etapas da agressão russa à Ucrânia, o Kremlin enviou sinais contraditórios sobre suas intenções de tentar congelar o front ou agarrar mais território. Esses sinais dependeram, em parte, da dinâmica no terreno e da disposição de EUA e Europa de seguir ajudando a Ucrânia, e em parte das táticas russas de guerra informacional.

Putin nunca demonstrou disposição real de negociar garantias de segurança em troca da devolução de território ucraniano. Aceitar, como fazem Brasil e China, uma solução que não contemple essa devolução é renunciar ao princípio da soberania.

Para a China, esse racional é conveniente. Primeiro, porque Xi Jinping tem deixado claro que pretende anexar Taiwan. A China assedia a ilha regularmente, por mar e ar, como fez nos últimos dias com 46 aviões de guerra. 

Em segundo lugar, as sanções impostas pelo Ocidente à Rússia criaram uma dependência do país em relação à China, que aproveita para comprar seu petróleo e gás a preços abaixo do mercado, vender-lhe produtos industrializados e até instalar fábricas para substituir as mais de mil empresas ocidentais que se retiraram do país.

Por último, ao obrigar o Ocidente a ajudar a Ucrânia, a campanha russa drena recursos das democracias na América do Norte e na Europa, que rivalizam com a China na disputa por influência global.

O alinhamento do Brasil, um país grande e democrático, é valioso para a China, porque demonstra capacidade de atrair para seu campo não apenas ditaduras africanas e asiáticas dependentes de seu poder econômico, projeção política e militar e ideologia autoritária.

E o que o Brasil ganha com isso? Wang Yi declarou que China e Brasil “têm economias altamente complementares e interesses profundamente integrados, que é o ativo estratégico mais precioso”. A primeira parte é verdadeira: o Brasil é exportador de alimentos e a China, de manufaturados.

Mas a própria complementaridade torna desnecessário um alinhamento geopolítico para impulsionar o comércio: ele se movimenta por si, e não depende da proximidade entre os governos, como ficou claro quando Jair Bolsonaro, detrator da China, era presidente.

A segunda parte é problemática. Alinhar-se à China não corresponde aos interesses nacionais do Brasil.

Além de contrariar um princípio caro da política externa brasileira, o da soberania, a Rússia atraiu contra si uma união militar no Ocidente inédita desde a 2.ª Guerra Mundial. A complacência com a agressão russa aliena o Brasil do Ocidente e o coloca como um parceiro não confiável.

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais


segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Medo do argentino de perder subsídios garante a Massa segundo turno contra Milei - Lourival Sant'Anna (O Estado de S. Paulo)

 Medo do argentino de perder subsídios garante a Massa segundo turno contra Milei 

Lourival Sant'Anna
O Estado de S. Paulo, 23/10/2023

Mesmo com inflação anual de 140%, o ministro da economia conseguiu sair na frente no primeiro turno da eleição presidencial argentina.

 Os votos destinados à Patricia Bullrich, elegerão o presidente Mesmo com inflação anual de 140%, o ministro da economia conseguiu sair na frente no primeiro turno da eleição presidencial argentina. Os votos destinados à terceira colocada, Patricia Bullrich, elegerão o presidente O ministro da Economia, Sergio Massa, realizou um feito notável. Com inflação anual de 140%, conseguiu sair na frente no primeiro turno da eleição presidencial da Argentina. 

Ele disputará o segundo turno no dia 19 com o libertário Javier Milei. Os votos destinados à terceira colocada, Patricia Bullrich, elegerão o presidente. Bullrich é liberal na economia e conservadora nas questões sociais, sobretudo a segurança, o que favorece Milei. Entretanto, uma parte de seu eleitorado é mais moderado que ela, e votou, nas primárias de agosto, em seu rival dentro do partido Juntos pela Mudança, o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta. Massa chegou ao seu teto, ou conseguiria atingir uma fatia suficiente desse eleitorado moderado? 

A resposta a essa pergunta ficará mais clara nas próximas semanas. O peso continuará se desvalorizando perante o dólar e minando a confiança dos argentinos na política econômica de Massa. Afinal, Milei, que emerge do primeiro turno com grandes chances de chegar à Casa Rosada, quer fechar o Banco Central e adotar o dólar como moeda O êxito de Massa nesse primeiro turno se explica, em parte, pela força política do peronismo e, em outra parte, pelo receio dos argentinos de perder os benefícios sociais. É uma vulnerabilidade que se retro-alimenta: quanto mais gastos sociais, mais déficit público, mais endividamento, mais inflação, mais empobrecimento e mais necessidade de amparo do Estado. 

 Desde 2015, os argentinos têm tentado escapar da crise econômica alternando experiências à direita e à esquerda. A situação só tem piorado.Agora, uma parcela substancial dos eleitores optou pela ruptura: uma experimentação radical, com Milei, que além de substituir o peso pelo dólar propõe cortar drasticamente gastos e impostos. O plano econômico de Milei é o mais atraente para seus eleitores porque parece ser o mais distante possível da terrível realidade inflacionária que eles enfrentam. Além disso, faz sentido para os argentinos que compreendem que o endividamento causado pelos gastos acima da arrecadação está na origem dos problemas econômicos. 

 A Argentina trocar o peso pelo dólar também faz sentido de duas maneiras fundamentais para muitos eleitores. Afinal, é isso o que quem pode faz: troca peso por dólar e guarda debaixo do colchão ou em contas no exterior. Há ainda uma identificação simples, quase infantil: como se o que trouxesse estabilidade e prosperidade para os Estados Unidos fosse o nome de sua moeda, não os fundamentos de seu sistema econômico, jurídico, educacional e assim por diante. Não se pode culpar os argentinos por querer algo novo. Em 2015, a peronista Cristina Kirchner, de esquerda, entregou o governo com uma inflação de 25%; em 2019, o liberal Mauricio Macri, saiu com 50%; este ano, o peronista Alberto Fernández encerra com 140% ou mais, até dezembro. Bullrich é a candidata de Macri, de quem foi ministra da Segurança Pública. Massa é o ministro da Economia de Fernández. 

 A figura excêntrica de Milei pode assustar muitos, mas para outros combina com o desejo de ruptura do atual sistema político. Esses gastos públicos excessivos são produtos de decisões dos políticos, de suas negociações orçamentárias e de suas práticas clientelistas para manter apoio das populações locais. Isso também está em xeque, com vários líderes sendo desbancados de seus “currais” eleitorais, para usar uma expressão tosca mas pertinente. Ninguém se parece menos com os políticos tradicionais argentinos, seja à esquerda ou à direita, do que Milei. Isso pode atender ao desejo de mudança dos argentinos, mas também traz incertezas com relação à própria capacidade de Milei de entregar. Exatamente pela falta de amplitude político-partidária, ele não terá maioria no Congresso. 

 Diante da consequente frustração de seus eleitores com o descumprimento das promessas, o que Milei faria? Muitos de seus eleitores são jovens, de todos os extratos sociais. Poderim ir às ruas e pressionar o presidente. Milei e, em especial, sua vice, Victoria Villarruel, filha de um falecido tenente do Exército, são admiradores declarados da ditadura militar argentina. Milei tentaria algo como fechar o Congresso? Nessa hipótese, não teria apoio das Forças Armadas nem de outras instituições. Mas desestabilizaria ainda mais an Argentina. 

 Outro fator é a intenção de Milei de rever o direito ao aborto, aprovado na Argentina em 2020. Mulheres liberais que recebem bem suas ideias radicais no campo econômico não gostam da reversão dessa conquista, que consumiu muita energia dos progressistas. Em contrapartida, claro, ela atrai o voto dos conservadores. O mesmo se aplica à facilitação do acesso às armas. 

 O aumento da pobreza, que alcança 40% da população, agravou a criminalidade. Bullrich fez do endurecimento contra os criminosos uma de suas principais bandeiras, além de reformas econômicas. Mas grande parte dos argentinos perdeu a fé em soluções baseadas no poder do Estado. A última década de desordem econômica criou um ambiente de salve-se quem puder. Milei responde a esse sentimento, prometendo liberdade para os argentinos buscar prosperidade individualmente e fazer justiça com as próprias mãos. 

 A alternativa, representada por Massa, é a continuação de um Estado inchado e ineficiente, que suga as riquezas do setor público. Não é uma escolha fácil a que os argentinos se impõem a si mesmos.  

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Sobre a verdadeira natureza do atual Estado russo - Paulo Roberto de Almeida

 Sobre a verdadeira natureza do atual Estado russo

Paulo Roberto de Almeida

Lula ainda não parece ter compreendido que o Estado russo de Putin é uma cleptocracia governada no mais puro estilo mafioso (como era, aliás, a República de Weimar governada, entre 1933 e 1945, pelos criminosos do partido nazista chefiados por Hitler). Ele tem certeza de pretender colocar a diplomacia brasileira, via Brics, ao lado desses gangsters? 

Como se sentem os diplomatas brasileiros profissionais? 

Lourival Sant'Anna deveria dedicar uma de suas colunas a essa questão. Recomendo primeiro ler o livro de Karen Dawisha: Putin’s Kleptocracy: Who Owns Russia?


quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O BRIC e a economia mundial (2006) - Paulo Roberto de Almeida

Abaixo uma entrevista que eu dei para o jornalista Lourival Sant'Anna do jornal O Estado de São Paulo em NOVEMBRO de 2006, quando ainda não se cogitava de se ter um BRIC diplomático, ou pelo menos quando ainda não existiam movimentações nesse sentido, mas quanto Lavrov e Celso Amorim já trabalhavam nesse sentido (e eu desconhecia esses encontros até então reservados).
O Estadão fez um editorial em cima dessa entrevista logo depois, o que deixou o chanceler Celso Amorim especialmente furioso comigo.
Encontrando-o no final do ano ocasionalmente, disse que estava voltando ao MRE para trabalhar sob sua gestão. Ele apenas me disse secamente:
"– É, mas a sua entrevista ao Estadão não lhe ajudou em nada."
Virou as costas e saiu. Nunca mais falei com ele.
Paulo Roberto de Almeida


O BRIC e a economia mundial
Algumas questões de atualidade

Entrevista concedida ao jornalista
Lourival Sant’Anna – O Estado de São Paulo
Paulo Roberto de Almeida
Rio de Janeiro, 9 de novembro de 2006
Publicada na edição d’O Estado de São Paulo em 04.12.06, caderno Economia, pág. B7, sob o título “O Bric é só um exercício intelectual”. 

Por que o senhor tirou o “B” do Bric?
Esse Bric não existe. É uma construção arbitrária, que não se sustenta em nenhum arranjo político-diplomático, em nenhuma configuração efetiva internacional. É um exercício puramente intelectual de um banco de investimentos, o Goldman Sachs, que criou essa figura, sem justificativa em si, a não ser pelo peso específico de cada um desses países. Eles não interagem entre si, não atuam de forma coordenada para fins desse exercício feito pelo banco, que é a emergência econômica, como massa atômica específica, de cada um desses países na economia mundial. Ou seja, eles terão inevitavelmente um grande peso, inclusive o Brasil, que é pouco dinâmico, mas cada um por sua própria conta. A rigor, há também a Indonésia, que está um pouco diminuída hoje, mas vai emergir; a África do Sul, o México – grandes países que, somados à China, à Índia e ao Brasil, conformariam um G-11 ou G-13 da economia mundial. Isso é relevante, em termos de coordenação da agenda econômica mundial, mas não há nenhum exercício político-diplomático de coordenação entre Brics, ou Rics. Cada um tem uma forma específica de inserção na economia mundial. Cada um tem interesses nacionais, que não são necessariamente divergentes, mas não são coincidentes.

Mas o senhor disse também que Índia e China estão ingressando no Hemisfério Norte.
Não, eu disse que, para efeitos de economia mundial, a Índia e a China fazem parte do Hemisfério Norte.

Por quê?
Porque essa nova geografia comercial, que se anuncia como relevante para o Sul, já existe: são os emergentes asiáticos exportando para o Norte desenvolvido – Estados Unidos e Europa. Para todos os efeitos imagináveis, o destino econômico da China está intimamente ligado ao dos Estados Unidos. Os americanos dependem da transferência de recursos asiáticos para continuar sustentando a sua avidez de consumo. A China depende enormemente da capacidade comercial deficitária americana, ou seja, que os Estados Unidos continuem comprando dela. Do catálogo do Wal Mart, 80% ou mais é chinês ou pode ser feito na China. E a China tem um papel deflacionista extremamente importante na economia mundial. Assim como a Inglaterra no século 19 ofereceu mercadorias baratas a todo o mundo, a China exerce hoje esse papel.

E a Índia?
A Índia já é outra coisa. Também é intimamente integrada aos Estados Unidos, pelas redes de engenheiros, pelos seus executivos que trabalham na Califórnia ou na Costa Leste, que vão alimentar a nova economia da inteligência e do conhecimento. A China é basicamente um laboratório, um ateliê ou uma fábrica. A Índia é basicamente um escritório de concepção e desenho.
Os indianos desenham aquilo que lhes foi encomendado desde o Vale do Silício, podendo inclusive agregar algo mais.
Mas o que é desenhado na Califórnia também o é por engenheiros indianos. Há uma simbiose completa entre concepção e desenho americano, ou ocidental, e a nova Índia, que está emergindo paulatinamente e vai ser uma potência em software e em conhecimento também.

Mas isso é uma pequena Índia.
Claro, estou falando da incorporação de uma pequena parte da Índia na economia de mercado.

Mas não atrapalha (a exclusão social)?
Atrapalha internamente.

E externamente?
Não. A Índia vai continuar com milhões de miseráveis durante muito tempo, assim como a China. O que elas já fizeram em termos de crescimento econômico é extraordinário. A China tirou 200, 300 milhões de camponeses de uma miséria abjeta para uma pobreza aceitável, e os transformou em operários. A Índia também tirou algumas centenas de milhares de pessoas da miséria. Mas a miséria indiana ainda é monumental, e vai continuar pelas décadas futuras. Mas isso não importa para a economia mundial, e sim os grandes fluxos transnacionais de comércio, bens, serviços.

Mas, no caso da China, isso não foi às custas de um câmbio artificialmente baixo e de salários baixos até para o poder de compra chinês?
Esses são fatores conjunturais. Acredito que a China tem uma boa manipulação de sua política econômica, inclusive para efeitos cambiais e comerciais. Tem uma boa manipulação da sua agenda financeira – reservas, investimentos externos. Mas tudo isso é superestrutura, é espuma. O mais importante é o papel da China como produtora de bens correntes no mundo globalizado.

E como ela conseguiu isso?
Ela se inseriu na divisão internacional do trabalho. Quando acabou o socialismo, no fim dos anos 80, o impacto da incorporação dos ex-socialistas na economia mundial não foi muito grande, porque esses países eram pouco competitivos - tinham uma participação ridícula no comércio de bens e de tecnologia internacional - e inexistentes no plano financeiro. O impacto econômico da inserção do ex-bloco socialista no PIB mundial foi de 10% ou 15%, se tanto. Agora, o impacto da incorporação do exército industrial de reserva ex-socialista na divisão mundial do trabalho provavelmente supera um quarto da mão de obra-de-obra total do mundo. É muito relevante no plano da alocação de investimentos para fins de produção, montagem de produtos, enfim, tudo o que requer mão-de-obra. A China, também, em algum momento, vai ficar um pouco cara, e aí outros países vão ser incorporados. Acredito que, na parte industrial, a China mantenha a sua preeminência mundial nas próximas décadas.
Ela está repetindo a história japonesa de copiar para depois criar.

A China vai virar um imenso Japão, neste século ainda?
É sempre diferente. A China produz mais engenheiros do que qualquer país do mundo. Quem produz patentes, inovação tecnológica, são engenheiros. A China vai construir um poder econômico nos seus próprios termos, que não necessariamente vai se dar no vácuo ou na decadência ocidental, e sim em extrema osmose com o Ocidente. As teses de hegemonias, declínios e substituição de impérios não são muito válidas hoje, porque não se tem mais uma economia baseada apenas nas matérias-primas ou na força bruta das máquinas. Como a economia é do conhecimento, tudo isso tende a se disseminar. Quem está perdendo, na verdade, são os operários americanos e ocidentais. Mas as empresas ocidentais vão continuar tão fortes quanto antes, inclusive utilizando mão-de-obra chinesa, claro, para o que for necessário.

E a inserção brasileira?
O Brasil vai continuar sendo um grande fornecedor de commodities, o que é bom; um grande fornecedor de energias renováveis, e isso é excelente. Mas o Brasil é um país de lento crescimento. É um país moderno. Mas todos os nossos problemas são made in Brazil. Não têm nada a ver com a globalização. Nada do que é externo é estratégico para os problemas brasileiros atuais. São deficiências próprias: previdenciárias, educacionais, organizacionais, corrupção, gasto público... A globalização até ajuda. Mas, como o Brasil é um pouco avestruz, introvertido, recusa a competição, recusa acordo comercial, nossa indução à reforma vai ser muito mais lenta. Tanto o Mercosul como os acordos hemisféricos são muito menos importantes para o Brasil como mercado do que como estabilização econômica e indução à reforma, à competição e à inovação. Como continuamos introvertidos, nosso processo de reforma vai ser muito lento. Não é que não haja consenso entre as elites quanto a uma agenda de reformas. Não há sequer consciência de que a reforma é necessária, nos planos tributário, fiscal e educacional.

Com esse ensino fundamental, o Brasil pode se inserir na economia mundial?
Nós achamos que nossos problemas econômicos são graves, por causa da falta de uma agenda de reformas. No plano educacional, é pior do que possamos imaginar, e tendente à deterioração ainda. A situação é muito pior do que as estatísticas revelam. Não é apenas do ponto de vista organizacional e de investimentos, mas no plano mental, de preparação dos professores. Temos enormes problemas pela frente, que não serão resolvidos facilmente. Sou extremamente pessimista quanto às possibilidades do Brasil de concorrer numa economia globalizada, na medida em que nossa situação educacional é pavorosa. Nós não estamos preparados para capacitar a mão-de-obra, no plano puramente industrial, nem para enfrentar as exigências da modernidade, da inovação tecnológica. No plano científico, até que temos muita capacidade. Nossos cientistas são tão bons ou até melhores que os estrangeiros. Mas a vinculação do sistema científico com o tecnológico é muito precária. Não há um sistema inovador autogerado. É muito induzido pelo Estado. E o Estado deixou de ser uma solução e passou a ser um problema enorme. Um estudo com países da OCDE para o período 1960 a 1996 mostra que o ritmo de crescimento está correlacionado à carga fiscal. Países com carga fiscal de até 25% do PIB tiveram crescimento anual de 6,6%; aqueles com carga fiscal superior a 60% do PIB, de apenas 1,6%.

Porque não têm como investir.
Exatamente. A despoupança estatal é um fator extremamente negativo. E, no plano tributário, a incidência sobre o lucro e o trabalho é fator de desemprego, informalidade e não-crescimento. Veja o caso da Irlanda. Ela saiu do perfil europeu clássico e enveredou pelo caminho da eficiência, da baixa tributação sobre os lucros e sobre o trabalho. Saltou de metade da renda per capita européia para acima da média. A China impressiona porque é grande. Mas a Irlanda, em termos de transformação estrutural, é um caso único na história econômica mundial.

Quanto ao R do Bric, a Rússia tem problemas institucionais?
Exato. A Rússia é relevante por seu poderio atômico. Não foi incorporada ao G-7 por ser uma economia de mercado, o que obviamente ela não era, mas porque poderia causar problemas. Ela não faz parte do G-7 econômico, mas do G-8 político, que adota resoluções um pouco inócuas. A Rússia não conta economicamente, a não ser por sua energia. Como ela é importante no equilíbrio geopolítico asiático e europeu e no plano energético mundial, claro que ela fará parte daquele esquema de coordenação. Mas ela precisa fazer suas reformas internas para ser incorporada na OMC e na OCDE.