Um artigo importante, sobre um dos episódios mais vergonhosos de nossa diplomacia, mas não apenas da diplomacia, do governo do Estado Novo, ao recusar vistos para judeus no período da ascensão do nazismo na Europa, apenas por puro e simples preconceito racial.
O autor, diplomata, recomenda a leitura da obra de Fabio Koifman, Quixote nas Trevas, sobre o embaixador Souza Dantas, assim como o filme de Luiz Fernando Goulart, Querido embaixador.
Meus cumprimentos ao autor, cujo artigo precede de pouco uma outra época de obscuras posturas políticas e sociais.
Paulo Roberto de Almeida
A CIRCULAR
O QUE VOCÊ FARIA SE RECEBESSE UMA ORDEM DESSAS?
Gustavo Pacheco, diplomata
Revista Época, 12/11/2018 11:19
O embaixador Luiz Martins de Sousa Dantas (ao centro), com Oswaldo Aranha (esq.) e Getúlio Vargas (dir.) - Divulgação
Em junho de 1937, todas as embaixadas e consulados brasileiros receberam uma circular de caráter reservado, cujo assunto era “entrada de estrangeiros no território nacional”. Na verdade, a circular tratava da chegada de refugiados judeus ao Brasil. O documento mencionava a “quantidade surpreendente de elementos dessa espécie” que vinham desembarcando nos portos brasileiros, muitas vezes com vistos temporários, e afirmava que a intenção dessas pessoas era “burlar a vigilância das nossas autoridades e radicarem-se clandestina e definitivamente nos centros urbanos e populosos do país, para, numa inadmissível concorrência ao comércio local e ao trabalhador nacional, absorverem, parasitariamente, como intermediários apenas, uma parte apreciável da nossa riqueza, quando, além disso, não se entregam, também, à propaganda de ideias dissolventes e subversivas”. Por fim, a circular proibia a concessão de vistos a toda pessoa de “origem étnica semita”, ordenando ainda que a recusa ao visto fosse justificada “sem qualquer referência à questão étnica”.
O que você faria se recebesse uma ordem dessas? Você não tem bola de cristal para saber com certeza o que vai acontecer nos próximos anos. Só pode contar com a informação disponível no momento e com suas próprias convicções. Como você se comportaria quando alguém batesse à sua porta pedindo um visto que, naquelas circunstâncias, representava praticamente uma garantia de vida?
A circular 1.127/1937 não era um ponto fora da curva, e não foi o único documento oficial que tentava restringir a imigração judaica. Muita gente poderosa, dentro e fora do governo brasileiro, se incomodava com o número crescente de judeus que chegavam ao Brasil buscando refúgio do antissemitismo que se espalhava por toda a Europa. Mas nem todos os funcionários do Serviço Exterior Brasileiro obedeceram à ordem clara e direta de não dar vistos a judeus. Um dos que se recusaram a cumprir as instruções foi Luiz Martins de Sousa Dantas, que desde 1922 comandava a embaixada em Paris.
Quando a circular foi publicada, Sousa Dantas já tinha mais de quarenta anos de carreira diplomática, mas seu profundo respeito pelas tradições do Itamaraty não o impediram de se posicionar contra as políticas racistas de Hitler e mesmo contra a posição de dúbia neutralidade assumida pelo governo brasileiro; em abril de 1940, ele chegou a enviar um ofício reservado ao chanceler Oswaldo Aranha dizendo que não acreditava em “neutralidade perante os crimes cometidos pela Alemanha”.
Após a invasão alemã da França, Sousa Dantas, arriscando sua posição e a própria vida, concedeu vistos a mais de 400 judeus de várias partes da Europa. O governo logo percebeu o que estava acontecendo e, além de repreendê-lo e proibi-lo formalmente de emitir qualquer tipo de visto, abriu um inquérito administrativo contra ele.
Enquanto isso, dezenas de outros funcionários do Serviço Exterior Brasileiro seguiam à risca as instruções da circular 1.127/1937. Nem todos, certamente, eram antissemitas convictos; apenas cumpriam ordens. Mas, mesmo entre os que cumpriam ordens, as atitudes variavam muito.
Em 18 de setembro de 1937, por exemplo, o cônsul-geral em Budapeste, Ildefonso Falcão, enviou um ofício reservado ao Itamaraty, no qual informava que estava obedecendo às ordens da circular: “dando razões outras que não as exatas, ou seja, mentindo oficialmente, tenho recusado o visto em passaportes de um número regular de húngaros de origem semítica”. Mas, numa linguagem tão respeitosa quanto confusa, não deixava de apresentar suas ressalvas: “É que me parece, Senhor Ministro, atenta contra o sentimento de nossa terra fecharmos as portas aos elementos pobres de uma raça, a que tanto devem a humanidade e a civilização, em todas as épocas, e a cujos irmãos banqueiros, em Londres e Nova York, rendemos homenagens, por isso que a eles estamos presos por dívidas vultuosas”. Por fim, observa que a circular estava “criando situações desagradáveis para todas as nossas chancelarias consulares”.
Meses depois, Ildefonso Falcão foi substituído por Mário Moreira da Silva. O tom dos ofícios agora era outro, sem hesitações. Em 1º de abril de 1938, ele encaminhou ao Itamaraty a lista dos nomes dos judeus húngaros cujos pedidos de visto havia negado no mês anterior, tal como determinava a circular: cinquenta e cinco pessoas. Três dias depois, enviou ofício secreto defendendo que a circular não fosse revogada, ao contrário. E justificava sua posição: “Está provado que os judeus, – embora possuam, isoladamente, elementos bons – são, em comunidade, assaz perniciosos e, por tal forma agem, que são tratados, nas suas próprias pátrias de nascimento, como indivíduos nocivos, indesejáveis mesmo, contra os quais se decretam toda a sorte de restrições, com um único objetivo: vê-los partir”.
Luiz Martins de Sousa Dantas é hoje lembrado em todo o mundo como exemplo de dignidade e coragem frente à adversidade. Quem quiser saber mais sobre sua vida, pode ler o livro Quixote nas trevas, de Fábio Koifman, e ver o filme Querido embaixador, dirigido por Luiz Fernando Goulart. Em 2003, Sousa Dantas foi declarado “justo entre as nações”, título atribuído pelo Memorial do Holocausto de Israel (Yad Vashem) a pessoas que arriscaram suas vidas para ajudar os judeus perseguidos pelo nazismo e pelo fascismo.
Quanto a Mário Moreira da Silva, ninguém mais se lembra dele.
Gustavo Pacheco é diplomata e antropólogo.