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quinta-feira, 21 de março de 2024

O comunismo no Brasil: livros de Hugo Studart e de Gustavo Bezerra - colaborações de Paulo Roberto de Almeida

O comunismo no Brasil: 

livros de Hugo Studart e de Gustavo Bezerra

Colaborações de Paulo Roberto de Almeida

 Um gentil leitor disse-me ontem que havia penado para achar uma apresentação em vídeo, no YouTube, a respeito de dois livros com os quais colaborei, respectivamente: 

3255. “Uma tragédia brasileira: a loucura insurrecional do PCdoB”, Brasília, 24 março 2018, 6 p. Texto de caráter ensaístico-histórico, oferecido como comentários sobre uma aventura irresponsável, a guerrilha do Araguaia, em conexão e em colaboração a livro de Hugo Studart, sobre o tema. Feita versão resumida para publicação como posfácio, sob o título de “Uma tragédia brasileira: a loucura amazônica do PCdoB”, 5 p.;  Revisão em 12/05/2018, nos dois últimos parágrafos. Publicado no livro de Hugo Studart: Borboletas e Lobisomens: vidas, sonhos e mortes dos guerrilheiros do Araguaia (Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2018, 660 p.; ISBN: 978-85-265-0490-5; p. 503-507). Versão original publicada no blog Diplomatizzando (9/07/2018; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/07/golpes-revolucoes-e-movimentos-armados.html). Relação de Publicados n. 1285.


3441. “O passado de uma ilusão que ainda não passou: o comunismo no Brasil”, Brasília, 26 março 2019, 5 p. Prefácio a livro de Gustavo Marques: O livro negro do comunismo no Brasil: mitos e falácias da esquerda brasileira (Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2019). Publicado in: Bezerra, Gustavo Henrique Marques, O livro negro do comunismo no Brasil: mitos e falácias sobre a história da esquerda brasileira (Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2019, 872 p.; ISBN: 978-85-5662-205-1; p. 15-20). Relação de Publicados n. 1334.


Coloquei a íntegra dos materiais na plataforma Academia.edu: 

https://www.academia.edu/116493042/4612_O_comunismo_no_Brasil_livros_de_Hugo_Studart_e_de_Gustavo_Bezerra_Colabora%C3%A7%C3%B5es_de_Paulo_Roberto_de_Almeida


O que encontrei na Internet como vídeo no YouTube: 


INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO DF-IHGDF Debate sobre a Trajetória do Comunismo no Brasil: 

https://www.youtube.com/watch?v=LueQRy9yzxI


A apresentação que preparei para o vídeo está aqui: 


3545. “O movimento comunista internacional e seu impacto no Brasil”, Brasília, 7 dezembro 2019, 24 slides. Apresentação no IHG-DF, em companhia de Hugo Studart (autor de livros sobre a guerrilha do Araguaia) e de Gustavo Bezerra (autor: O Livro Negro do Comunismo no Brasil), para apresentação de meu próprio livro: Marxismo e socialismo no Brasil e no mundo: trajetória de duas parábolas da era contemporânea (Brasília: Edição de autor, 2019, 304 p.), no dia 11/12/2019. Disponibilizado na plataforma Research Gate (8/12/2019; link: https://www.researchgate.net/publication/337824903_O_Movimento_comunista_internacional_e_seu_impacto_no_Brasil;DOI: 10.13140/RG.2.2.15046.63047) e na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/41219238/O_Movimento_comunista_internacional_e_seu_impacto_no_Brasil_2019_).


Uma resenha saiu desta forma: 


3717. “A guerrilha do Araguaia por um experiente jornalista”, Brasília, 13 julho 2020, 3 p. Resenha do livro de Hugo Studart, Borboletas e Lobisomens: vidas, sonhos e mortes dos guerrilheiros do Araguaia (Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2018, 660 p.; ISBN: 978-85-265-0490-5), adaptada do trabalho n. 3255, que serviu, no formato abreviado, como posfácio ao livro em questão. Publicado na Revista do IHG-DF (n. 10, 2020, ISSN: 2525-6653; p. 2459-262; link: http://www.ihgdf.com.br/wp-content/uploads/2021/01/revista_IHGB_10_completo.pdf). Relação de Publicados n. 1380. 


Coloquei a íntegra dos materiais na plataforma Academia.edu: 

https://www.academia.edu/116493042/4612_O_comunismo_no_Brasil_livros_de_Hugo_Studart_e_de_Gustavo_Bezerra_Colabora%C3%A7%C3%B5es_de_Paulo_Roberto_de_Almeida


sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

O populismo reacionário: resenha de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro: O populismo reacionário - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Excelente resenha de um livro magistral 

O populismo reacionário

Imagem: Kartick Chandra Pyne

Por ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOY*

Comentário sobre o livro de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro

O populismo reacionário, de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro, é um dos livros nacionais mais importantes para uma tentativa de compreensão da situação política atual. Os autores são professores e pesquisadores no Rio de Janeiro. Em quase 200 páginas apresentam uma radiografia do populismo reacionário que levou quase a metade dos votos nas últimas eleições (o livro é anterior ao pleito). Não tratam de uma aventura política transitória e passageira. Tratam de um assunto sério que exige enfrentamento.

A partir da crise da Nova República, e com foco no judiciarismo lava-jatista, os autores exploram nosso tempo político, tateiam uma obtusidade que desdenhamos (e hoje pagamos por isso) e apontam para uma aporia intransponível: o paradoxo do parasita. O parasita precisa do corpo invadido para sobreviver, não pode destruí-lo. A destruição do corpo invadido tem como pressuposto e resultado a morte do parasita. Essa metáfora implica na relação ambígua entre o líder populista reacionário e a democracia. No último dia 8 de janeiro essa tensão chegou ao limite.

Os autores identificam essa nova onda populista (especialmente brasileira) no contexto da crise do liberalismo democrático, que se desdobra da ressaca da euforia da globalização, dos atentados às torres gêmeas e da crise econômica de 2008. Nesses últimos tempos discutiu-se seriamente sobre o destino da agenda democrática, isto é, se haveria uma revitalização desse projeto ou se a ameaça era realmente verdadeira. O que acha o leitor?

Parece-me, venceu esse último postulado. A ameaça transcendeu o espaço digital e foi para a praça com porretes na mão (literalmente). Tudo condimentado por perigos potencializados por um universo de informação paralela, no qual um comunismo idealizado, a imigração estrangeira, um sentido recorrente de injustiça e de mudanças sociais foram fomentados pelo compartilhamento de valores identitários.

Para os autores, o populista reacionário não se interessa por assuntos de governo e de administração. Comanda um partido digital disperso e ao mesmo tempo unido em torno de uma conta também digital. Lê-se nesse corajoso livro que a conta digital do populista reacionário não é lugar democrático com espaço aberto para a crítica do cidadão. A conta digital do populista reacionário “é um altar, cujo acesso é privativo dos fieis para fins de adoração de seu ídolo”. Quando materializado, e agora a opinião é minha, esse espaço de veneração é concomitante ao entorno topográfico oficial: é o cercadinho.

O populista radical, segundo os autores, apresenta-se como o herói antissistema. Gerencialmente é incompetente. Vale-se dessa incompetência como um selo de autenticidade. Entre a competência e a autenticidade (ainda que fingida, o que possível) o medíocre insatisfeito com a mediocridade de sua vida não pensa duas vezes: quer o autêntico.

Que caminho histórico pavimentou o populista reacionário, porta-voz de uma utopia regressiva de restauração a tempos imaginados? Era latente essa utopia? Na tentativa de explicar essas duas perguntas os autores primeiramente exploram uma revolução judiciarista, que se dizia instrumento de uma suposta capacidade regenerativa da Nação. O Judiciário resolveria tudo. Aplicaria a lei.

É o lavajatismo, em sua versão mais completa, que assumiu o padrão de um tenentismo togado. O ex-juiz de Curitiba e o ex-procurador da República que lá atuava tentaram ser versões contemporâneas de Juarez Távora e de Eduardo Gomes. Creio que não conseguiram, ainda que incensados na imprensa e nas redes, aplaudidos em aviões e restaurantes, ouvidos em gravações suspeitas.

Na tese dos autores de O populismo reacionário o judiciarismo escorava-se em legitimidade oriunda do acesso meritocrático ao serviço público. Acrescentaram também o tema do neoconstitucionalismo, que resultou na valorização das corporações jurídicas e, paradoxalmente, na massificação do ensino de Direito. Havia uma multidão de bacharéis que falavam o tempo todo em regras e princípios, citavam autores alemães em tradução (Hesse, Häberle, Müller e Alexy) e remoíam o aspartame jurídico anglo-saxão (Dworkin e Rawls). Defendiam uma maior participação do Judiciário em detrimento dos demais poderes. A restauração se dava no curul, a cadeira dos altos dignitários romanos que ditavam a jurisprudência.

Segundo os autores, basta que consultemos os livros de Direito Constitucional para constatarmos que o espaço dedicado ao Legislativo é ínfimo em relação ao espaço dedicado ao Judiciário e às corporações jurídicas. O judiciarismo que já se verificava em Rui Barbosa e em Pedro Lessa voltou para o proscênio. O moralismo recorrente da UDN, na voz de Afonso Arinos, Bilac Pinto e Aliomar Balleeiro estava na espinha dorsal dessa revolução do judiciário, que também, o que mais paradoxal, escorou-se em intepretações padronizadas do Brasil, como lemos em Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta.  Esse diálogo seria impossível. Os autores nos lembram que os udenistas de Carlos Lacerda pularam do barco em 1965, do mesmo modo que Sergio Moro e o MBL o fizeram em tempo próximo.

No argumento de O populismo reacionário o núcleo da nova expressão de poder orbitava em torno do culturalismo reacionário de Olavo de Carvalho e do neoliberalismo de Paulo Guedes. Do primeiro apreendeu-se uma concepção petrificada de cultura, centrada na obsessão em face do marxismo cultural, contra o qual se opôs o decadentismo, a crítica à globalização e a âncora da metapolítica, para a qual a cultura vem depois da política. Do segundo, de acordo com os autores, sabe-se que o ponto fraco dos neoliberais tem sido sempre a impopularidade do programa.

O populismo reacionário distancia-se muito da referência e da reverência que tem para com a tecnocracia militar. É que o conservadorismo estatista de Golbery do Couto e Silva subordinou e dominou o culturalismo de Gilberto Freyre e de Miguel Reale, bem como o neoliberalismo de Roberto Campos e de Octávio Bulhões. Os autores não chegam a conjecturar sobre uma explicação para essa disfunção. Talvez, a adesão do populismo reacionário ao negacionismo estrutural possa ser uma chave interpretativa para o enigma.

Os autores dão pistas. A negação do aquecimento global, do holocausto, a fé no terraplanismo, a crença na hipótese de que nazismo e fascismo seriam de esquerda, o racismo reverso, o conspiracionismo, a pandemia, a eficiência da vacina, a ortodoxia das urnas e o tema da ideologia de gênero transitariam nesse quadro explicativo. Na pergunta de Fernando Gabeira, “por que se afastam tanto da realidade e quando se dão conta dela ficam tão revoltados?”.

O populista reacionário cerca-se de quadros medíocres e servis, fomentando um macarthismo administrativo. Os dissidentes são perseguidos. Na construção do caminho para o populismo reacionário formulou-se uma teoria constitucional de sustentação, sempre servida por juristas desfrutáveis (a expressão é dos autores) que retomaram o tema da razão do Estado, agora justificativa de segredos quase perpétuos (100 anos).

Acrescento ao argumento dos autores o papel de certa teologia da prosperidade. Para Carl Schmitt (o príncipe dos juristas desfrutáveis) o milagre estaria para a fé como a jurisprudência para o direito. Para sua quase versão brasileira (Francisco Campos) o Estado totalitário seria uma técnica a serviço da democracia. É a união entre o templo e o palácio da justiça.

Penso que a grande mensagem de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro nesse belíssimo livro consiste na constatação de que se abandonou a busca racional da verdade como fundamento da vida coletiva. Os autores instigam mais para a busca racional da verdade do que para a própria verdade. Afinal, sobre essa última, e a questão é bíblica (João 18:38) nem mesmo Pilatos sabia do que se tratava.

*Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Referência


Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro. O populismo reacionário. São Paulo, Contracorrente, 196 págs.

Do site A Terra é Redonda

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Resenha: José Honório Rodrigues e Ricardo A. S. Seitenfus: Uma História Diplomática do Brasil (1531-1945) - Paulo Roberto de Almeida

Uma resenha publicada, mas não disponível de forma ampla: 



483. “A Recuperação da História Diplomática”, Porto Alegre, 14 agosto 1995, 5 p. Resenha crítica do livro de José Honório Rodrigues e Ricardo A. S. Seitenfus: Uma História Diplomática do Brasil (1531-1945); organização e explicação de Lêda Boechat Rodrigues (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, 512 p.). Publicado em América Latina: cidadania, desenvolvimento e Estado, org. Deisy de Freitas Lima Ventura (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996; série Integração latino-americana), p. 271-275. Relação de Publicados n. 196. 


A RECUPERAÇÃO DA HISTÓRIA DIPLOMÁTICA

 

Paulo Roberto de Almeida

Publicado em

Deisy de Freitas Lima Ventura (org.):

América Latina: cidadania, desenvolvimento e Estado

(Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996; série Integração latino-americana)

p. 271-275.

 

José Honório Rodrigues e Ricardo A. S. Seitenfus: 

Uma História Diplomática do Brasil (1531-1945) 

organização e explicação de Lêda Boechat Rodrigues;

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, 512 p.

 

Este livro, cuja publicação tinha sido anunciada várias vezes pelo seu autor principal e que era aguardado com impaciência há muitos anos, recupera, postumamente, as aulas dadas pelo historiador José Honório Rodrigues no Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores, entre 1946 e 1956, e integra ainda dois últimos capítulos cobrindo o período entreguerras (mas perfazendo praticamente sua segunda metade), preparados especialmente para esta edição pelo revisor dos originais, o Prof. Ricardo Seitenfus, da Universidade Federal de Santa Maria. Ele tinha sido convidado em 1991, pela viúva Lêda Boechat Rodrigues, para organizar as notas datilografadas do curso de “História Diplomática do Brasil” ministrado durante toda aquela década pelo grande nome da historiografia nacional, falecido em 1987.

Como indica o historiador gaúcho Seitenfus, em sua Nota Introdutória, o texto deixado por José Honório é minucioso até a gestão do Barão do Rio Branco, tornando-se a partir da Primeira Guerra Mundial “genérico e resumido” (p. 20). Ele dedicou-se então a redigir um complemento da história diplomática brasileira desde a Conferência de Versalhes até o rompimento da neutralidade brasileira, na Segunda Guerra, especialista que é, sob a orientação inicial do próprio José Honório, da política externa durante a era Vargas. Ele já tinha publicado sua tese de doutoramento na Universidade de Genebra, a pesquisa extremamente bem documentada sobre O Brasil de Getúlio Vargas e a Formação dos Blocos: 1930-1942 (Companhia Editora Nacional, Coleção Brasiliana, 1985). 

Dotado de inegáveis méritos didáticos, substantivamente enriquecedor de nossa literatura especializada no campo das relações internacionais, o volume apresenta, porém, alguns reparos menores de forma, dentre os quais uma revisão insuficiente das referências bibliográficas preparadas à época por José Honório ou de algumas passagens obscuras de seus próprios originais. A extensão cronológica do título (1945) é, de certa forma, enganadora, uma vez que o tratamento de nossa história diplomática chega, efetivamente, apenas até o limiar da conferência interamericana do Rio de Janeiro, em princípios de 1942. A organização da obra pode também ser considerada como desbalanceada, no sentido em que, às 200 páginas, 12 capítulos e quatro séculos (de Tordesilhas a Rio Branco) sob a pluma de José Honório, seguem-se mais 200 páginas, em dois capítulos, para os vinte anos de crises do entreguerras. 

Trata-se, em todo caso, no que se refere ao panorama global traçado por José Honório, de uma bem-vinda complementação bibliográfica aos trabalhos mais conhecidos nesse campo, as já defasadas, mas ainda úteis, História(s) Diplomática(s) do Brasil por Hélio Vianna e Delgado de Carvalho (1958) e o mais recente, e indispensável, História da Política Exterior do Brasil de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno (São Paulo: Ática, 1992). Uma das curiosidades deste texto de história diplomática “recuperada”, já que composto há quase 50 anos, é precisamente o fato de nele encontrarmos um José Honório diferente daquele a que estávamos acostumados, se julgarmos com base em seus textos “iconoclastas” de princípios dos anos 60, quando ele se comprazia em atacar a versão “incruenta” da “história oficial”, os compromissos conservadores das elites e a ausência do “povo” da historiografia dominante. Aqui José Honório segue um estilo bem mais tradicional, praticamente despojado do tom nacionalista, apaixonado e “contestador” do publicista da “política externa independente”.

As notas preparadas por José Honório seguem uma narrativa linear das relações exteriores do Brasil colônia e independente, tratando segundo uma clássica abordagem política (com algumas breves pinceladas econômicas) dos principais episódios de nossa diplomacia. Não há propriamente uma sistematização das relações econômicas externas, mas tão simplesmente uma cobertura seletiva de alguns dos conhecidos problemas diplomáticos nessa área: basicamente o Tratado de 1810 com a Inglaterra, a abolição do tráfico negreiro, a expansão do café e o incremento do comércio (e das relações políticas) com os Estados Unidos. A despeito disso, ele tinha consciência de que a história diplomática não podia ser isolada dos demais elementos e fatos do processo global: geográficos, econômicos, sociais, religiosos, etc. Repetindo a pergunta de Lucien Febvre, ele questiona, no capítulo inicial sobre “o conceito de história diplomática”, como seriam possíveis relações internacionais sem geografia e sem economia?

José Honório busca realmente dar uma fundamentação social e econômica a estes “capítulos da história da política internacional do Brasil”, segundo o nome concebido por ele mesmo para uma possível edição de suas notas de curso. Mas, manifestamente influenciado pelas doutrinas e conceitos então em vigor no imediato pós-guerra (em especial o primado da afirmação do Poder Nacional, como ensinado nos cursos do National War College, retomados praticamente ipsis litteris pela Escola Superior de Guerra), José Honório formula, em dois capítulos metodológicos iniciais, sua concepção das relações internacionais: “O que se pretende não é estudar o homus diplomaticus, com sua polidez protocolar, sua fórmula de saudação sabiamente graduada, mas o Poder Nacional que se exprime nas relações internacionais. Ora, desde que o mundo moderno se acha organizado com base no sistema de Estado-Nação, o que comumente se descreve como relações internacionais nada mais é que a soma de contratos [sic] entre as políticas nacionais destes Estados soberanos independentes. E, como as políticas nacionais são sistemas de estratégia empregados pelos Estados para garantir principalmente sua segurança territorial, e para proporcionar o bem-estar econômico e a prosperidade a seus cidadãos, não se pode fazer uma distinção entre política externa e interna. O que um Estado faz em seu território ou o que faz no exterior será invariavelmente ditado pelo interesse supremo de seus objetivos internos” (p. 27).

Para ele, as premissas básicas de nossa política externa, desde a época colonial, sempre foram a acumulação de poder ou a manutenção do status quo, segundo as fases de introversão ou de extroversão que teriam marcado de maneira alternada (e de forma algo mimética ao modelo analítico norte-americano privilegiado por José Honório) a história internacional do Brasil. Essa concepção, surpreendente para quem conhece seus trabalhos ulteriores de “história diplomática”, guia sua reconstituição de nossas relações internacionais: “É, portanto, o jogo da política do poder que queremos recriar, mais que a simples história diplomática. É a supremacia do interesse nacional, em luta com os poderes nacionais adversos ou amigos, que se pretende reconstituir como uma experiência que nos sirva para dar à nossa política exterior verdadeiros objetivos nacionais permanentes. Desse modo, não são só as habilidades diplomáticas, nem o poder militar que se expandem internacionalmente, mas também o poder econômico, pela exportação de capitais e pelo controle de mercados. Por ele veremos que a melhoria constante da posição relativa do Poder Nacional se torna um dos objetivos da política externa do Brasil. Não é, assim, só história diplomática o que se pretende, mas a história das relações do Poder Nacional com os demais poderes nacionais” (p. 29). Ou então: “Toda política externa é uma expressão do poder nacional em confronto, antagônico ou amistoso, com os demais poderes nacionais” (p. 53).

É essa história do “Poder Nacional” que José Honório reconstitui em seus 13 capítulos substantivos, tendo antes fixado de maneira algo “ortodoxa” os três grandes princípios de nossa política exterior desde 1822: a) preservação de nossas fronteiras contra as pretensões de nossos vizinhos e política do status quo territorial; b) defesa da estabilidade política contra o espírito revolucionário, interna (revoltas e secessões) e externamente (caudilhos do Prata); c) defesa contra a formação de um possível grupo hostil hispano-americano e política de aproximação com os Estados Unidos (p. 60). Em outros termos, uma concepção da atuação diplomática e da afirmação de nossos interesses externos que seria tranquilamente subscrita por um historiador arquiconservador (e mesmo reacionário) como Hélio Vianna. 

O texto sob responsabilidade de Ricardo Seitenfus evidencia um historiador plenamente capacitado no manejo dos arquivos diplomáticos, inclusive os das principais chancelarias envolvidas na “política pendular” seguida por Vargas durante todo o período de disputas hegemônicas pelo apoio (ou neutralidade) de uma das principais potências da América do Sul. No exame da “escalada para a guerra” a análise atribui forte ênfase às relações com a Alemanha e a Itália totalitárias, em detrimento talvez dos demais vetores de nosso delicado equilíbrio diplomático nesses anos. A menção é pertinente especialmente em relação à Argentina, já que os Estados Unidos merecem subseção específica, bem documentada. Digna de elogios é a reconstituição, praticamente passo a passo, da atuação do Brasil na Liga das Nações, culminando com a lamentável derrota na “batalha” por uma cadeira permanente no Conselho. O leitor contemporâneo não deixará de formular interessantes comparações entre esse episódio e a atual candidatura brasileira a uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, em particular no que se refere às relações, então e agora, com a Alemanha, hoje aliada na disputa pela reforma da Carta, mas concorrente em 1926.

As conclusões nos remetem de volta ao professor dos anos 50. Como outros historiadores tradicionais, José Honório também via na “riqueza demográfica e territorial do Brasil, [uma] inquestionável possibilidade de tornar-se uma grande potência” (p. 463), estando o País, por sua posição nas Américas, “condenado a uma posição de equilíbrio, que não é isenta de perigos e que lhe vale, frequentemente a censura de pender para um lado ou para outro” (p. 462). Escrevendo numa fase histórica caracterizada pela competição, quando não pelo antagonismo, com a Argentina, mesmo assim José Honório conclui pela importância do incremento de nossas relações econômicas e culturais com os países do Cone Sul; mas, para ele, manifestamente, o processo de integração não estava ainda na ordem do dia. Hoje, ele pode ser legitimamente considerado como um dos princípios basilares de nossa política externa, ao mesmo título que o panamericanismo e o relacionamento especial com os Estados Unidos ao tempo deste curso de José Honório. Sua história diplomática “recuperada” merece, de toda forma, uma leitura atenta por parte de todo estudioso de nossa política externa.

 

 

[Relação de Trabalhos n. 483]

[Porto Alegre, 14.08.95]

Publicado em América Latina: cidadania, desenvolvimento e Estado, org. Deisy de Freitas Lima Ventura (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996; série Integração latino-americana), pp. 271-275. Relação de Publicados nº 196.

 

Ficha de Publicados: 196. “A Recuperação da História Diplomática”, [Resenha do livro de José Honório Rodrigues e Ricardo A. S. Seitenfus: Uma História Diplomática do Brasil (1531-1945); organização e explicação de Lêda Boechat Rodrigues (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, 512 pp)], in América Latina: cidadania, desenvolvimento e Estado in Deisy de Freitas Lima Ventura (org.) (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996; série Integração latino-americana), pp. 271-275. Relação de Trabalhos nº 483.

 

Resenha: História da Política Exterior do Brasil, de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno - Paulo Roberto de Almeida

 A segunda versão desta resenha, preparada para uma revista acadêmica, nunca foi publicada. Esta é a oportunidade. Em todo caso, o essencial foi integrado a um artigo mais amplo, publicado depois na RBPI e também inserido em outros trabalhos na mesma área: 

240. “A Nova História Diplomática”, Brasília: 15 abril 1992, 4 p. Apresentação do livro de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, História da Política Exterior do Brasil (São Paulo: Editora Ática, 1992, 432 p.), discutindo o contexto em que se insere e evidenciando diferenças em relação aos trabalhos precedentes. Publicado, sob o título “A nova história da diplomacia brasileira em edição ampliada”, no Correio Braziliense (Brasília: 25 de abril de 1992, Caderno 2, Armazém Literário, p. 7). Relação de Publicados n. 077.

259. “A Nova História Diplomática”, Brasília: 6 julho 1992, 4 p. Versão revista da apresentação do livro de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, História da Política Exterior do Brasil (São Paulo: Editora Ática, 1992, 432 p.). Encaminhado para “Revista de Estudos Ibero-Americanos”, editada pelo Departamento de História da PUC/RS. Inédito.

346. “Estudos de Relações Internacionais do Brasil: Etapas da produção historiográfica brasileira, 1927-1992”, Brasília: 02 junho 1993, 37 p. Artigo para a Revista Brasileira de Política Internacional (nova série), tratando das grandes obras de história diplomática brasileira (Pandiá Calógeras, Hélio Vianna, Delgado de Carvalho e Amado Cervo-Clodoaldo Bueno. Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: ano 36, nº 1, 1993, p. 11-36). Relação de Publicados n. 136.


A NOVA HISTÓRIA DIPLOMÁTICA

 

Paulo Roberto de Almeida

 

Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno:

História da Política Exterior do Brasil

São Paulo, Editora Ática, 1992, 432 pp.

 

 

Os pesquisadores Amado Cervo e Clodoaldo Bueno há muito vêm trabalhando num setor pouco cultivado entre nossos historiadores profissionais: a história diplomática. Ambos já tinham assinado um utilíssimo (ainda que breve) livro de haute vulgarisation sobre A Política Externa Brasileira, 1822-1985 (São Paulo, Ática, 1986), uma espécie de ensaio geral a esta obra mais completa. Eles podem ser considerados como típicos representantes das novas correntes da pesquisa universitária, combinando rigor na consulta às fontes primárias e um tratamento propriamente “social” (no seu sentido amplo, isto é, compreendendo também os aspectos políticos e econômicos) da história diplomática, considerada como parte integrante da história “global” do País. 

O Professor Amado Luiz Cervo já tinha publicado um primeiro trabalho exaustivamente documentado sobre o importante papel do Parlamento na condução das relações exteriores do Brasil, desvendando, em O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores, 1826-1889 (Brasília, Editora da UnB, 1981), o envolvimento do Legislativo na formulação, implementação e controle da política externa durante o período monárquico. É dele também o mais recente Relações Históricas entre o Brasil e a Itália: o papel da diplomacia (Brasília, Editora da UnB; São Paulo, Istituto Italiano di Cultura, 1992), um excelente “racconto storico” sobre os altos e baixos do relacionamento bilateral, sobretudo do ponto de vista dos homens (diplomatas e popolo minuto) que o fizeram. É dele igualmente um estudo original sobre a conquista e colonização espanholas das Américas, ostentando o título — “politicamente correto” — de Contato entre civilizações (São Paulo, McGraw-Hill, 1975).

O Professor de História da UnB e seu colega da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), campus de Marília, estão, assim, mais que credenciados para inaugurar uma nova etapa na historiografia diplomática brasileira. E, com o perdão dos antecessores, como fazia falta uma história diplomática digna desse nome: afinal de contas tanto a “História Diplomática” de Delgado de Carvalho como a de Hélio Vianna datavam de finais dos anos 50.  Foi uma longa travessia do deserto para todos nós, estudiosos ou simples diletantes da política externa brasileira.

Para aqueles que, durante o espaço de mais de uma geração, foram embalados pelo estilo “bem-comportado” de um Hélio Vianna ou de um Delgado de Carvalho, o surgimento de um novo manual de referência nesse terreno pouco explorado da história diplomática aparece como um oásis refrescante num imenso deserto historiográfico frequentado tão somente por alguns poucos donos de caravanas (os historiadores tradicionais) e muitos nômades das mais diversas cores ideológicas (os jovens pesquisadores acadêmicos).

A história diplomática “tradicional” — que sempre havia primado pelo “oficialismo” e pelo “bom-caratismo” de seus ilustres autores — cumpriu um papel útil enquanto o Brasil não dispunha de outra história senão a governamental, isto é, aquela que se comprazia em descrever as ações dos mandatários como encarnação legítima da vontade popular e como correspondendo fielmente aos interesses da Nação.  José Honório Rodrigues foi o primeiro pourfendeur dessa tradição “elitista”, ao denunciar, com todas as letras, as diversas variantes da história “oficial” do País, em contraposição ao que ele considerava como a verdadeira história “social” e “política” da Nação, isto é, o itinerário de lutas e conflitos populares em torno dos grandes objetivos nacionais, sempre desconsiderados ou traídos pelas classes dominantes. Nossos dois autores se situam na continuidade histórica de José Honório, ao recusar a simples linearidade descritiva da historiografia oficial, enfatizando ao contrário as grandes linhas de ação da política externa brasileira enquanto instrumento do desenvolvimento (ou do atraso) nacional. 

Com efeito, os trabalhos mais conhecidos no gênero — sejam os de finalidade essencialmente didática, como os manuais de Delgado de Carvalho e de Hélio Vianna, sejam os de cunho tradicional, como os de Pandiá Calógeras, que fez obra grandiosa e detalhada, embora restrita cronologicamente — concentraram-se essencialmente nos processos de natureza estratégica ou diplomática, isto é,  negociações políticas entre os poderes envolvidos, episódios militares, celebração de atos internacionais, atuação das chancelarias e dos dirigentes do Estado, enfim aquilo que os representantes da chamada école des Annales  designariam sob a rubrica histoire événementielle.

Na elaboração de uma nova metodologia para o estudo da política exterior do Brasil, os Autores operaram, antes de mais nada, uma reorientação da ênfase conceitual em que se basearam até aqui os estudos nessa área, deslocando o eixo analítico da tradicional “história diplomática” — e, portanto, privilegiando excessivamente as “relações entre Estados” — para o terreno mais amplo das “relações internacionais” da Nação, em seu conjunto, englobando, assim, os processos econômicos e as forças sociais em ação no caso brasileiro. 

Os autores dão maior atenção aos processos de natureza estrutural que sustentam a trama das relações internacionais do Brasil, buscando seus fundamentos nas chamadas “forças profundas” da história, para retomar o clássico conceito introduzido pelo historiador Pierre Renouvin, que Amado Cervo costuma citar em suas aulas de história das relações internacionais.  Eles explicitam seus objetivos da seguinte forma: “consolidar o conhecimento elaborado sobre as relações internacionais do Brasil e revestir a síntese resultante desse esforço com uma nova interpretação histórica” (p. 10).

A “consolidação do conhecimento” é realmente impressionante: são mais de 400 páginas de exposição rigorosa sobre as grandes tendências de nossa política externa, de 1822 ao final dos anos 80, com um tratamento sistemático dos grandes problemas estruturais e uma apresentação criteriosa dos fatos que dão sentido a cada conjuntura histórica particular.  À base desse trabalho monumental, mais de 340 títulos de obras diretamente relacionados com o objeto da pesquisa, cuidadosamente referenciadas em cada capítulo.  A organização do trabalho entre os dois autores evidencia uma divisão do trabalho segundo o princípio das “vantagens comparativas”: Amado Cervo, um especialista do período imperial, responsabilizou-se pela primeira parte, sobre a “conquista e o exercício da soberania”, que vai de 1822 a 1889.  Clodoaldo Bueno, cujos trabalhos de mestrado e dissertação doutoral cobrem o primeiro período da República Velha, trata do longo período republicano até o golpe de 1964, resumindo-o sob os conceitos de “alinhamento” e de “nacional-desenvolvimentismo”.  Amado Cervo, finalmente, retoma a pluma para a descrição do período recente, pós-64, caracterizado em política externa como o de um “nacionalismo pragmático”.

As conclusões dos Autores são um testemunho da “nova interpretação histórica” que eles procuraram oferecer: a política externa, num país como o Brasil, tem um caráter supletivo, dados os condicionamentos objetivos e a vontade política (ou sua ausência) que atuaram no processo de desenvolvimento nacional nestes últimos 200 anos.  Em outros termos, os avanços ou atrasos desse processo estão mais bem correlacionados com as fases de expansão ou mudança no sistema capitalista do que com um projeto nacional de desenvolvimento dotado de uma política internacional coerentemente aplicada pelas elites ao longo do tempo.  Estamos longe da visão triunfalista dos autores tradicionais. Mas, como diria o jovem Marx, na compreensão histórica de um problema, a crítica radical de seus fundamentos é condição essencial de sua superação.

 

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais

e ex-Professor de sociologia Política na UnB e no Instituto Rio Branco.

 

[Brasília, 2ª versão: 06.07.92]

[Relação de Trabalhos nº 259]





terça-feira, 2 de agosto de 2022

Apogeu e demolição da Política Externa, livro de Paulo Roberto de Almeida, por Ruben Maciel Franklin

Resenha de livro: 

Paulo Roberto de Almeida: 

Apogeu e demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira

Curitiba: Appris, 2021, 292p.

Ruben Maciel Franklin

 

Introdução 

 

Lançado em 2021, o livro Apogeu e demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira, do sociólogo e diplomata Paulo Roberto de Almeida, se propõe a elucidar os problemas centrais que percorreram as Relações Internacionais do Brasil nas últimas três décadas. Abrange, então, um período que vai desde a estabilização democrática, em meados dos anos 1990, até a implementação hodierna do programa fundamentalista e ideológico de Jair Messias Bolsonaro. 

O “apogeu”, para o autor, significou uma maior visibilidade de atuação do Itamaraty - o think tank do Ministérios das Relações Exteriores (MRE) -, a partir de relações consensuais e relativamente coordenadas entre os chefes de Estado e diplomatas. Tal situação havia adquirido ânimo com a presidência de Fernando Henrique Cardoso (1994 – 2002), e se manteve, mesmo com alguns reveses, nas orientações do Governo Lula (2003 – 2010) até o encerramento do lulopetismo, quando do impeachment de Dilma Rousseff e a breve promoção do vice-presidente Michel Temer. A partir de 2019, contudo, após o triunfo da candidatura de Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República, a Política Externa brasileira conheceria seus anos de “demolição”, sendo submetida a uma reformulação com base em teorias da conspiração que enxergavam o globalismo, o comunismo e o “marxismo cultural” como grandes inimigos do mundo ocidental, numa assimilação esquizofrênica dos slogans de Donald Trump e da extrema-direita estadunidense.

É verdade que o autor se concentra no tempo presente, o que lhe coloca diante das armadilhas de interpretar os eventos no “calor da hora”, quando as ações dos sujeitos históricos se mostram dúbias e atravessadas pelas motivações políticas e ideológicas de sua época. Por outro lado, ele também é bastante arguto em considerar as múltiplas e contraditórias relações temporais que influenciaram os itinerários da nossa diplomacia. Para ele,a compreensão do que significou (e do que significa) a ruptura bolsonarista só é possível mediante uma investigação que situe os conceitos fundamentais e as bases operacionais da diplomacia brasileira nos últimos dois séculos, isto é, a partir das experiências próprias dosurgimento da diplomacia profissional e do Estado independente pós-1822.

O autor

Paulo Roberto de Almeida é Licenciado em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1975), possui Mestrado em Planejamento Econômico e Economia Internacional (Universidade de Antuérpia, 1977) e Doutorado em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1984). Entre os anos de 1996 e 1997, elaborou tese no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco(IRBr), do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Diplomata de carreira, concursado em 1977, o autorexerceu diversos cargos na Secretaria de Estado do MRE e em embaixadas do Brasil no exterior, sendo ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington (1999- 2003) e Assessor Especial do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2003  2007)Entre agosto de 201e março de 2019, exerceu o cargo dediretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), da Fundação Alexandre Gusmão, órgão vinculado ao Itamaraty.

Econjunto com a carreira diplomática, ele acumulou vasta experiência na pesquisa e docência universitárias, destacando-se o período em que foi orientador no Mestrado em Diplomacia dIRBr, entre 2004 e 2009, e professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação em Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub), de 2004 a 2021.Desde o início dos anos 1990, publicou dezenas de livros e artigos em que investiga os mais diferentes objetos na disciplina das Relações Internacionais do Brasil: historiografia, integração regional e diplomacia econômica, além da produção de ensaios sobre história das ideias políticas. Seu livro Apogeu e demolição da Política Externa encerra um conjunto de cinco obras que ele denominou de ciclo bolsolavistaMiséria da diplomacia (2019), Uma certa ideia do Itamarat(2020), O Itamaraty num labirinto de sombras (2020) e O Itamaraty sequestrado (2021). Nestas, o autor avalia o processo deideologização da política externa a partir da eleição de Jair M. Bolsonaro, bem como suas implicações negativas para a identidade e performance do país nos foros multilaterais.

É importante frisarmos proeminência que o autor adquiriu no campo da historiografia brasileira das relações internacionais, sendo nome recorrente nas ementas de disciplinas universitárias, ao lado de outros intelectuaiscontemporâneos, tais como: Paulo F. Vizentini, Norman B. dos Santos e Henrique A. OliveiraSeu livro Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalizaçãolançado em 1998, é uma das poucas interpretações que realiza uma síntese histórica das relações internacionais do Brasil de modo a situar as linhas gerais de atuação da diplomacia e sua relevância nos projetos de formação da nação.

O(s) Contexto(s)

A publicação de Apogeu e demolição da Política Externa deve ser encarada como um projeto intelectual que reúne dimensões científicaspolíticas e ideológicasÉimpossível menosprezarmos o lugar social de seu autor, que é um diplomata de carreira, com décadas de experiência tanto no MRE quanto na docência universitária. É a partir desse lugar que ele investe contra as deformações da diplomacia brasileira inauguradas pelo governo de Jair M. Bolsonaro, sendo uma testemunha imediata das transformações ocorridas dentro do Itamaraty, assim como um investigador que procurasistematizar essa conjuntura de turbulências com relativograu de distanciamentoA tensão dialética entre subjetividade e objetividade está no escopo da obrae o autor nunca deixa que a sua defesa da tradição diplomática (isonomia, hierarquização, profissionalização) se reduza aterreno metafísicoAs feições da diplomacia bolsonarista são descobertas no campo teórico-metodológico das Ciências Sociais, pelo qual temos acesso aos modelos descritivos, comparativos e explicativos que apresentam os condicionantes históricos e as ações políticas que vieram a estabeleceo apogeu e demolição da política externa.

A polarização ideológicasobretudo, nas últimasdécadastrouxe implicações indeléveis sobre o papel das relações exteriores no tocante ao desenvolvimento social e econômico do país. A diplomacia se transformou numaplataforma de luta política no interior de uma democracia representativa e pluripartidaristaisto é, uma arena de embates sobre as alternativas e/ou caminhos de inserçãodo Brasil no capitalismo internacional. Quanto isso, o autor deixa entrever uma diplomacia que foiconstantemente sacrificada em prol de interesses ideológicos ou personalistas de algum presidente. ANova República, a partir dos anos 1980, fora gerida por uma diplomacia presidencial que oscilou entre abertura econômica e nacionalismo, o pragmatismo (FHC) o personalismo (Lula); não obstante, esse tipo de negociação se justificasse pela busca permanente dos interesses nacionaisNesse ínterimo livro averígua como a ascensão de uma nova direita, radical e sectaristacriouuma atmosfera favorável para o êxito eleitoral de Jair M. Bolsonaro e, consequentemente, de validação das teorias conspiratórias (marxismo cultural, anticomunismo e globalismo) que viriam demolir os pilares do Itamaraty.

Tem-se em vista, igualmente, a dinâmica de interação entre política interna e política externa, ocasião em que o autor desenvolve uma crítica mordaz ao negacionismo e revisionismo históricotáticas bolsonaristas que incidiram na desconstrução da imagem positiva do Brasil noexterior. A relativização da pandemia covid-19, a recusa da política ambiental e o desrespeito aos direitos dasminorias sociais (indígenas, quilombolas, mulheres, negros, LGBTQI+ etc.) implodiram o protagonismo da nação nos fóruns internacionais, transformando-a num pária diplomáticoÉ daí que Paulo Roberto de Almeida se ocupa de um novo planejamento estratégico para oMRE, almeja uma diplomacia profissional de caráter intelectualhierárquico e consultivo, imagina uma reviravolta na ideologização interna/externa e um conjunto de medidas outras no plano multilateral e de integração regional que reinventasse a projeção internacional do Brasil. 

A obra e comentários à mesma

Dos seis capítulos que compõem o livro, cinco deles analisam as diferentes conjunturas históricas da Política Externa brasileira. Eles possuem uma estrutura mais ou menos similar, embora com temáticas específicas (historiografia, periodização histórica, processos decisórios, diplomacia presidencial e profissionalização). Num primeiro momento, o autor se atém ao elitismo intelectual e aristocrático dos regimes monárquicos, depois passa um olhar sobre a orientação hierárquico-comercialista da República Velha (1889 – 1930), para, então, destacar o personalismo e a busca pela autonomia erguidas no varguismo (1930 - 1945). Mais adiante, ele desenvolve o significado de soberania, alinhamento, autonomia e/ou independência nacionais a partir do pragmatismo assumido pela Ditatura Militar (1964 – 1985), que, a despeito, abriria o horizonte para o status de profissionalização e unificação dos processos decisórios nos anos de redemocratização. 

Uma vez expostos as oportunidades e os obstáculos encontrados pela diplomacia brasileira naquela que seria sua tarefa máxima, a contínua modernização econômica, encontramos um sexto e último capítulo que mapeia as ações a serem executadas no intuito de reconstrução do papel do Itamaraty. É importante frisarmos a importância do sexto capítulo no quadro geral do livro, pois este funciona como uma agenda programática que informa alternativas para a superação daquilo que Paulo Roberto de Almeida chama de “antidiplomacia”, ou de “diplomacia bolsolavista”, isto é, as práticas megalomaníacas implementadas pela chancelaria de Bolsonaro (inspiradas nas ideais de Olavo de Carvalho) que contrariavam uma longa tradição de deferência ao Direito Internacional, de busca pelos interesses nacionais e de não-intervenção em assuntos externos. Sendo assim, obtemos um exame sucinto dos princípios que deveriam orientar as relações do Brasil no capitalismo globalizado, tais como multilateralismo, bilateralismo e regionalismo, além de proposições relativas às políticas públicas (meio ambiente, educação, renda social, combate à corrupção) a serem negociadas no âmbito de uma Política Externa que fosse conduzida como parte integrante de um projeto maisamplo de desenvolvimento nacional.

Quanto a isso, enxergamos igualmente uma ênfase sobre as “grandes linhas de atuação” da Política Externa, algo que percorre a obra como um todo. A começar pelo primeiro capítulo, intitulado “Relações Internacionais do Brasil: uma síntese historiográfica”, no qual o autor analisa um conjunto de obras que, desde meados do século XIX, interpretaram os contornos da história do Brasil tendo como medida o lugar de destaque assumido pelas Relações Internacionais. Nesse ponto, o autor demarca os pontos de inflexão de uma historiografia brasileira da Relações Internacionais, optando por uma breve análise daquelas obras que ele considera como sendo as “leituras panorâmicas” ou “sínteses históricas” de uma diplomacia com feições nacionais. 

Sua periodização se detém inicialmente na “fase historicista”, cujo principal nome é Francisco A. de Varnhagen, o qual elabora a uma leitura positivista e triunfalista do Brasil que é abraçada, posteriormente, pelos manuais escolares de João Ribeiro e de Oliveira Lima. Na sequência, uma “fase cientificista” seria protagonizada por Pandiá Calógeras, que, entre 1927 e 1933, publicaria os três volumes da História da Política Exterior do Império. Somente no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, como resultado das aulas ministradas no Instituto Rio Branco (IRBr), Delgado de Carvalho (1959) e Hélio Vianna (1961) publicariam seus manuais didáticos de história diplomática, num momento em que a diplomacia começaria a angariar algum espaço nas universidades. À revelia de sua metodologia linear, cronológica e descritivados eventos, ou seja, uma história essencialmente política, Paulo Roberto de Almeida assinala que “uma das características detectadas nesses trabalhos acadêmicos [“fase academicista”] foi o objetivo de identificar as grandes linhas da política externa brasileira, que teriam influenciado ou permitido (ou não) o atingimento da autonomia nacional” (ALMEIDA, 2021, p. 57). 

A historiografia, grosso modo, evidenciaria uma atuação propositiva e relativamente autônoma do Brasil cenário global. As leituras sobre o processo de independência, a descrição do funcionamento dos tratados comerciais e das questões em torno do tráfico atlântico, assim como das negociações relativas às fronteiras e circulação no Rio da Prata durante o século XIX, podem ser vistas como os primeiros ensaios de projeção da nação recém-independente. Uma disposição político-ideológica que fora acompanhada pelo historiador José Honório Rodrigues em suas notas de aula para o IRBr, datadas de 1946 a 1956, mas publicadas somente em meados dos anos 1990, como Uma história diplomática do Brasil. De acordo com Paulo Roberto de Almeida, os novos e originais manuais de História Diplomática, de Amado Cervo & Clodoaldo Bueno (1992) e Rubens Ricupero (2017), surgiriam apenas nos anos 1990, acompanhando as exigências do crescimento da área no ensino superior e agora sob a chancela teórico-metodológica do estruturalismo (“as forças profundas”), do desenvolvimentismo e da percepção de uma identidadenacional. Em resumo, um exame da historiografia seria a chave para compreendermos os objetivos permanentes (e nunca inteiramente alcançados) da política externa brasileira, “(...) como sendo a afirmação e a consolidação da independência nacional, bem como a busca do desenvolvimento econômico” (ALMEIDA, 2021, p. 57).

A obra em questão, Apogeu e demolição da Política Externa, poderia muito bem ser incluída nesse rol historiográfico. Em seu segundo capítulo, “As Relações Internacionais do Brasil em perspectiva histórica”, o autor esboça as linhas de continuidade e ruptura da diplomacia brasileira num exercício de periodização que se inicia no Império (1822 – 1889) e alcança a “antidiplomacia” bolsonarista. Ele percorre algumas etapas cruciais de evolução das Relações Internacionais, sempre colocando em relevo a condição inegociável de autonomia e reciprocidade no que se refere as escolhas estratégicas dos agentes e instituições no sentido de construção da Nação. Exemplo significativo seria o da Era Vargas, no qual a atuação engenhosa de Oswaldo Aranha garantiria a aliança com os Estados Unidos no contexto de Segunda Guerra (1939 – 1945) e, com isso, os subsídios necessários para a implementação de uma base siderúrgica. Até mesmo durante o Regime Militar, de viés autoritário e tecnocrata, houve um expediente de não alinhamento aos interesses imperialistas estadunidenses e manutenção de uma margem de liberdade para busca de novos mercados, além de elevada autonomia para o crescimento da diplomacia profissional.

A transição para o regime democrático em meados dos anos 1980, recebendo o legado terceiro-mundista e desenvolvimentista acalentando pelos militares, bem como o endividamento externo advindo das aventuras do “Brasil Grande Potência”, teve que ser amparada por uma diplomacia presidencial que se propusesse a inserir o país num plano mundial caracterizado pelo desaparecimento da URSS e expansão do capitalismo globalizado. Paulo Roberto de Almeida afirma que, entre 1985 e 2002, os chefes de Estado (Sarney, Collor e Franco), em especial,Fernando Henrique Cardoso, acionaram o staff diplomático para avançarem nos objetivos de abertura econômica e estabilização financeira. Daí saíra a criação de uma nova moeda, o Plano Real, além do ímpeto pelas negociações inter-regionais e busca pela integração na América do Sul (MERCOSUL). 

Essa diplomacia presidencial teria sua culminância na presidência de Lula, o qual, a partir de 2003, inaugurou uma espécie de diplomacia às avessas, onde as decisões partiam do chefe de governo na direção dos secretários e diplomatas. Altos investimentos publicitários na figura do Presidente, seguindo-se de visitas aos líderes de países vizinhos ou das grandes potências, trouxeram uma “roupagem personalista” no exercício diplomático. Um tipo de diplomacia cujas metas se confundiam com a plataforma ideológica do Partido dos Trabalhadores (PT), isso em seu apoio aos candidatos progressistas na América Latina e a abertura de embaixadas em países africanos e asiáticos, o que, em teoria, criaria um ambiente de relações amistosas no âmbito do Sul Global. O lulopetismo, de tal modo, cultivou suas próprias antinomias em matéria de Política Externa: foi personalista, mas intensificou as relações bilaterais e multilaterais; projetou uma dinâmica de interação Sul-Sul, sem que isso fosse revertido em saltos mais significativos na integração regional ou redefinição do lugar periférico ocupado pelo Brasil nos organismos internacionais. 

É preciso ressaltar que o Itamaraty, nesse período, se mantivera como lugar de razoabilidade, resguardando seus matizes de multilateralismo e isonomia nos processos decisórios. Algo que foi preconizado no curto intervalo de tempo em que Michel Temer esteve à frente do governo, quando parecia que a Casa finalmente retornaria aos seuspadrões tradicionais de disciplina e hierarquização. Não obstante, a corrida eleitoral de 2018 e sua manifesta polarização entre esquerda e direita, colocaria as Relações Internacionais no “olho do furacão”. A vitória de um candidato de extrema-direita, Jair Messias Bolsonaro, sem que apresentasse qualquer programa relativo à Política Externa, colocaria em xeque as raízes históricas e fundacionais da diplomacia nacional.

Inicia-se, então, o que Paulo Roberto de Almeida anuncia como a “diplomacia bizarra” de Bolsonaro, com a adoção de métodos e discursos “nunca antes” vistos em matéria de defesa dos interesses nacionais. Primeiramente, o diplomata recai sobre o inútil programa de Política Externa apresentando junto ao TSE, o qual se parecia mais com um panfleto partidário baseado em abstrações teóricas e revanchismos ideológicos. A ideia era romper com os princípios de cooperação e de não-intervenção, anulando os conceitos de multilateralismo e universalismo do Itamaraty ao sugerir uma subserviência inédita aos Estados Unidos, naquele momento representando pela figura de Donald Trump. Na prática, os primeiros anos de governo Bolsonaro reduziram o Brasil à condição de “pária internacional”. Além da descortesia do Presidente com os líderes estrangeiros (França, Alemanha, Chile) e do crasso louvor às ditaduras, o que se viu foi um negacionismo em questões extremamente relevantes da política exterior, como Meio Ambiente, Direitos Humanos, e, sobretudo, na ausência de mecanismo de combate à pandemicovid-19.

No terceiro capítulo, “Processos decisórios na história da Política Externa brasileira”, obtemos um quadro geral de como o fundamentalismo olavista (“o bolsolavismo”) demoliu a estrutura orgânica – formalizada, hierarquizada, burocratizada – do MRE. Na contramão de reconhecida profissionalização dos “negócios do exterior” que, desde o final do século XIX, se pautava na seleção e formação de diplomatas, aspecto que se consolidou quando da criação do IRBr, em 1945, Bolsonaro iniciou uma reformulação drástica nos quadros decisórios do Itamaraty no sentido de atender às demandas de sua “franja lunática”.

A ausência de qualquer sinal aparente de processo decisório no governo de Bolsonaro – que, na verdade, representa um amálgama altamente diversificado de grupos de influência, sem qualquer qualificação intelectual reconhecida, com grande ênfase em círculos conservadores ou de extrema-direita, quando não reacionários e saudosistas da ditadura militar – pode ser aferida antes mesmo do início do seu governo, quando o candidato e membros da sua esfera familiar começaram a anunciar as grandes linhas de um governo que já prometia, de imediato, estremecer as bases tradicionais de funcionamento das políticas públicas, em particular da política externa. Com efeito, desde vários meses antes de sua eventual eleição já se sabia que o candidato, deum anticomunismo primário que faria corar os generais mais comprometidos com a ditadura militar, exibia, em qualquer ordem que se queira destacar, as seguintes “peculiaridades”: notória ojeriza à China comunista; uma especial admiração por Israel e pelos Estados Unidos (mas em especial pelo presidente Trump); que ele odiava o “marxismo cultural” das universidades brasileiras, o “politicamente correto” dos círculos progressistas, intelectuaise da esquerda em geral; que ele detestava todas as medidas em favor de minorias – sua homofobia foi várias vezes ressaltada, por ninguém menos do que ele mesmo –, com ênfase nos direitos indígenas, das mulheres, de eventuais contraventores (naquela visão fascista de que “bandido bom é bandido morto”); que desprezava qualquer compromisso com políticas de sustentabilidade (um conceito para ele não só inexistente, como sobretudo impertinente); que pretendia retomar a exploração de áreas protegidas; que pretendia abolir determinadas medidas protetivas no campo da fiscalização dessas áreas; que estimulava abertamente o armamentismo, os infratores de normas legais (tráfico, caça e pesca etc.) e várias outras coisas mais, num catálogo bastante amplo de “inovações” conceituais e práticas(ALMEIDA, 2021, p. 143 e 144)

Já no terreno da Política Externa, 

(...) também se sabia que o presidente e seu chanceler designado pretendiam dar combate direto à “esquerdalha” latino-americana, escorraçar o Foro de São Paulo do continente – sob recomendação do seu guru sempre elogiado, o sofista expatriado na Virgínia – e pretendiam fazer aliança com outros líderes de direita da região e fora dela. A violação dos processos decisórios típicos do Itamaraty teve início ainda antes da assunção do governo, quando um grupo de neófitos e amadores, acompanhados por não mais do que três diplomatas engajados na nova equipe, conduziu à mais radical reforma da estrutura e dos procedimentos no Itamaraty, sem qualquer consulta à Casa, a qual “desabou” sobre a instituição nos primeiros dias do bizarro governo: para sinalizar “mudança radical”, todos os nomes de todas as unidades do organograma do Itamaraty foram alterados (em alguns casos com substitutivos absolutamente ridículos, abusando do conceito de soberania, por exemplo), o que poderia representar, talvez, uma mera mudança cosmética, mas que na prática significou a alteração de vínculos de subordinação e uma pequena revolução na estrutura do processo decisório, justamente. Divisões foram extintas, outras criadas, ao sabor das alucinações da pequena patota que trabalhou clandestinamente, ou pelo menos em segredo, no âmbito da equipe de transição: todos os relatórios sobre o “estado da arte” da agenda diplomática em curso foram prestados pelo governo Temer e pelo Itamaraty do ministro Aloysio Nunes, mas supõe-se que pouco foi utilizado naquelas poucas semanas febris (ALMEIDA, 2021, p. 144).

 

De algum modo, Jair Messias Bolsonaro pode ser encaixado no conceito de “diplomacia presidencial”, que éo mote central do quarto capítulo, “A política da Política Externa: as várias diplomacias presidenciais”. O que lhe diferencia do protagonismo de outros presidentes na história da República (Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Ernesto Geisel, José Sarney, Fernando H. Cardoso e Lula), é a completa inversão da tendência de autonomização e busca do universalismo nos acordos geopolíticos. Enquanto os governos anteriores investiram sua personalidade na defesa de um projeto demodernização econômica e ampliação da rede de negócios internacionais, o radicalismo de Bolsonaro tendia a fazer do país uma extensão da política exterior dos Estados Unidos. Em resumo, o personalismo autoritário bolsonarista erigiu uma Política Externa publicista, ideologista, conspiratória, reducionista, subserviente e amadora. Nas palavras de Paulo Roberto de Almeida (2021, p. 195), “se existe alguma liderança presidencial, é no sentido da destruição, da demolição das políticas e das instituições existentes, com arremedos de ações disparatadas em seu lugar”.

Balanço 

A “antidiplomacia” a que o autor faz alusão se justifica pelo isolacionismo a que o Brasil foi submetido no que concerne aos principais debates internacionais sobre educação, meio ambiente, aquecimento global, direitos humanos e políticas sociais voltadas para às minorias (negros, indígenas, mulheres etc.). A postura negacionista com relação a essas pautas, somando-se a constante atmosfera de animosidade e de ruptura com os governos progressistas sul-americanos, trouxe enormes prejuízos à imagem do Brasil. A curto prazo, os surtos ideológicos do Presidente inviabilizaram acordos vantajosos entre Mercosul e União Europeia, reduziram a potencial de comercialização de gêneros alimentícios com a China, entre outros parceiros dito “comunistas”, além de ter impulsionado a crise de uma economia já duramente atingida pela pandemia.

Os “anos Bolsonaro” talvez sejam aqueles que melhor representam “O outro lado da glória: o reverso da diplomacia brasileira”, que é justamente o objeto de análise do quinto capítulo. Em duzentos anos de História Diplomática, é certo que o Brasil conheceu uma série de reveses: os tratados comerciais com a Inglaterra no início do século XIX, as etapas de alinhamento americanista no Império e na Primeira República, o endividamento externo do nacional-desenvolvimentismo (de JK aos militares), e, sem dúvida, os avanços e recuos ideológicos das várias diplomacias presidenciais. Todavia, seguindo a trilha do autor de Apogeu e demolição..., nenhum dos fracassos demarcados anteriormente se compara a total deformação das Relações Internacionais do tempo presente. Sua frente capital, a aversão ao “globalismo” (numa leitura superficial sobre ideologia de gênero, multilateralismo, ambientalismo, “marxismo cultural” etc.), visto como um dos pilares de destruição do ocidentalismo, significara uma derrapagem nos julgamentos racionais que nortearam a tradicional diplomacia brasileira. Desse modo, somente um “planejamento estratégico” poderia restaurar as funções de representação, comunicação e negociação do Itamaraty, no sentido de acentuar a inserção internacional do país. A superação desses anos de espetáculo obscurantista teria que vir pela adesão ao Direito Internacional, a construção de parcerias heterogêneas (regionais, continentais e intercontinentais), a previsão de entrada em blocos estratégicos, uma abertura econômica gradual e, por fim, um compromisso com os valores que regem as constituições democráticas. 

Segundo Paulo Roberto de Almeida, a diplomacia não pode alcançatais objetivos isoladamente. Ela é uma das ferramentas subsidiárias que pode influir (ou não) em programas políticos e/ou escolhas vantajosas aos níveismicro e macro. Sua contribuição na elaboração de umprojeto de desenvolvimento social e econômico depende das articulações entre governantes, instituições, sociedade civil e elites locais, observando-se, então, as condiçõesobjetivas de inserção da nação num sistema capitalistaglobal e em contínua transformação. 

 

 

Ruben Maciel Franklin

Universidade da Integração da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), Ceará, Brasil

Bolseiro de estágio de Pós-Doutorado na Universidade de Coimbra, CEIS20, FLUC

rubenmaciel@unilab.edu.br

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