Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Leio, num resumo do Mein Kampf, publicado no França em 1939, este aqui:
Publicado em 1939, pouco antes do início da guerra de Hitler.
o programa do Partido Operário Alemão, lido pelo próprio Hitler, o sétimo integrante do partido, no dia 24 de fevereiro de 1920, numa cervejaria de Munique, o início de sua conquista do partido, que o lançaria como Führer alguns anos depois.
- nacionalização dos trusts
- eliminação das grandes lojas
- confisco das fortunas feitas durante a guerra [de 1914-18]
- abolição da taxa de juros e da especulação em bolsa
- socialização dos bancos e toda a indústria
- restabelecimento da autoridade absoluta do Estado
- unificação e centralização do Reich
- expulsão dos judeus
- eliminação dos parlamentos locais
- reconstrução das Forças Armadas, mais poderosa do que em 1914
- dissolução dos sindicatos marxistas
- abolição das cláusulas financeira , militares e territoriais do Tratado de Versalhes.
Essa foi a base do nacional-socialismo, tal como Hitler o forjaria, durante os anos 1920, com a transformação do antigo Partido Operário Alemão em NSADP: Nationalsozialistiche Deutsche Arbeiterpartei.
O que Hitler acrescentou ao Partido foi, além do socialismo-nacional, a firme determinação de que o partido deveria ter um único líder, ele, e os princípios do Lebensraum, do espaço vital, que deveria ser conquistado pela força na direção do leste, isto é, da Rússia bolchevique, dominado pelo marxismo judeu, e, mais importante, a eliminação dos judeus da nação germânica unificada, o que ele concebia não apenas como um dever do Reich alemão, mas como um favor que a Alemanha faria ao mundo inteiro.
Tudo isso seria explicitado no dois volumes do Mein Kampf (1925 e 1926) que ele compôs depois de sair de uma brevíssima prisão, após o putsch fracassado de 1923, feito a partir de uma cervejaria de Munique. A bandeira foi adotada mais tarde, e transformada em bandeira do Reich, a partir de 1933.
A Newsletter da Conib – Confederação Israelita do Brasil – publicou recentemente (11/01/2022) uma resenha crítica da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro ao artigo dos historiadores Fabio Koifman e Rui Afonso, num livro publicado a propósito da controversa questão dos vistos concedidos no Consulado do Brasil em Hamburgo por uma funcionária, em 1939-41, que viria a casar-se com o escritor Guimarães Rosa, Aracy Moebius de Carvalho.
Nessa resenha Tucci Carneiro tece críticas aos dois historiadores que um dos organizadores do livro, o historiador Avraham Milgram, achou tremendamente injustas, mas não apenas isto, totalmente equivocados e indignas de uma resenhista séria. Avraham Milgram tentou que a CONIB publicasse suas observações a essa resenha distorcida, o que a CONIB recusou fazer, para não "aumentar a polêmica", justificaram-se os editores.
Em consequência Avraham Milgram resolveu divulgar suas respostas, que eu recebi, como abaixo. Em nome da honestidade intelectual, publico suas respostas ao artigo, uma vez que a Newsletter da CONIB, tendo feito o agravo, recusou-se a publicar estas respostas.
Paulo Roberto de Almeida
Resposta à historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro na polêmica sobre a série lançada pela TV Globo, publicada no Newsletter da CONIB em 11 de janeiro de 2022.
Sou Avraham Milgram, historiador aposentado do Yad Vashem que supostamente não deveria me envolver na "polêmica sobre a série lançada na TV Globo", principalmente por ser um evento que ocorre no Brasil, enquanto eu vivo em Israel. Porém, querendo ou não, me encontro envolvido visto que publicamos, Anat Falbel, Fábio Koifman e eu, o livro Judeus no Brasil história e historiografia – ensaios em homenagem a Nachman Falbel (Rio de Janeiro: Garamond 2021), que inclui o artigo dos historiadores Fábio Koifman e Rui Afonso "Os vistos concedidos no consulado de Hamburgo 1938-1939" pp. 123-156
Neste estudo, excepcionalmente documentado, os autores demonstram que todos os vistos outorgados a judeus perseguidos através daquele consulado foram concedidos legalmente de acordo as diretrizes do Itamaraty, pelos cônsul-geral Souza Ribeiro, indubitavelmente antissemita, e pelo vice-cônsul, o prestigiado escritor João Guimarães Rosa que viria a casar com Aracy Moebius de Carvalho, funcionária e secretária do consulado. Um destes vistos concedido a Margarethe Levy, que testemunharia a favor de Aracy no dossiê do Yad Vashem, tinha seu passaporte carimbado com o "J" vermelho, detalhe importante, vejam p. 129, nota 13 e p. 135 do referido artigo. A documentação analisada pelos historiadores, mostra que os procedimentos legais que permitiram a saída de Margarethe Levy, bem como a de outros testemunhos era no entanto desconhecida pela comissão jurídica que reconheceu Aracy como Justa das Nações no início dos anos 1980. Não se trata de inculpar a dita comissão pelo desconhecimento do que hoje nos é revelado pelo artigo documentado em base ao arquivo do Itamaraty, que efetivamente, não se limita a homenagem concedida à Aracy de Carvalho. Diria até que este último é um mero detalhe, importante para a memória e menos para a história. O principal, para aqueles poucos que acompanham esta polêmica, se refere aos procedimentos do Itamaraty, ou seja, a implementação dos vários decretos leis e o emaranhado de diretrizes, ordens, circulares, telegramas que envolviam os cônsules no exterior e não apenas no consulado em Hamburgo no final da década de 1930. Esta complexidade foi destrinchada em grande parte, senão na sua totalidade, no artigo dos dois historiadores o brasileiro Koifman e o português Rui Afonso. Todavia, há questões não resolvidas, que provavelmente jamais serão. Por exemplo, quais foram os motivos que levaram beneficiários de vistos brasileiros legais outorgados em Hamburgo a solicitar o reconhecimento da Aracy de Carvalho como Justa das Nações? Estas e outras questões de teor histórico constituem o trabalho dos historiadores. Saber, conhecer, enriquecer o conhecimento, compreender o comportamento humano, desmistificar crenças e buscar a verdade são a raison d'être de cientistas sociais. É isto que aprenderam nas universidades: questionar, inquirir, escavar arquivos, ler toneladas de papéis velhos, num diálogo constante com o passado para decifrar o presente. Aqui chegamos ao âmago da questão, o confronto e desafio da história vis-à-vis da memória.
Considerando o estudo publicado de Fábio Koifman e Rui Afonso por um lado e minha expertise sobre o Holocausto por outro, faço os seguintes comentários à crítica da historiadora Tucci Carneiro:
1. "na mesma ocasião em que foi homenageado o embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas. Ambos, Souza Dantas e Aracy, têm em comum o fato de 2 transgredirem as normas antissemitas das Circulares Secretas impostas pelo governo Vargas a partir de 1937".
Resposta: Aracy foi homenageada em 1982 e Souza Dantas em 2003, mas o que deve ser salientado é que este último sim transgrediu as normas do Itamaraty a ponto do embaixador ter sido repreendido e enfrentado um processo administrativo, enquanto Aracy nem foi repreendida, e não porque ela agiu na surdina, mas porque efetivamente não houve transgressão da sua parte no que diz respeito às diretrizes que restringiam a concessão de vistos a "semitas".
2. "Questionar “o heroísmo” de Aracy de Carvalho e a “verossimilhança da narrativa” com a realidade dos fatos, como foi feito em algumas das críticas, pode ainda abrir caminho para o discurso que nega o Holocausto".
Resposta: O trabalho de investigação dos historiadores não tem absolutamente nenhuma relação com a negação do Holocausto, pois a sua pesquisa está inserida na história do Nazismo e da perseguição aos judeus, da política de teor antissemita de restrição a sua entrada no Brasil, e na análise dos procedimentos de concessão de vistos do consulado brasileiro em Hamburgo. Onde exatamente se encontra a má fé e o antissemitismo que motivaria os negadores do holocausto? Seria o caso de verificar no google o que significa negação do Holocausto. Me admira a falta de compreensão de algo tão simples e evidente, além de constituir uma acusação difamatória contra os historiadores Fábio Koifman autor do livro sobre o embaixador Luís de Souza Dantas e Rui Afonso, autor de obras sobre o Justo português, o cônsul Aristides de Sousa Mendes (Um homem bom e Injustiça).
3. "A historiografia brasileira tem comprovado com base em documentos pesquisados junto ao Arquivo Histórico do Itamaraty que, ao facilitarem os vistos de imigração aos judeus perseguidos pelos nazistas, os diplomatas e funcionários brasileiros em missão no exterior corriam risco de vida, de prisão e, até mesmo, de perderem seus cargos sob pena de sofrerem um processo administrativo como ocorreu com Souza Dantas".
Resposta: Absolutamente errado. Nenhum diplomata brasileiro correu perigo, seja porque usufruíam de imunidade diplomática, seja por conta da Judenpolitik da Alemanha Nazista que visava escorraçar os judeus do território alemão. Nenhum diplomata estrangeiro correu perigo por auxiliar os judeus perseguidos. O cônsul chinês em Viena, Feng Shan Ho, concedeu centenas de vistos para judeus que lhes possibilitaram entrar em Shanghai ao mesmo tempo em que Eichmann se empenhava dia e noite para expulsá-los da Áustria. Eichmann certamente ficou feliz com o procedimento do cônsul chinês, bem como do cônsul-geral dos EUA, John Wiley, que ao testemunhar a brusca e violenta perseguição contra os judeus nas ruas de Viena buscou explorar ao máximo as possibilidades de ajuda humanitária aos requerentes de vistos, empenhando-se em agilizar e facilitar o processo de aprovação desses vistos sem infringir as normas estabelecidas pelo State Department. Algum deles sofreu por isto? Nenhum, com exceção do cônsul português Aristides de Sousa Mendes e o embaixador brasileiro Luís de Souza Dantas, porém não pelos nazistas, foram justiçados por Oliveira Salazar e Getúlio Vargas.
4. "E, se até o presente momento, conhecemos apenas alguns nomes daqueles que conseguiram os “vistos de salvação” com a ajuda de Aracy, é pelo fato dela não ter autorização para assinar os documentos diplomáticos por ser funcionária da sessão de passaportes do Consulado Geral do Brasil em Hamburgo".
Resposta: É claro que Aracy não estava autorizada a assinar passaportes, visto que era secretária. No entanto, com os resultados da pesquisa de Koifman e Afonso, conhecemos um número grande de nomes, as circunstâncias e o modus operandi da concessão de vistos brasileiros, todos legais, (vejam pp. 154-156), procedimentos que Aracy não esteve envolvida.
5. "Aracy, além dos vistos, conseguia forjar passaportes sem o “J” vermelho que, se mantidos, denunciariam a identidade judaica do seu portador às autoridades consulares e nazistas".
Resposta: Absolutamente errado. Mesmo aqueles judeus que testemunharam alegando que Aracy "forjava passaportes sem o 'J' vermelho", entraram no Brasil com o 'J' vermelho nos seus passaportes, inclusive aqueles poucos que solicitaram seu reconhecimento no Yad Vashem. Aracy forjava passaportes sem o 'J' vermelho? Efetivamente, nas toneladas de livros de história sobre o Holocausto jamais foi mencionado ou reconhecido algo do gênero. E os nomes "Sara" e "Israel" apostos nos passaportes com o mesmo objetivo de identificar a origem judaica dos seus portadores? Pergunto, Aracy também fazia-os desaparecer dos passaportes dos judeus? Se assim fosse, seria porque haviam filo-semitas, corruptos ou antinazistas no ministério do Interior do 3o. Reich...! Nem um e nem outro. Não tenho outro termo para definir este argumento senão fake news.
6. "No entanto, se contabilizarmos as assinaturas do cônsul Guimarães Rosa nas Fichas Consulares de Imigração emitidas entre 1938 e 1942, certamente teremos uma dimensão aproximada dos judeus salvos pelo casal. Algumas destas fichas estão disponíveis na Base de Dados Arqshoah: www.arqshoah.com."
Resposta: O fato das assinaturas de Guimarães Rosa constarem nos passaportes não atesta que estes vistos foram outorgados ilegalmente contra as diretrizes do Itamaraty, para um melhor entendimento, é necessário ler o artigo dos dois historiadores acima mencionado.
7. "Pergunto: os críticos negam (ou desconhecem?) a veracidade dos testemunhos sob a guarda do Yad Vashem, assim como as gravações realizadas pelo projeto coordenado por Steven Spielberg junto a Shoah Foundation, as pesquisas da historiadora Mônica Raisa Schpun (autora do livro “Justa”) e as entrevistas gravadas pela equipe Arqshoah/Leer-USP?"
Resposta: Muito pelo contrário. Os historiadores não só não negam os testemunhos como estes últimos corroboram e comprovam o que Koifman e Afonso alegam sobre a legalidade dos vistos concedidos aos autores dos testemunhos. Por exemplo, na p. 135 (idem nas pp. 146-147): "Não por acaso, no depoimento de Margarethe Levy, que se encontra no dossiê do Yad Vashem, ela mencionou o depósito que o casal realizou em troca da concessão de um visto, como também a transferência de valores de outros judeus alemães que obtiveram visto naquela oportunidade, exatamente os que o cônsul informou e solicitou instruções ao MRE. Mais do que isso, Souza Ribeiro ainda anotou nos passaportes do casal Levy, conforme as ordens que recebeu: Temporário—Visado conforme o que dispõe o artigo 280 do decreto no. 3.010, de 10 de agosto de 1938. Temporário para ser regularizado no Brasil. Foi efetuado o depósito de 98:860$000 (noventa e oito contos, oitocentos e sessenta mil reis) no Banco do Brasil em S. Paulo, dinheiro proveniente do Estrangeiro, conforme carta de 26-9-1938 desse Banco, arquivado neste Consulado Geral. (Ass.) S. Ribeiro".
Quem não conhece e nega os conteúdos dos testemunhos do dossiê do Yad Vashem é Tucci Carneiro. Mas nunca é tarde para conhecer e estudar este dossiê, assim como a documentação do Itamaraty! E não seria demasiado a Tucci Carneiro ler (e aprender) com o artigo mencionado, nem que fosse para tomar conhecimento da seriedade, profundidade e densidade documental que há nele, e jamais julgar às cegas.
8. "Ressalto aqui o valor pedagógico da série Passaporte para a Liberdade que, certamente, serve de alerta para os perigos do antissemitismo assumido como política do Estado alemão entre 1933-1945, e reforça a importância da solidariedade em tempos sombrios."
Resposta: Este é um ponto a favor de Tucci Carneiro que ela soube pontuar. Como ultimamente a Globo afirmou, se trata de uma série de ficção, e neste contexto, como Tucci Carneiro, eu também estimo o valor educativo da minissérie televisiva para informação e formação ética e civil das gerações de hoje e futuras. O que incomoda a autora da crítica à crítica é a desmistificação da concessão ilegal de vistos referida à Aracy, que enfraquece o teor historiográfico - ideológico e denunciativo - de Tucci Carneiro que etiquetou a predominância absoluta do antissemitismo nas elites políticas do Estado Novo. Todavia, se o leitor quiser compreender como foi possível a presença do discurso oficial sigiloso antissemita (ideologia) no milieu do Itamaraty e consulados no exterior, paralelamente a predominância de muitas ambiguidades e da permissividade relativa na concessão de vistos (práxis), o artigo de Fabio Koifman e Rui Afonso é um prato cheio. Exemplo de historiografia inteligente e honesta.
Avraham Milgram
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Historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro critica polêmica sobre série lançada pela TV Globo
A historiadora da USP Maria Luiza Tucci Carneiro, autora de obras como “O Antissemitismo na Era Vargas” e “Os Dez Mitos sobre os Judeus”, em que analisa os mitos mais populares sobre os judeus e o que chama de “proliferação do antissemitismo” no mundo atual, criticou a polêmica sobre a série “Passaporte para Liberdade”, lançada pela TV Globo em 20 de dezembro de 2021. Em artigo encaminhado à CONIB, ela afirma:
A recente polêmica sobre a série Passaporte para Liberdade, lançada pela TV Globo em 20 de dezembro de 2021, coloca em dúvida as ações salvacionistas de Aracy Moëbius de Carvalho reconhecida como “Justa entre as Nações”. Este título lhe foi concedido pelo Yad Vashem em Jerusalém, em 8 de julho de 1982, na mesma ocasião em que foi homenageado o embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas. Ambos, Souza Dantas e Aracy, têm em comum o fato de transgredirem as normas antissemitas das Circulares Secretas impostas pelo governo Vargas a partir de 1937. Questionar “o heroísmo” de Aracy de Carvalho e a “verossimilhança da narrativa” com a realidade dos fatos, como foi feito em algumas das críticas, pode ainda abrir caminho para o discurso que nega o Holocausto. A historiografia brasileira tem comprovado com base em documentos pesquisados junto ao Arquivo Histórico do Itamaraty que, ao facilitarem os vistos de imigração aos judeus perseguidos pelos nazistas, os diplomatas e funcionários brasileiros em missão no exterior corriam risco de vida, de prisão e, até mesmo, de perderem seus cargos sob pena de sofrerem um processo administrativo como ocorreu com Souza Dantas. E, se até o presente momento, conhecemos apenas alguns nomes daqueles que conseguiram os “vistos de salvação” com a ajuda de Aracy, é pelo fato dela não ter autorização para assinar os documentos diplomáticos por ser funcionária da sessão de passaportes do Consulado Geral do Brasil em Hamburgo. Na documentação do Arquivo Histórico do Itamaraty no Rio de Janeiro, não há indícios do envolvimento direto de Guimarães Rosa com as ações salvacionistas de Aracy, pois certamente, os devidos cuidados foram tomados pelo casal, tendo em vista as restrições impostas pelo Itamaraty. Aracy, além dos vistos, conseguia forjar passaportes sem o “J” vermelho que, se mantidos, denunciariam a identidade judaica do seu portador às autoridades consulares e nazistas. No entanto, se contabilizarmos as assinaturas do cônsul Guimarães Rosa nas Fichas Consulares de Imigração emitidas entre 1938 e 1942, certamente teremos uma dimensão aproximada dos judeus salvos pelo casal. Algumas destas fichas estão disponíveis na Base de Dados Arqshoah: www.arqshoah.com. Aliás, este é o contexto histórico que dá sustentação à construção da narrativa da série Passaporte para Liberdade criada por Mario Teixeira com a colaboração da inglesa Rachel Anthony e a direção de Jayme Monjardim. Ainda que baseada em fatos reais registrados pelo Yad Vashem, uma novela ou filme tem a permissão de adentrar ao campo da ficção, desde que não abra caminhos para o negacionismo e não fragilize o valor dos testemunhos dos sobreviventes do Holocausto. Sabemos que a narrativa da série Passaporte para Liberdade baseou-se nos testemunhos registrados no Yad Vashem e em documentos pesquisados no acervo da família Tess para reconstituir a história de Aracy e de Guimarães Rosa em Hamburgo, Além destes registros, recorreram também à assessoria de historiadores e sobreviventes do Holocausto com o objetivo de evitar a distorção dos fatos e favorecer os discursos negacionistas que atentam contra a veracidade do Holocausto. Ao colocarem em dúvida as ações salvacionistas de Aracy (tratadas como “mito” por falta de comprovação), extrapola-se o campo da crítica historiográfica, investindo contra o valor dos testemunhos daqueles que foram salvos graças aos vistos concedidos (e assinados) por Guimarães Rosa durante o período em que ele esteve à frente do Consulado Brasileiro de Hamburgo: 1938-1942. Pergunto: os críticos negam (ou desconhecem?) a veracidade dos testemunhos sob a guarda do Yad Vashem, assim como as gravações realizadas pelo projeto coordenado por Steven Spielberg junto a Shoah Foundation, as pesquisas da historiadora Mônica Raisa Schpun (autora do livro “Justa”) e as entrevistas gravadas pela equipe Arqshoah/Leer-USP? Como já escrevi, “os caminhos de liberdade abertos por Aracy e Guimarães Rosa garantiram a preservação da vida de milhares de cidadãos que, naquele momento, emergiam como vítimas da ignorância nazista. Pelas trilhas dos excluídos transitaram grupos heterogêneos que, segundo a classificação totalitária, não eram dignos de continuar vivendo na sociedade alemã. As intermináveis filas de refugiados nos oferecem uma verdadeira tipologia da exclusão, delineada pelo emprego da violência, do terror, da pseudociência, da censura e da mentira, entre tantos outros artifícios totalitários.” Ressalto aqui o valor pedagógico da série Passaporte para a Liberdade que, certamente, serve de alerta para os perigos do antissemitismo assumido como política do Estado alemão entre 1933-1945, e reforça a importância da solidariedade em tempos sombrios.
Liberais tendem, eu sei, a conceder primazia ao indivíduo sobre entidades coletivas. Como se diz: a menor minoria é o indivíduo, uma simples pessoa humana, que sempre deve ser protegida contra certos desvarios da coletividade, como fundamentalismo religioso, sectarismo e intolerância política, preconceitos raciais, étnicos, comportamentais de diversos tipos. O liberalismo clássico emergiu na consciência coletiva justamente pela sua defesa do individualismo, e portanto são os indivíduos que devem ser protegidos e, eventualmente, homenageados, pelas realizações, descobertas, inovações, progressos científicos e morais que fizeram em benefício de toda a humanidade.
Não vou agora fazer uma lista desses benfeitores, mas meu critério básico é o de ver, identificar, denominar aqueles que mais vidas salvaram, mais bem-estar trouxeram a seus semelhantes, sem necessariamente buscar a glória, a riqueza ou o prestígio universal. São pessoas que se dedicaram a salvar vidas, a proteger os indefesos, a elevar os padrões morais, espirituais, educacionais, eventualmente científicos, da espécie humana, aquilo que se poderia chamar de Humankind.
Sócrates entra numa categoria especial, ao defender a lógica elementar, a simples racionalidade, como critério básico do entendimento humano sobre as coisas dos homens. Confúcio entra em outra categoria especial, ao enunciar certos códigos de conduta que deveriam orientar as pessoas no seu relacionamento com os semelhantes, com os pais e com os seniores, ademais de relembrar aos poderosos, aos dirigentes, as responsabilidades que eles sempre têm com relação ao povo mais simples (aspectos por vezes eludidos em sua filosofia moral). Cristo é certamente um grande benfeitor da humanidade, ao pregar o amor e a fraternidade, mesmo para com o opressor, rompendo com a Lei do Talião, que era a do seu povo original; costumes bárbaros de sacrifícios humanos passaram a ser repelidos com vigor, ainda que o fanatismo religioso tenha provocado milhões de vítimas nos séculos que se seguiram à disseminação do cristianismo. Leonardo da Vinci, Fernão de Magalhães, o grande inventor e o primeiro globalizador – ou globalista, ainda que ambicioso – entram, para mim, naquela categoria de intrépidos aventureiros do saber, da descoberta, da inovação, da coragem e da ousadia.
Se eu fosse um economista, e não o sociólogo meio marxista que sou, talvez eu colocasse Adam Smith entre esses grandes benfeitores da humanidade, ao ter rechaçado com vigor o mercantilismo egoísta e proclamado as virtudes do livre comércio, não apenas para ganhos materiais, mas também para benefícios morais. Fez mais para os progressos materiais de muitos povos – a começar pelo seu, o escocês, depois os ingleses e, finalmente britânicos, que talvez se dividam agora novamente – do que os socialistas utópicos (ainda que bem intencionados) e outros igualitaristas econômicos, atualmente representados pelos mesmos obtusos anticapitalistas que se disseminaram na esteira de Marx.
Mas ficando apenas na vertente propriamente científica, a que mais salvou milhões de seres humanos, ou diminui-lhes o sofrimento em virtude de doenças endêmicas e epidêmicas, temos vários inventores de vacinas, de antibióticos, ou de inovações no campo da agricultura, das ciências naturais, que merecem figurar no rol de benfeitores da humanidade: Pasteur, Sabin, Pauling e muitos outros, cujos nomes desconheço por não trabalhar no campo dessas ciências, biológicas ou outras. Mesmo bilionários, como Bill e Melinda Gates merecem figurar nesse panteão, justamente por facilitar o acesso a milhões de crianças e adultos, em todas as latitudes e longitudes de países pobres, a vacinas e outras ferramentas preventivas e curativas de doenças capazes de dizimar todos esses seres desprotegidos por governos corruptos ou ineptos. Aliás, eu acho que bilionários em geral prestam mais serviços úteis à Humanidade, apenas por serem bilionários – quando o são pelo mercado, evidentemente, e não por favores de quaisquer governos e políticos corruptos –, do que outros cidadãos que trabalham normalmente para ficar apenas na “armadilha da renda média”: afinal de contas, os bilionários são um exemplo e um estímulo para milhões de outros indivíduos, sobretudo os mais pobres, que também querem viver no luxo e no conforto, o que os incita a trabalhar mais duramente, a inventar algo de útil, a procurar servir melhor a “tirania do consumidor”, de que falava Ludwig von Mises.
Mas eu gostaria de deixar essa vertente liberal do individualismo, ainda que meritório, e refletir sobre entidades coletivas, propondo um prêmio aos povos que melhor serviram às causas da humanidade como um todo, mesmo involuntariamente, inconscientemente, sem sequer pretender fazer o bem. O que eu quero dizer é que certos povos, pelas suas virtudes morais, pela suas energias inventivas, pela sua dedicação ao trabalho, à família, à busca de bem estar por meio da cooperação voluntária, pela ausência de instintos de conquista, de desejos de hegemonia imperial, de dominação pela submissão de outros povos, certos povos merecem igualmente entrar na categoria de benfeitores da humanidade, como um todo.
Eu colocaria em primeiro lugar o povo judeu, uma parcela “insignificante” da humanidade, que raramente alimentou desejos de conquista, de submissão, ou de proselitismo religioso sobre outros povos, mas que trouxe, certamente por indivíduos magníficos que emergiram de seu cadinho multissecular para oferecer à humanidade grandes inventores, artistas, científicos, filósofos, líderes morais, que, sem qualquer dúvida, fizeram muito para elevar os padrões materiais, culturais e espirituais de todos os demais povos (mesmo quando estava ele mesmo subjugado, nas várias diásporas enfrentadas ao longo do tempo). O povo judeu representa, provavelmente a mais longa continuidade cultural, étnica, religiosa em milênios de existência humana sobre a Terra, quase tão longa quanto a continuidade cultural e étnica – mas não religiosa – do povo chinês, que entra também no mesmo universo.
Justamente, eu colocaria o povo chinês, em sua longa continuidade histórica, como o segundo, e talvez único grande povo dotado da mesma cultura ao longo de séculos, como um grande benfeitor da humanidade, quaisquer que sejam suas outras “qualidades” em termos de organização política e de direitos humanos. Foi o povo mais avançado do mundo durante séculos, tendo “oferecido” invenções e descobertas, instituições e obras de arte de qualidade inigualável, quando outros povos ainda se debatiam na incultura e nos conflitos guerreiros. A globalização iniciada nos Descobrimentos se destinava precisamente a fazer com que esses povos “atrasados” da Europa ocidental tivessem acesso à riqueza e sofisticação da China, mesmo quando esta se debatia, como sempre foi o caso, com regimes políticos marcadamente opressores, assim caracterizados pelos sociólogos do “despotismo oriental”. Muito disso ficou perdido nos séculos anteriores à era contemporânea, quando a China se atrasou na primeira e na segunda revolução industriais, para só entrar tardiamente na terceira, ou quarta, e agora avançar celeremente na vanguarda da quinta revolução industrial. Mas ela já prestou grandes serviços à economia mundial, e ainda presta, no último meio século, depois de se ter liberado do “maoísmo demencial”, e dos resquícios mais irracionais do comunismo – agora disfarçado e subsumido numa enganosa designação de “socialismo de mercado, que não tem nenhuma “característica chinesa”, sendo apenas o velho e duro capitalismo –, para penetrar em todos os desvãos da interdependência econômica global.
Não tenho nenhuma hesitação em colocar o povo chinês – não a China da República Popular – como “benfeitor da humanidade”, uma vez que nem ele nem, aliás, os próprios novos mandarins da RPC pretendem exportar o seu regime político, ainda hoje nas antípodas do que significa uma “democracia de mercado”, no sentido ocidental da palavra. Os chineses só querem ficar ricos, como já o fizeram europeus ocidentais, americanos e outros povos que enveredaram pelos caminhos dos governos representativos, respeitadores das franquias democráticas, dos direitos humanos, das plenas liberdades, tais como consagradas em documentos históricos de avanços civilizatórios, tais como a Magna Carta (1215), o Bill of Rights (1689), a Declaração de Emancipação americana (1776), a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a Carta da ONU (1945) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), ademais de vários outros documentos históricos nas mesmas vertentes civilizatórias.
Os chineses, é verdade, não têm muito a ver com esses instrumentos universais da dignidade humana, que na verdade são representativos de uma “dominação” ideológica da cultura ocidental sobre o resto do mundo ao longo de quase um milênio. Uma “história chinesa” da humanidade e da filosofia provavelmente teria outros aportes significativos que fogem neste momento do alcance do conhecimento deste simples escriba. Mas, acredito que os chineses também vão se juntar às grandes correntes da cultura universal que colocam a dignidade do ser humano à frente de quaisquer outras virtudes civilizatórias, como aliás já o fizeram os judeus desde a mais remota antiguidade.
Outros povos também fizeram grandes aportes ao bem-estar da civilização moderna e contemporânea, nos terrenos da arte, da música, da literatura, das ciências e dos progressos tecnológicos e demais avanços na filosofia política e nos direitos humanos desde o início da era moderna. Difícil identificar essas contribuições, que também são por vezes mais ligadas a certos indivíduos do que representativas de todo um povo, e seria ousado eu selecionar agora os exemplos mais significativos. Se ouso falar em nome do próprio povo brasileiro, eu traria o exemplo da mistura racial como uma das mais belas contribuições do nosso povo em benefício de toda a humanidade, o que não impede a existência de racismo e discriminação na sociedade brasileira.
Se me permitem citar outros exemplos do Brasil, eu colocaria Pelé e Tom Jobim como grandes “benfeitores” da humanidade, e sem dúvida o futebol e a Bossa Nova são grandes aportes, não exclusivos, de nosso povo para o prazer e o deleite universais. Assim também são o jazz, a Coca-Cola, o iPhone do ponto de vista do patriotismo americano, mas vejam que os chineses já estão chegando com os seus equivalentes ainda mais funcionais que as ferramentas de comunicação social, da mesma linha do WhatsApp e Facebook, atualmente disponíveis. Assim como os europeus dominaram os padrões técnicos da economia global no século XIX, e os americanos e japoneses o fizeram em boa parte do século XX, os chineses estão entrando com vigor na determinação dos novos padrões industriais do século XXI. Assim caminha a humanidade, cada vez para padrões mais elevados de bem estar material, que sempre precedem a elevação espiritual de todos os povos.
Não creio que a ONU, ou qualquer outra entidade distribuidora de prêmios para indivíduos benfeitores da humanidade ao redor do mundo – como as instituições do prêmio Nobel e seus equivalentes setoriais – venham a criar esse prêmio que estou propondo: o de povos benfeitores da humanidade. O que não me impede de institui-lo pessoalmente: eu começaria pelo povo judeu, continuaria com o povo chinês, e depois veríamos quem mais merece. O povo brasileiro talvez apareça entre os dez primeiros da fila, junto com outros certamente meritórios, mas não vou entrar nessa discussão neste momento.
Vale pela reflexão no meio da noite. Passem bem todos e todas...
In 1944, Soviet writers Ilya Ehrenburg and Vasily Grossman together with the Jewish Anti-Fascist Committee prepared a 500-page book of testimonials about the mass murder and resistance of the Soviet Jews during the Holocaust. Shortly before publication, Stalin reversed his decision to publish the book, members of the Jewish Anti-Fascist Committee were executed, and silence descended upon the memory of the Holocaust. The Black Book would not be published in Russia until 2014. In this event, we will screen excerpts from Israeli filmmaker Boris Maftsir’s upcoming documentary exploring the fate of the Black Book and consider Stalin’s views and policies vis-à-vis Soviet Jewry.
This event is part of a series organized by theKennan Institute in honor of theInternational Holocaust Remembrance Day, with support from the Embassy of Israel in the United StatesandRabin Chair ForumatGeorge Washington University.For more information about the series, please visit ourwebsite.
Os passaportes, a rigor, não eram falsos, e sim verdadeiros. O conteúdo é que não correspondia à informação correta dos detentores. Isso se fez por dinheiro? Certamente, mas provavelmente não por motivos sórdidos.
Paulo Roberto de Almeida
Ajuda latino-americana salvou centenas de judeus do Holocausto
Passaportes falsos de Paraguai, Bolívia e Haiti foram usados para enganar
a repressão nazista e impedir que judeus poloneses fossem enviados ao Gueto de Varsóvia
Jamil Chade, Correspondente / Genebra,
O Estado de S.Paulo, 02 Setembro 2018 | 06h00
GENEBRA - Centenas de judeus poloneses foram salvos do Gueto de Varsóvia graças a passaportes latino-americanos falsos. As informações constam em documentos encontrados em arquivos da diplomacia da Suíça, que mostram um novo papel para Paraguai, Honduras, Bolívia e El Salvador na 2.ª Guerra.
Em 1942, mais de 340 mil judeus ainda viviam no Gueto de Varsóvia. A ordem de deportação em massa veio no verão. Mas, pelas regras estabelecidas pelos nazistasalemães, judeus com passaportes de países neutros poderiam se salvar. O motivo: uma eventual troca por alemães detidos no exterior. O Brasil, que havia declarado guerra ao Eixo em agosto de 1942, deixara de ser um país neutro.
Usando essa brecha, um diplomata polonês em Berna iniciou uma operação de falsificação de passaportes para retirar milhares de judeus de Varsóvia. Aleksander Lado e seus assistentes Juliusz Kühl, o cônsul Konstanty Rokicki e outros infiltrados, iniciaram a operação que ficaria conhecida como “Serviços de Passaporte”.
A ideia surgiu depois do caso de Eli Sturnbuch, um polonês judeu que vivia na Suíça e falsificou um passaporte paraguaio para retirar do Gueto de Varsóvia sua noiva, Guta Eisenzweig.
De acordo com os documentos, a operação começou em outubro de 1941 e envolvia o suíço Rudolf Hugli, que na época era o cônsul honorário do Paraguai em Berna. Em troca de dinheiro pago pela própria embaixada da Polônia, ele garantiria lotes de passaportes falsos do país, que eram enviados ao gueto.
A partir de 1942, uma lista de pessoas que deveriam ser resgatadas começou a ser feita na Suíça. Ela incluía professores, rabinos, estudantes e ricos empresários capazes de, uma ver terminada a guerra, restabelecer a influência dos judeus na região.
Fuga do Nazismo
Um dos retirados foi Aharon Rokeach, rabino da dinastia Belz Hasidic. Ele escapou dos nazistas graças a um dos passaportes fabricados pela rede clandestina de poloneses. Para que ele pudesse receber o documento, a Santa Sé garantiu a entrega.
Aos poucos, outros países latino-americanos que tinham declarado neutralidade passaram a ser consultados e uma tabela de preços foi estabelecida. Para um passaporte paraguaio, o interessado deveria pagar 1,2 mil francos suíços, numa época em que o salário diário não chegava a 20 francos suíços.
A notícia do esquema rapidamente chegou a Varsóvia. Dando propinas aos soldados alemães, judeus conseguiam enviar à Suíça cartas com fotos e dados pessoais. Improvisadas, algumas das fotos estavam distantes de qualquer padrão de documento oficial. Algumas delas eram recortadas de fotos de famílias. Em outras, quem buscava ser salvo estava em posições informais ou mesmo fumando.
Os documentos, uma vez prontos, eram enviados de novo ao gueto e garantiam a sobrevivência dos judeus. Quem tivesse aquele passaporte estrangeiro era enviado para acampamentos e prisões, não para campos de extermínio.
Segundo os arquivos, mais de 2,2 mil passaportes paraguaios foram comprados, além de centenas de outros dos demais países latino-americanos. Alguns documentos chegam a mencionar o fato de que o sistema fez circular mais de 4 mil passaportes. Durante dois anos, os funcionários da embaixada da Polônia preencheram à mão os nomes nos passaportes.
Retaliação de Hitler
Quando o esquema foi descoberto pela polícia suíça, o temor de uma retaliação por parte de Adolf Hitler contra os países latino-americanos deu fim ao sistema. Ou seja, não evitou que milhares de judeus fossem enviados para Auschwitz.
Os suíços, preocupados em não irritar Hitler, iniciaram investigações no início de 1943. Os alemães também começaram a desconfiar do número exagerado de latino-americanos que apareciam nos campos de Vittel, para onde os judeus estrangeiros eram enviados.
Berlim consultou os governos latino-americanos, que desconheciam os cidadãos. Na segunda metade de 1943, os suíços desmantelaram o esquema. Em setembro, os diplomatas foram punidos com a retirada de seu status de representantes.
A seguir, a repressão contra os judeus que receberam passaportes fez com que muitos fossem enviados a Auschwitz. A Polônia diz que 330 pessoas escaparam do gueto graças aos passaportes falsos. Outros 387 que já tinham recebido o documento foram enviados a campos de extermínio. Outros 430 desapareceram após receber os passaportes.
No início de agosto, o governo polonês anunciou que, depois de meses de negociação, uma parte desses documentos, que estavam numa coleção privada em Israel, será entregue ao Museu Auschwitz-Birkenau, incluindo fotos e exemplares de oito passaportes falsificados.
José da Costa. – São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado:
Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002
“Edição fac-similar”
Vol. XXIII, julho-dezembro de 1819, p. 314-317
Perseguição Contra os Judeus
As noticias de Alemanha continuam a informar-nos dos mais vergonhosos atos de opressão contra os Judeus. Em Warteburg, Darmstadt, Hamburgo, Frankfort, Hanau, Bamberg, Bayreuth e Dusseldorff, tem a populaça cometido os maiores excessos contra os Judeus residentes naqueles lugares. Como estes ataques foram quase simultâneos, conjecturou-se que eram execução de algum plano concertado.
Conjecturando as causas de tão inesperada perseguição, custa a atirar com alguma razão suficiente de tal fenômeno? Será ódio contra a religião dos Judeus, diferente da maioridade dos habitantes dos países, aonde eles residem? Será isto efeito das agitações políticas, que existem na Alemanha? Será efeito da rivalidade do Comércio?
Quanto à diferença de religião, as perseguições por esta causa são diametralmente opostas às ideias tolerantes do nosso século, como tem acontecido em todos os tempos e em todos os países, em que as luzes tem efeito esconder o fanatismo. Os poucos religiosos furiosos, que ainda existem, e que desejariam propagar os seus princípios pelo ferro e fogo, como os Mahometanos, ou como a Inquisição, ano se atrevem a propor hoje em dia tais planos, que os faria objeto do desprezo público. Em uma palavra, estas perseguições da Alemanha, nem se quer mencionam a diferença de religião, como causa acidental.
Quanto a causas políticas, os Judeus, há muitos séculos, vivem nos diferentes Estados da Europa, como estrangeiros, a quem se não permite exercício algum ativo dos direitos de cidadão, nem empregos públicos; sendo meramente protegidos pelas leis, como pessoas de uma residência temporária: com esta mera faculdade de existir, se tem eles contentado, satisfeitos de que os deixem seguir, na obscuridade, as práticas de sua religião. As mais atrozes e injustas perseguições, não tem oposto senão a paciência e o retiro. Não é logo possível atribuir agora estes seus novos males, a inimizades políticas, em que não consta, que eles tenham a menor parte.
Resta, pois, a rivalidade mercantil, a que alguns escritores imputam os atuais sofrimentos dos Judeus, supondo que as suas riquezas e a sua indústria tem excitado a inveja dos mais negociantes Alemães. Não se pode negar a possibilidade desta hipótese; mas nem ainda nela achamos razão cabal, para explicar o mal em toda a sua extensão.
As riquezas dos Judeus, assim como as de todo o outro capitalista, que não tem outra pátria senão aquela em que reside deve redundar em beneficio do país, dando emprego a muitos habitantes, e servindo de produzir novas riquezas. Logo o ódio contra as riquezas dos Judeus, seria dirigido contra o beneficio, que delas resulta a toda a Sociedade: um ou outro negociante individual poderia entreter este ódio contra o rico negociante Judeu e seu vizinho, pelo espirito de rivalidade; mas isto não se podia estender a toda a populaça; nem abranger tantas cidades, desde a margem do Rheno até Copenhaguen, como são aquelas por que esta perseguição se tem difundido.
Suponhamos que os Judeus Alemães se retiravam, com seus haveres, daqueles países em que são perseguidos: nesse caso, não só a população sofreria, mas a falta de seus capitães traria a ruina a muitas fábricas, e até a mesma agricultura; como bem palpavelmente se experimentou em Portugal, que com a expulsão dos Judeus, perdeu os seus cabadaes, e estes foram enriquecer a Holanda, tornando-se ali rivais e ao depois inimigos dos capitais e comércio de Portugal. Daqui concluímos, que a generalidade desta perseguição se não explica pelo ódio contra as riquezas dos Judeus, pois elas são de grande beneficio aos países, em que eles residem.
Quaisquer, pois, que fossem as causas destas perseguições dos Judeus, a Alemanha perderia um imenso fundo de riquezas, que se transferiria ao Brasil. Mas disto, pela razão que demos acima, não tem a Alemanha, que se temer.
Voltando, porém, as causas da perseguição, que parecem tão geral na Alemanha, parece que a proteção dos respectivos Governos não tem sido tão eficaz como devera ser.
Sobre esta matéria achamos um curioso artigo, datado de Carlsbad aos 24 de Agosto; em que se diz, que os Ministros nas conferências, que se faziam naquela cidade, tomaram em consideração a perseguição contra os Judeus; e que notificaram aos respectivos Governos, que deviam obrigar os magistrados a prestar eficaz proteção aos Judeus, como todo o Governo é obrigado a fazer, aos que vivem em seus territórios, sem distinção de classes. Pretende mais este artigo, que os Ministros intimaram, que se aqueles Governos não castigassem os Magistrados, pela falta de proteção dos Judeus, se fariam acessórios e correos dos mesmos crimes; e que seria preciso que os seus territórios fossem ocupados militarmente por tropas da Áustria ou da Prússia.
Assim parece, que estas perseguições populares contra os Judeus, vem cheias de consequências, que não aparecem à primeira vista: pois no mesmo artigo se insinua, que será preciso ceder os territórios, aonde tais ultragens se tem cometido, a algum Estado vizinho, que tenha a vontade e o poder de coibir tais excessos.
Souza Dantas, um justo entre os justos, um grande diplomata, que soube preservar a dignidade nos momentos mais sombrios da história, com a Europa dominada pelo nazi-fascismo e o Brasil sob a ditadura do Estado Novo, quando Vargas e seu ministro da Justiça denegavam oficialmente vistos para cidadãos de "origem semita". O filme de Luiz Fernando Goulart, "Querido embaixador", é baseado na obra "Quixote nas trevas" do historiador Fabio Koifman, e meu amigo Fabio Pereira Ribeiro está preparando uma tese, na Sorbonne, sobre os anos franceses do embaixador Souza Dantas. Excelente matéria da BBC. Paulo Roberto de Almeida
Quem foi o embaixador brasileiro que contrariou Hitler e Vargas para ajudar fugitivos do nazismo
Luiz Antônio AraujoDe Porto Alegre para a BBC Brasil
Raphael Zimetbaum guarda na memória os detalhes do dia em que seu pai viajou de Marselha, cidade portuária do sul da França, com destino a Vichy. Corria o ano de 1940, e os Zimetbaum, oriundos de Antuérpia, na Bélgica, compartilhavam com milhões de outros europeus a condição de refugiados num continente mergulhado na Segunda Guerra Mundial. Entre os indesejáveis pelo ditador nazista da Alemanha, Adolf Hitler, a família de Raphael tinha um agravante contra si: eram judeus.
Quando a França foi invadida pela máquina de guerra do Terceiro Reich, e o governo local trocou a capital francesa de Paris para Vichy, a única esperança de salvação para os judeus em solo francês passou a ser a imigração. Poucos países, porém, permitiam-se acolher os fugitivos, concedendo-lhes vistos de entrada. O Brasil, sob a ditadura do Estado Novo, encabeçada por Getúlio Vargas, não era exceção. Ainda assim, a viagem do pai de Raphael tinha o objetivo de fazer contato com o embaixador brasileiro.
"Meu pai e meu tio foram de Marselha para Vichy de trem. Foram recebidos pelo embaixador no hotel. Ele disse: 'Não há muito que eu possa fazer', e mostrou o telegrama que o proibia de dar vistos. Meu pai insistiu. Ao final da conversa, o embaixador disse: "Já é tarde. Por que vocês não se hospedam num hotel aqui perto e voltam amanhã de amanhã, que eu vou pensar?".
Ao retornar no dia seguinte, os Zimetbaum receberam um papel timbrado da embaixada do Brasil. O documento, redigido em francês, dizia: "Bom para entrar no Brasil". Era o visto que salvaria a vida da família, permitindo-lhe escapar pelo Atlântico da morte certa na Europa ocupada.
O homem que desafiou duas ditaduras para auxiliar pelo menos mil fugitivos do nazismo não era um jovem idealista e temerário. O embaixador Luiz Martins de Souza Dantas tinha 64 anos em 1940 e só não havia sido aposentado compulsoriamente por idade quatro anos antes em razão de uma exceção aberta por Getúlio Vargas, "tendo em vista os notórios serviços prestados ao governo brasileiro pelo seu atual embaixador na França".
Nasceu em 1876 no Rio, então capital imperial, numa família carioca de origem baiana, e ingressara no serviço diplomático aos 20 anos, menos de um mês depois da graduação em Direito. Fez uma longa e exitosa carreira. Servira em Berna (Suíça), São Petersburgo (Rússia), Roma, Buenos Aires e novamente Roma, com uma passagem de alguns meses pelo comando do Itamaraty.
Nomeado embaixador em 1919, na capital italiana, Souza Dantas era um diplomata da velha escola do Império, que recrutava servidores entre a elite e valorizava relações pessoais. "Isso explica por que tinha um retrato de Mussolini pendurado na parede da embaixada", escreveu Orlando de Barros, professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Quando Souza Dantas trocou a embaixada de Roma pela de Paris, em 1922, o ditador Benito Mussolini foi pessoalmente à estação de trem se despedir, tal era sua popularidade, revela Luiz Fernando Goulart, diretor da filme Querido embaixador, uma cinebiografia com estreia prevista para este sábado (5).
A embaixada na França era o posto mais importante da diplomacia brasileira nos anos 1920. Paris era a capital política e intelectual do mundo, e o francês era a língua franca da diplomacia, das ciências e das artes. Na chamada Cidade Luz, Souza Dantas firmou reputação de bon vivant. Gastava fortunas em jantares e recepções, colhendo, em contrapartida, um prestígio que lhe permitiu ficar no posto por quase um quarto de século.
Além da foto autografada de Mussolini, exibia na embaixada as imagens do rei da Itália Vittorio Emmanuele; de Santos Dumont, do ex-presidente francês Raymond Poincaré e do poeta italiano Gabriele D'Annunzio (que o chamava de "ambasciatore delle grazie" - embaixador das graças).
Relatos atribuem ao diplomata brasileiro um time de amantes, especialmente atrizes: Madeleine Carlier - a quem presenteou com uma casa de campo em Nantes -, Marie Bell e Arletty. Segundo um contemporâneo, "os colunistas mediam a importância de qualquer reunião pela nota de sua presença". Seu amigo Heitor Lyra contava que, um dia, convidado pelo embaixador para jantar no Ritz, viu a estilista Coco Chanel, que morava no hotel, abrir um "largo sorriso" e perguntar ao amigo se ele tinha ido visitá-la.
Solteiro até os 57 anos, o embaixador casou-se em 30 de setembro de 1933 com Elise Meyer Stern, viúva americana residente em Paris. Era irmã de Eugene Meyer, dono do jornal The Washington Post. Embora a noiva fosse judia, a cerimônia seguiu o rito católico.
Informado como poucos, Souza Dantas teria comunicado o Itamaraty da queda de Paris em junho de 1940 antes do exército alemão (chamado de Wehrmacht) entrar na cidade. Os nazistas suspeitaram até o final de que fizesse espionagem para os Aliados. Com a retirada do governo francês para Bordeaux e, depois, para Vichy, e a capitulação final ao Reich, a França sofreu uma grave fratura política. Os alemães mantiveram autoridade sobre o Norte, incluindo Paris, enquanto a porção sulista, chamada de Zona Livre, era entregue ao governo colaboracionista do marechal Philippe Pétain.
Souza Dantas teria sido o primeiro embaixador a se transferir para Vichy, numa decisão posteriormente seguida por outros representantes estrangeiros. Permitia, no entanto, que alguns de seus subordinados mantivessem contato com as autoridades alemãs em Paris, a fim de trocar informações que repassava ao Itamaraty.
Pouco antes de deixar a cidade ocupada, passou a expedir vistos diplomáticos para quem os pedisse sem exigir nada em troca. A atitude era uma desobediência frontal à política migratória de Vargas, que, na época, proibia a concessão de vistos a "semitas e outros indesejáveis". Antes mesmo da instauração da ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937, o governo Vargas tentara impedir o ingresso de judeus no país por meio das chamadas "circulares secretas" do Itamaraty - a primeira delas, sob o nº 1.127, fora editada em junho daquele ano.
A maioria dos chefes de missões brasileiras no Exterior cumpria à risca a determinação. Em abril de 1938, menos de um ano depois da emissão da primeira circular, o cônsul-geral em Budapeste, Mário Moreira da Silva, comunicou ao ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, a recusa de visto de entrada no Brasil a 55 indivíduos, "todos declaradamente de origem semita".
"Os refugiados estávamos submetidos aos maiores escárnios, às maiores torturas, os soldados franceses pegando ratos e enfiando no colo das mulheres, no peito, para espantar, coisa horrorosa. E, no meio disso, nós ficamos, até que, de repente, se ouve que existia um Dom Quixote que se chamava... meu Deus do céu, me escapa agora... o famoso embaixador Dantas, que disse o seguinte: 'Abra as portas da embaixada que eu vou dar vistos diplomáticos'. E deu", conta o ator e diretor teatral polonês Ziembinski, um dos beneficiados pelo diplomata.
A legislação brasileira estabelecia que vistos só poderiam ser concedidos mediante apresentação de documentos como certidões negativas de antecedentes policiais e atestados de saúde, de profissão e de "origem étnica", inacessíveis para refugiados naquelas condições. A maioria dos que procuravam Souza Dantas era portadora dos chamados passaportes Nansen, fornecidos pela defunta Liga das Nações para apátridas.
"Ele assinava vistos até em cardápios de restaurantes", afirma Goulart.
Em 12 de dezembro de 1940, Oswaldo Aranha expediu a circular 1.498, pela qual era reiterada a proibição de concessão de vistos a judeus. Souza Dantas passou então a assinar os documentos com datas anteriores à da circular. Nem todos os que auxiliou se dirigiram ao Brasil. Em fins de 1941, depois de ter sido repreendido pelo governo brasileiro por sua prodigalidade no fornecimento de vistos, tornou-se alvo de inquérito administrativo. Na época, porém, a pressão dos Estados Unidos fazia Vargas se inclinar em favor dos Aliados, e o Brasil romperia relações com o Eixo em janeiro de 1942.
Enquanto as investigações no Itamaraty prosseguiam, os nazistas invadiram a Zona Livre e bateram à porta da embaixada brasileira em Vichy à procura de arquivos. O conselheiro Trajano Medeiros do Paço, que vivera em Berlim e era fluente em alemão, disse aos militares que os papéis haviam sido queimados. Ao oficial da Gestapo que lhe perguntou a razão da medida, respondeu: "Porque nós conhecemos vocês".
Os policiais invadiram a embaixada. Chamado em sua residência, Souza Dantas, aos 66 anos, protestou energicamente: "Os senhores estão violando as leis das convenções internacionais. Estamos aqui em solo brasileiro. Peço-lhes imediatamente que se afastem". E ficou sob a mira das pistolas da Gestapo. Foi retido por 14 meses na Alemanha, sendo libertado em troca de prisioneiros alemães detidos no Brasil.
De volta ao Rio, soube que o inquérito do Itamaraty havia sido arquivado, mas foi relegado ao ostracismo até o final da Segunda Guerra. Afetada pela senilidade, a esposa, Elisa, foi levada pela família para os Estados Unidos, onde morreu em 1952. Em abril de 1954, quase octogenário e com a saúde debilitada, foi a vez de Souza Dantas morrer em seu último endereço parisiense, um quarto do Grand Hôtel, na Praça da Ópera. O inventário listava poucos bens. O corpo foi trasladado para o Brasil.
O nome de Souza Dantas está inscrito no Jardim dos Justos entre as Nações, em Israel, como um dos que ajudaram a salvar judeus do Holocausto.