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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sábado, 10 de setembro de 2022

O programa do Partido Operário Alemão, de 1920, o primeiro partido de Hitler, segundo o Mein Kampf

 Leio, num resumo do Mein Kampf, publicado no França em 1939, este aqui: 

Publicado em 1939, pouco antes do início da guerra de Hitler.

o programa do Partido Operário Alemão, lido pelo próprio Hitler, o sétimo integrante do partido, no dia 24 de fevereiro de 1920, numa cervejaria de Munique, o início de sua conquista do partido, que o lançaria como Führer alguns anos depois.

- nacionalização dos trusts

- eliminação das grandes lojas

- confisco das fortunas feitas durante a guerra [de 1914-18]

- abolição da taxa de juros e da especulação em bolsa

- socialização dos bancos e toda a indústria

- restabelecimento da autoridade absoluta do Estado

- unificação e centralização do Reich

- expulsão dos judeus

- eliminação dos parlamentos locais

- reconstrução das Forças Armadas, mais poderosa do que em 1914

- dissolução dos sindicatos marxistas

- abolição das cláusulas financeira , militares e territoriais do Tratado de Versalhes.


        Essa foi a base do nacional-socialismo, tal como Hitler o forjaria, durante os anos 1920, com a transformação do antigo Partido Operário Alemão em NSADP: Nationalsozialistiche Deutsche Arbeiterpartei.

        O que Hitler  acrescentou ao Partido foi, além do socialismo-nacional, a firme determinação de que o partido deveria ter um único líder, ele, e os princípios do Lebensraum, do espaço vital, que deveria ser conquistado pela força na direção do leste, isto é, da Rússia bolchevique, dominado pelo marxismo judeu, e, mais importante, a eliminação dos judeus da nação germânica unificada, o que ele concebia não apenas como um dever do Reich alemão, mas como um favor que a Alemanha faria ao mundo inteiro.

Tudo isso seria explicitado no dois volumes do Mein Kampf (1925 e 1926) que ele compôs depois de sair de uma brevíssima prisão, após o putsch fracassado de 1923, feito a partir de uma cervejaria de Munique. A bandeira foi adotada mais tarde, e transformada em bandeira do Reich, a partir de 1933.


sexta-feira, 30 de abril de 2021

Antonio Paim: do marxismo ao liberalismo - Paulo Roberto de Almeida

Antonio Paim: do marxismo ao liberalismo


 Paulo Roberto de Almeida

Uma homenagem ao grande mestre que faleceu em 30 de abril de 2021

Publicado em formato de e-book no site do Livres; link: https://www.eusoulivres.org/publicacoes/antonio-paim-uma-homenagem-ao-grande-historiador-do-liberalismo-brasileiro/ ;  pdf: https://cdn.eusoulivres.org/wp-content/uploads/2021/05/01012322/Ebook-Antonio-Paim.pdf); divulgado por via da plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/48811785/3902_Antonio_Paim_do_marxismo_ao_liberalismo_Ebook_Livres_2021_);

Entrevista com Antonio Paim, por ocasião da publicação da 2a edição da obra  História do Liberalismo Brasileiro (2a. edição, revista e ampliada; SãoPaulo: LVM, 2018), no site do Livres; link: https://www.eusoulivres.org/ideias/antonio-paim-1927-2021/  

 

A trajetória intelectual de Antonio Ferreira Paim (nascido na Bahia em 1927) é ímpar na cultura e na história das ideias políticas e filosóficas no Brasil, tendo emergido no marxismo – com curso de filosofia na Universidade do Brasil e depois na Universidade de Moscou –, e realizado ao longo da vida uma guinada política e filosófica que o levou ao liberalismo. Numa primeira etapa de sua carreira acadêmica, empreende estudos sobre as ideias filosóficas no Brasil, seguindo as correntes de pensamento desde a fase colonial até a atualidade, trajetória que ele reconstitui em dois de seus primeiros livros: História das ideias filosóficas no Brasil (1967) e O estudo do pensamento filosófico brasileiro (1979). 

Nessa primeira fase já se ocupa igualmente da questão do estatismo na formação da nação brasileira, na qual debate – em seu livro A querela do estatismo (1978) – a formação do Estado brasileiro como Estado patrimonial, notadamente através da obra de Oliveira Vianna e pelo estudo das influências pombalinas e positivistas sobre as elites dirigentes. Notadamente, ele adota o conceito difundido por Simon Schwartzman de “patrimonialismo modernizador”, que teria sido o da era Vargas e do regime militar, mesmo se a burocracia tradicional tenha conseguido manter sua supremacia sobre as elites técnicas mais identificadas com os militares e outros impulsionadores do progresso econômico. Na segunda edição desse seu livro sobre o estatismo (1994), Paim se afirma mais conclusivo e argumenta que “a estratégia mais aconselhável à sociedade consiste em tentar reduzir as funções do Estado, cuidando de retirá-lo da economia e de todas as esferas não seja imprescindível” (p. 20).

Nesse mesmo livro, ela já recusava a caracterização de “capitalista” para a formação econômica e social do Brasil, assim como tentava interpretar o fracasso da construção de um sistema representativo no país e se propunha traçar uma “estratégia para enfraquecer o patrimonialism e favorecer o capitalismo” (capítulo VII, pp. 193-200). No plano puramente teórico e conceitual, Paim acreditava que se deveria “obter algum arejamento na Universidade e conseguir quebrar o monólito da dominação marxista-positivista” nela existente (p. 194). Entre as tarefas básicas desse desmantelamento do patrimonialism no Brasil, ele sugeria algumas que em grande medida se confundiam com as preleções liberais de Roberto Campos: 

1)    “Eliminar todas as burocracias estatais devotadas aos programas oficiais de combate à pobreza”, na medida em que essas políticas, “como tudo mais, transformaram-se em mero pretexto para justificar a voracidade fiscal e permitir ao patrimonialism apropriar-se de verbas sem o menor controle da opinião pública” (pp. 195-6).

2)    “Levar a bom termo o programa de privatização, empenhando-se no sentido de transformá-lo num novo projeto de desenvolvimento” (p. 196).

3)    Efetuar um “reexame específico da estrutura dos vários órgãos integrantes da União”, que atendem “precisamente ao jogo do patrimonialismo” e do empreguismo (p. 196).

4)    Examinar concretamente as ações de que poderia resultar a dignificação do servidor, por um lado, e profissionalizar as FFAA, reduzindo suas dimensões (p. 197). 

 

Não obstante a boa análise de Paim quanto aos fundamentos do atraso brasileiro, a partir da consolidação do patrimonialismo (ainda que modernizador), ele parece acreditar na existência de uma classe empreendedora sinceramente comprometida com a construção de um capitalismo competitivo no Brasil, o que parece desmentido por quase dois séculos de extrema subserviência desses “capitalistas” (se o termo se aplica) ao Estado onipotente e onipresente. Nas próprias palavras de Paim, registre-se que ele está

... naturalmente supondo que a liderança empresarial brasileira estaria convencida de que só tem a ganhar se conseguir obstar a atuação do patrimonialismo e lograr que o capitalismo alcance um novo patamar. Estaria voltada para pactuar com aquelas forças que, no interior do Estado, se dispusessem a abdicar das tradições patrimonialistas – isto é, de estabelecer a tutela do Estado sobre a sociedade –, aceitando o penoso caminho de buscar a constituição do Estado Liberal de Direito. (...)

Ao enfrentar a questão do patrimonialismo brasileiro cumpre-nos reconhecer francamente que as tradições culturais prevalecentes em nosso país são francamente desfavoráveis ao capitalismo. (...)

A tradição liberal é débil e descontínua e sofreu tão fortes constrangimentos, sob a República, que a afetariam mesmo se se tratasse de algo melhor estruturado. (A querela do estatismo, 2ª. edição, 1994, pp. 197-8)

 

Considerando-se que a primeira edição do livro (1978) foi publicada em plena vigência do “patrimonialismo modernizador” do regime militar, e que o prefácio à sua segunda edição (1993) vem datado da grande deterioração inflacionária da redemocratização, pode-se argumentar que a análise acadêmica de Paim carece de uma percepção mais realista a respeito da extrema dependência desses “capitalistas” das políticas setoriais desenhadas pelos dirigentes políticos, mais exatamente pelas corporações estatais, que constituem precisamente o cerne e o coração do patrimonialismo conservador no Brasil. A partir dessa época, justamente, Paim se dedica a compendiar, analisar e sintetizar o pensamento político brasileiro, contribuindo para tornar mais conhecidos de pesquisadores acadêmicos e da opinião pública bem informada um conjunto importante de pensadores brasileiros (e portugueses), inserindo suas teses e propostas analíticas no contexto de um outro conjunto de pensadores estrangeiros, aqueles que, nos dois últimos séculos, influenciaram os estudos e as discussões políticas e constitucionais no Brasil. 

Nos anos 1990, Paim publicou praticamente um livro por ano, sempre sobre seus temas preferidos: o pensamento político brasileiro, a trajetória e a agenda do liberalismo, no mundo e no Brasil, assim como cursos de introdução a esses grandes temas, em colaboração com colegas e mestres nas mesmas áreas: Francisco Martins de Souza, Ricardo Vélez Rodríguez, Ubiratan Borges de Macedo, José Guilherme Merquior, Gilberto de Mello Kujawski, Carlos Henrique Cardim e Leonardo Prota, entre outros. O objetivo comum de todos esses intelectuais sempre foi a busca das bases morais de um amplo consenso nacional em torno de um sistema político liberal representativo e de um regime econômico dotado das mais amplas liberdades competitivas, propenso à inserção do país na interdependência global. Mas, a sombra do patrimonialismo se interpõe de maneira obstinada a essa conformação de uma democracia de mercado no país

Aliás, países não são exatamente condomínios, onde vizinhos se conhecem e podem se reunir para discutir benfeitorias na propriedade comum. Nações não costumam reunir-se em assembleia, de tempos em tempos, para debater tranquilamente qual caminho adotar em face de ofertas igualmente interessantes quanto às melhores políticas para guiar o seu processo de desenvolvimento, frente às quais cabe decidir sobre as de menor custo relativo e de maior retorno possível. Isso só acontece em momentos de ruptura, guerras, revoluções, golpes, quando uma nova elite sobe ao poder, e precisa adotar condições mínimas de governabilidade, para assentar as bases mais ou menos aceitáveis de sua legitimidade política (ou não). Existem também fases menos felizes, quando um país pode sair de um tipo de dominação racional-legal, para usar a terminologia weberiana, para descambar numa administração de tipo carismática, que nos remete aos piores exemplos da tradição latino-americana de caudilhos e golpes de estado; por sinal, a Argentina só decaiu durante praticamente 80 anos seguidos porque em 1930 se derrocou uma república “oligárquica” para inaugurar um ciclo de governos autoritários, e depois populistas, supostamente identificados com a “soberania” do país e “projetos nacionais” de desenvolvimento, geralmente alinhados ao protecionismo e à industrialização substitutiva, como o Brasil, aliás. 

Pois bem, sem fazer qualquer história virtual do Brasil, Antonio Paim, um dos grandes pensadores da nacionalidade, examina no seu livro, Momentos Decisivos da História do Brasil (2000), três momentos decisivos de nossa história, quando poderíamos, teoricamente, ter “escolhido” um caminho melhor, mas falhamos, terrivelmente – ou nossas elites falharam –, em adotar aquela via que poderia ter nos levado a um estágio mais elevado de desenvolvimento econômico e social, a um sistema político mais representativo e a uma organização institucional menos conspurcada pelo patrimonialismo tradicional. Não tenho certeza de que o Brasil, como nação, tenha tido essas chances, essas janelas abertas às suas elites, para debater, de forma consciente e deliberada, essas vias “progressistas”, mas cabe mencionar as “teses” de Antonio Paim, para verificar, o que perdemos como oportunidades históricas.

A primeira, ainda na fase colonial, foi o fato de ter constituído precocemente uma economia florescente, ligada ao açúcar e outras atividades paralelas, que poderia ter sido a base de um desenvolvimento ulterior mais estruturado. Tendo sido mais rico do que as colônias inglesas na América do Norte nos séculos XVI a XVII, em grande parte devido aos cristãos novos, os judeus portugueses convertidos forçadamente que se tornaram os grande financistas do comércio internacional do açúcar, a chance perdida se explica pelo papel da Contra Reforma e da Inquisição na repressão desses “capitalistas mercantis”, o que bloqueou, portanto, a possibilidade de uma economia vinculada de maneira mais “decisiva” – o termo se aplica – aos mercados internacionais. 

A segunda oportunidade perdida foi no século XIX, com a nação independente e já na fase de construir seu estado nacional, quando Paim acredita que as elites trataram de assegurar a unidade nacional, com certo sucesso até (comparativamente à completa desagregação da hispano-América, por exemplo), mas a um alto custo, perdendo, no mesmo movimento, a iniciativa de consolidar um sistema representativo eficiente. O Regresso, nos anos 1840, e, mais tarde, as teses positivistas, inspiradas em Comte, “conspiraram” para manter o Brasil um sistema político pouco funcional tanto para fins da “ordem”, quanto do “progresso”. As frequentes intervenções militares desde o início da República se encarregam de eliminar a possibilidade de constituição de uma “moral social de tipo consensual”, que nunca tivemos entre nós, nas palavras de Paim.

A terceira, em pleno século XX, foi a consolidação, que ele chama de “estruturação”, do Estado patrimonial, sob Getúlio Vargas, e o abandono do sistema representativo. Nessa terceira parte de sua obra, Paim é bastante crítico daquilo que ele chama de “lixo historiográfico”, a maior parte de extração pretensamente marxista, que produziu alguns delírios sobre o “caráter da revolução brasileira” pelos representantes dessa corrente. Já na queda da monarquia, o Brasil perdeu a oportunidade de constituir um “Estado liberal de Direito”, enveredando depois pelas “oligarquias dos estados”, mais até que a chamada “política dos governadores”. Mas, o castilhista Getúlio Vargas conseguiu implantar um Estado nacional unitário, ao mesmo tempo em que fixou o patrimonialismo, no conceito weberiano da palavra, realidade já estudada por Simon Schwartzman. O feito de Vargas, resumido por Paim, foi “retomar o projeto formulado no Império, de constituição do Estado Nacional, abdicando de dar-lhe a feição democrático-representativa e dele fazendo um autêntico Estado patrimonial. O projeto Vargas seria retomado pela Revolução de 64” (p. 217-18). 

O último capítulo desse livro de Paim tem por título, de forma otimista, “Como sair do patrimonialismo”, mas não devemos esquecer que o livro deve ter sido terminado em 1999 para ser publicado no ano seguinte. Apoiando-se na experiência das privatizações daquela década, ele concorda com Roberto Campos em que “o problema reside na adequada formulação das políticas” (p. 315), e não só econômicas. Quinze anos depois, no entanto, no livro que ele organizou e publicou, com colaborações de Paulo Kramer e de Ricardo Vélez-Rodríguez, O patrimonialismo brasileiro em foco(Campinas: Vide Editorial, 2015), ele tem de constatar, tristemente, a “sobrevivência da estatização brasileira”, e se pergunta como enfrentá-la (capítulo II, p. 35-43). Se formos ainda mais pessimistas, não há como discordar do mesmo Ricardo Vélez-Rodríguez, em seu livro A Grande Mentira: Lula e o patrimonialismo petista (Campinas: Vide Editorial, 2015), em que o patrimonialismo tradicional brasileiro foi transmutado, pelas mãos e pés dos companheiros, em um patrimonialismo de tipo criminoso. Como é mesmo que dizia Lavoisier? Na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. A despeito de basicamente político, este último livro possui um importante capítulo sobre as “desgraças do intervencionismo no Brasil”, que também começa pelas desgraças de Mauá, aliás recorrendo ao livro de Jorge Caldeira.

Os grandes obstáculos à conformação do capitalismo brasileiro continuaram a ser examinadas por Antonio Paim num pequeno livro publicado na passagem do milênio: O relativo atraso brasileiro e sua difícil superação (2000). Em outros termos, o autor reconhece que o Brasil ingressou decisivamente na Revolução industrial, processo notadamente acelerado a partir da segunda metade do século XX, de forma que nas últimas décadas do século esse atraso tornou-se apenas relativo, sobretudo porque o país não logrou superar sua histórica má distribuição de renda, assim como não conseguiu “estruturar a pesquisa científica, que corresponde ao motor do progresso ininterrupto” observado nos países avançados (p. 10). O que ele procura argumentar nesse seu livro é que o relativo atraso brasileiro é de “difícil superação” porque o Brasil ainda não é um país capitalista, e sim patrimonialista, tendo estruturado sua revolução industrial sem deixar de ser patrimonialista. Outras duas razões desse relativo atraso e das dificuldades em superá-lo residem no “cientificismo” – que consiste na importação de um positivismo mal digerido – e no “contra-reformismo”, que impede a mudança de arraigadas tradições culturais (como o ódio ao lucro e à riqueza), de transformação muito lenta em função da persistência de hábitos longamente arraigados na população.

No primeiro quesito, o industrialismo patrimonialista, sobressai-se o poderoso intervencionismo do Estado na esfera econômica, que antecede o próprio keynesianismo como doutrina ou guia prático a orientar a principais medidas regulatórias do Estado na vida econômica do país. Paim localiza num antigo manual do engenheiro Aarão Reis, Economia política, finanças e contabilidade (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918, 2 vols.), adotado oficialmente na Escola Politécnica do Rio de Janeiro e que durante longos anos constituiu a base do ensino formal de economia no país. Antonio Paim transcreve nada menos de 11 atribuições que cumpriria ao Estado observar (pp. 16-17), que se desdobrariam na era Vargas e mais além, como prescrições incontornáveis a um processo de desenvolvimento econômico, seguidos desde a implantação do Conselho Federal do Comércio Exterior, nos anos 1930, seguidos pelas ações do Estado Novo e, já na redemocratização de 1946, pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e seus corolários no BNDE, na criação de algumas estatais e no Plano de Metas de JK. O regime militar representou a culminância desse processo, colocando o Brasil entre as maiores economias do mundo, mas agravando algumas distorções típicas de todo o período, como a estatização de amplos setores da economia, o nacionalismo extremado, que ambos confirmaram e consolidaram o patrimonialismo tradicional. 

O cientificismo, por sua vez, está estreitamente vinculado à penetração e difusão do pensamento positivista a partir de meados do século XIX, exemplifica por Antonio Paim na obra de Luís Pereira Barreto (1840-1923), que publica dois livros correspondendo às três filosofias do mestre francês, nomeadamente Filosofia teológica (1874) e Filosofia metafísica (1876). Posteriormente, em nome da Igreja positivista, Teixeira Mendes (1855-1927) também demonstra preconceito contra as instituições universitárias, o que reforçou, segundo Antonio Paim, as recomendações dos positivista, que “lograram influenciar a maioria dos componentes dos órgãos decisórios e [que] por isso mesmo são responsabilizados diretamente pelo abandono sistemático da ideia de implantar-se a Universidade, nos decênios iniciais da República” (p. 39). A oposição só começa a arrefecer a partir da criação da Associação Brasileira da Educação (ABE), nos anos 1920, em especial na década seguinte, com a criação da USP, em 1934, e da Universidade do Distrito Federal, no ano seguinte. O grande idealizador e fundador dessas inovações é Anísio Teixeira (1900-1971), que luta por instituições claramente identificadas com objetivos práticos de formação de recursos humanos para o desenvolvimento nacional.

Simon Schwartzman, no livro Formação da comunidade científica no Brasil (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979), trata da questão da integração das escolas tradicionais – faculdades de Direito, Medicina, escolas de Farmácia, Odontologia, Agronomia, Politécnica – às novas universidades, o que não se fez sem grandes dificuldades. Antonio Paim volta a registrar a permanência do cientificismo pombalino, prolongado pelo positivismo, como um dos obstáculos ao desenvolvimento do espírito científico no Brasil, e que para ele prolongou-se inclusive na formação de uma “versão positivista do marxismo”, que ele analisou em seu livro História das ideias filosóficas no Brasil (5ª. ed.; Londrina: UEL, 1997). Para ele, o varguismo, pela ação de personalidades como Francisco Campos, deformou o espírito propositor dos antigos pais fundadores da ABE, como explicitado por ele na passagem seguinte: 

Desse modo, a Universidade seria estruturada como uma federação de escolas isoladas, voltadas para a formação profissional. O projeto da ABE é inteiramente abandonado e as Faculdades de Filosofia, desmembradas após 1964, também são enquadradas na consecução de tais objetivos limitados. Há casos extremos, como os cursos de Filosofia, formalmente destinados a diplomar professores para o ensino secundário, disciplina que deixou de existir naquele nível de ensino. Assim, a atividade está voltada para si mesma, mesmo no que toca a pós-graduação, transformada em simples exigência para as promoções estatutárias. 

O marxismo positivista, por sua vez, não tem interesse no desenvolvimento de qualquer espécie de pesquisa, porquanto se trata apenas de enquadrar a realidade em determinados esquemas, não obstante a circunstância de que sua obsolescência haja transitado em julgado. (...)

E assim, consagrou-se a vitória do cientificismo, derrotando o projeto de estruturar no país pesquisa científica digna de nome, reconhecida internacionalmente... (O relativo atraso..., op. cit., pp. 58-59)

 

No terceiro e penúltimo capítulo desse seu importante pequeno livro, Paim aborda a questão da persistência da moral contra-reformista, herdada de Portugal e que “atravessou sem percalços as centúrias subsequentes” (p. 64), constituindo, ao que parece, uma das bases do ideário nacional, em especial com respeito às questões da pobreza, do lucro, do espírito capitalista. Em suas palavras: 

São muito eloquentes as evidências de que a moral contra-reformista tornou-se um dos ingredientes fundamentais de nossa moralidade social básica. O ódio ao lucro e à riqueza são sentimentos amplamente difundidos, sendo muito generalizada a condenação ao capitalismo. Defendê-lo, ainda hoje, não deixa de ser uma temeridade. (p. 75) 

 

Mesmo entre militares, politicamente adversários do socialismo, a repugnância do capitalismo, do espírito de lucro, não deixou de prevalecer, sobretudo nas estatais que vários deles comandaram durante o regime autoritário de 1964-1985. No seu último capítulo, Paim indaga se conseguiremos vencer o patrimonialismo, o cientificismo e o contra-reformismo. Ele se revela moderadamente pessimista, por várias razões, entre elas “porque a massa da população não associa a péssima distribuição de renda à persistência do patrimonialismo” (p. 122). A grande audiência de que dispõem os patrimonialistas no Brasil “é impeditiva do pleno florescimento do capitalismo, que seria a única forma de disseminar no país focos de desenvolvimento econômico” (idem). Paim termina essa sua pequena grande obra, registrando o pensamento de uma grande historiadora americana: 

Na seleção dos eventos que considerou no magnífico livro intitulado A marcha da insensatez, Barbar Tuchman (1912-1989) adotou como critério que o erro representado por aquele passo tivesse sido denunciado antes de que a elite decidisse empreende-lo. Quando mais não seja, a nossa denúncia, se não revelar maior eficácia, servirá ao menos para evidenciar, perante o historiador do futuro,  que nem todos estavam cegos. Certamente que é pouco. Mas não deixa de representar mais um estímulo à nossa persistência. (p. 122)

 

Fontes e bibliografia:

 

Obras de Antonio Paim

A filosofia da Escola do Recife. Rio de Janeiro: Saga, 1966

História das ideias filosóficas no Brasil. São Paulo: Grijalbo-USP, 1967 (5ª. ed.: 1997)

Cairu e o liberalismo econômico. RJ: Tempo Brasileiro, 1968

Tobias Barreto na cultura brasileira: uma reavaliação (com Paulo Mercadante). SP: Grijalbo-USP, 1972

Evolução histórica do Liberalismo (com Francisco Martins de Souza, Ricardo Vélez-Rodríguez, e Ubiratan Borges de Macedo). 1977

A querela do estatismo: a natureza dos sistemas econômicos: o caso brasileiro. RJ: Tempo Brasileiro, 1978. 2ª ed.: 1994.

O estudo do pensamento filosófico brasileiro. RJ: Tempo Brasileiro, 1979.

História do Liberalismo brasileiro (1ª ed. 1998; nova edição: SP: LVM, 2018)

Momentos Decisivos da História do Brasil (São Paulo: Martins Fontes, 2000)


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Raymond Aron: uma influência decisiva em minha formação - Paulo Roberto de Almeida

Um trabalho que permaneceu inédito até aqui:  

Raymond Aron: uma influência decisiva em minha formação

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

Brasília, 18 de fevereiro de 2018

 [Objetivo: Respostas a consulta de professor da Faculdade de Educação da Unicamp, do Departamento de Ciências Sociais na Educação da UniCampfinalidadeinfluência de Raymond Aron no meu trabalho intelectual.]

 

 

1. Introdução: consulta sobre Raymond Aron

 

Este roteiro de questões diz respeito tanto à pesquisa de mestrado (...) sobre a influência do pensamento de Raymond Aron (1905-1983) na consolidação do pioneiro programa de Pós-graduação em Relações Internacionais na UnB na década de 1970 - que se encontra em andamento no Programa de Pós-graduação em Educação da Unicamp, quanto às pesquisas do orientador do estudo (...) centradas no pensamento político e sociológico de Aron.

A proposta de trabalho de mestrado (...) centra-se, de um lado, no exame do conjunto de teses e dissertações defendidas na UnB tendo como parâmetro o uso dos conceitos aronianos a partir das principais obras que dedicou às RI – Paz e Guerra entre as Nações (1962) e Pensar a Guerra: Clausewitz (1976) e, de outro, na influência mais ampla de seu pensamento no Brasil, em especial a partir de meados da década de 1970 -  culminando com sua visita ao país em um seminário promovido pela UnB em 1980.

Aron é sempre citado como exemplo de potência e coerência intelectual. A maneira pela qual sustentou posições liberais num contexto de franco alinhamento político e ideológico dos mais importantes intelectuais de sua época com o marxismo em suas diversas expressões (em especial na França) acabaram por inverter, após a sua morte em 1983, a máxima segundo a qual seria “preferível errar com Sartre a acertar com Aron”.

Autor de diversos interesses, Aron não fez escola em nenhuma das áreas a que se dedicou intelectualmente: nem o filósofo promissor que publicava, já em 1938, o opus Introduction à la philosophie de l’histoire, nem o sociólogo e analista político autor de livros monumentais e tampouco o influente teórico das RI. O maior legado de Aron, para além do conjunto de uma obra a um só tempo fragmentária e erudita (de alguém que também escreveu por 35 anos na imprensa francesa), parece ter sido o engajamento de uma vida em nome de valores inegociáveis.

No Brasil, a influência de seu pensamento ainda não foi devidamente mensurada ou estudada. O clássico As etapas do pensamento sociológico (1967) é adotado como livro base na maior parte dos cursos de introdução à sociologia, ao passo que a sua trilogia sobre a sociedade industrial, conjunto de aulas proferidas na Sorbonne da década de 1950 que foram publicadas na década subsequente, já não aparece com a mesma regularidade de outrora à guisa de leitura obrigatória para os estudantes brasileiros de ciências sociais. Via de regra, Aron é menos associado às obras que escreveu que aos posicionamentos políticos que em vida assumiu.

O primeiro contato de Aron com o Brasil ocorre da década de 1930, quando Júlio de Mesquita Filho o procura em Paris aparentemente interessado no estudo dos filósofos alemães. Daí floresceria uma amizade que resultaria na colaboração com O Estado de S. Paulo por quase duas décadas (268 artigos no total entre 1960 e 1980). A primeira visita de Aron ao Brasil ocorre em 1962, entre os dias 12 a 28 de setembro. Amplamente noticiada por diversos jornais brasileiros, a visita parece estar relacionada ao contexto político internacional, mais especificamente ao encontro do então presidente Goulart com Kennedy, nos Estados Unidos - mediado por Roberto Campos, que servia à época na embaixada em Washington. Neste período, Aron gozava de um período sabático em Harvard, no qual se dedicava à escrita de Paz e Guerra entre as Nações. Bem relacionado com as autoridades norte americanas e amigo pessoal do assessor da presidência americana Henry Kissinger (que também visita o Brasil no mesmo ano), Aron desembarca no Rio de Janeiro e, recepcionado pelo diplomata Francisco Lima e Silva, realiza diversas palestras e conferências em universidades e em órgãos públicos. 

A palestra proferida no Itamaraty tem como assunto o Mercado Comum Europeu, mesma pauta da conversa de Kissinger com Celso Furtado na Sudene e também de Goulart com Kennedy. O programa Aliança para o Progresso, lançado por Kennedy em 1961 com o propósito de supostamente desenvolver o progresso econômico da américa latina e refrear o avanço do comunismo, representa o pano de fundo para todas as ações deste cenário.

A segunda visita de Aron ao Brasil ocorre em 1980 como principal convidado do evento patrocinado pela UnB sob o título de “Encontros Internacionais”. Esses encontros ocorreram entre 1976 e 1984 e contaram com a participação de mais de cinquenta intelectuais de diversos países, entre eles Karl Deutsch, Henry Kissinger, Ernest Gelner, F. A. Hayek, Laszek Kolakowski, Maurice Duverger, Robert Dahl, Giovanni Sartori, Hélio Jaguaribe, Celso Lafer, Norberto Bobbio, Afonso Arinos, Gilberto Freyre entre outros.  As conferências realizadas por Aron no encontro, assim como as entrevistas aos jornais e os textos dos intelectuais convidados como debatedores foram reunidos no livro Raymond Aron na UnB: Conferência e comentário de um simpósio internacional realizado de 22 a 26 de setembro em 1980, publicado no mesmo ano pela editora da UnB. Após o compromisso em Brasília, Aron viaja a São Paulo onde, recepcionado pelo neto de Júlio de Mesquita, o então jovem jornalista Fernão Lara Mesquita, proferiu palestras no jornal O Estado de S. Paulo

Aron teve algumas de suas principais obras publicadas no Brasil pela coleção “Pensamento Político”, editada pela Editora da UnB na década de 1980 – O ópio dos intelectuais (1980), Estudos Políticos (1985), Paz e guerra entre as nações (1986) e Pensar a guerra, Clausewitz (1986) – com prefácios, respectivamente, de intelectuais ligados a ele por laços de amizade ou admiração intelectual: Roberto Campos, José Guilherme Merquior e Antonio Paim – este tanto para Paz e Guerra como para Clausewitz.

Tendo em vista o panorama brevemente descrito, as relações intelectuais e políticas de Aron pensadores brasileiros, bem como a influência que exerceu como pensador liberal nesse período, propomos algumas questões que serão trabalhadas nas pesquisas em andamento sobre Aron e a influência de seu pensamento no Brasil.

 

2. Respostas de Paulo Roberto de Almeida às questões recebidas:

 

I.       Como se deu o seu primeiro contato com Raymond Aron ou com a sua obra? Em quais circunstâncias?

 

PRA: Meu primeiro contato com a obra e o pensamento de Raymond Aron se deu ainda em meados dos anos 1960, jovem adolescente frequentando o “colegial” (ou seja, a segunda etapa do secundário, ou curso médio, depois do ginasial, no então chamado “clássico”, em contraposição ao “científico”, preparatório ao terceiro ciclo de estudos), mas já leitor de obras típicas dos cursos universitários em humanidades. Estudando de noite e trabalhando de dia, eu comprava o jornal “reacionário” O Estado de S. Paulo todos os fins de semana, especialmente aos domingos, interessado nos suplementos culturais do sábado, e nos grandes artigos internacionais do domingo. Minha atenção para os temas internacionais tinha sido despertada pouco tempo antes por uma palestra do cientista político e editorialista do Estadão Oliveiros da Silva Ferreira, feita ainda no ginásio (em 1964 ou 1965), sobre a crise dos foguetes soviéticos em Cuba e o contexto geral da Guerra Fria. A partir desse momento, passei a comprar o Estadão nas bancas, todo fim de semana, e passava as tardes lendo e estudando os grandes artigos traduzidos de grandes intelectuais internacionais. Entre eles se encontrava obviamente Raymond Aron, e ao que me lembre eram artigos traduzidos do semanário L’Express ou de outros periódicos publicados na França. Nessa época, eram poucas as revistas brasileiras sobre temas internacionais, e eu ignorava obviamente a existência da Revista Brasileira de Política Internacional, publicada no Rio de Janeiro desde 1958, mas que não circulava nos circuitos comerciais de varejo. Foi nas páginas do Estadão de domingo, portanto, que eu tomei contato, pela primeira vez, com os artigos eruditos de Raymond Aron e de Roberto Campos, duas leituras obrigatórias, ainda que com grandes restrições de caráter ideológico, uma vez que eu me considerava um aderente precoce da doutrina marxista, e portanto “inimigo” do pensamento de “direita” representado pelos dois intelectuais. Este foi o meu primeiro contato com as ideias “direitistas” de Raymond Aron, intelectual que nunca deixei de ler, mesmo tentando me contrapor, como também era o caso em relação a Roberto Campos, aos seus argumentos enquadrados no pensamento geopolítico da Guerra Fria, durante a qual eu mantinha um posicionamento anticapitalista, mesmo sem necessariamente aderir ao comunismo de tipo soviético, que sempre desprezei. 

 

II.     Em sua opinião, qual a influência do pensamento de Aron tendo em vista as temáticas intelectuais às quais ele se dedicou?

 

PRA: Posso dizer que essa influência foi enorme, mesmo a contragosto, se ouso dizer, uma vez que, numa primeira fase, o marxismo juvenil, de certo modo ingênuo, me levava a considerar que o lado correto era o do intelectual esquerdista Jean-Paul Sartre, não o de Raymond Aron, classificado entre os partidários da “direita”. Pouco antes de sair do Brasil, no final de 1970, em direção à Europa, eu já considerava indispensável ler suas obras, que conhecia de nome, mas que ainda não havia lido nem em francês – língua que eu dominava mal – nem em eventuais traduções em português, que ignorava existir. Sabia de seus livros resultantes das aulas na Sorbonne desde meados dos anos 1950, mas não tinha tido ainda oportunidade de ler.

Estimo que sua influência foi apenas parcialmente importante, no conjunto da academia até o final dos anos 1960, ou até mais além, uma vez que as humanidades no Brasil sempre estiveram bem mais vinculadas ao pensamento marxista do que às teses e argumentos “atlantistas” ou “liberais” de intelectuais como Raymond Aron ou, no caso, brasileiro, Roberto Campos, Eugênio Gudin, ou outros. Ainda se achava basicamente correta a postura de “estar errado com Jean-Paul Sartre, em lugar de acertar com Raymond Aron”, e 1968 era considerado um passo na direção correta, a de recusar a sociedade burguesa e construir uma sociedade solidária; esta não estava alinhada com as posturas do comunismo tradicional, mas sim com a Escola de Frankfurt, com Herbert Marcuse, com Wilhelm Reich e outros teóricos libertários. 

Na época “áurea” da Guerra Fria, Raymond Aron estava estritamente alinhado com os esquemas atlantistas da OTAN e dos EUA, então envolvidos na guerra do Vietnã, e portanto condenados por toda a esquerda mundial, da qual, uma parte pelo menos apoiava a “revolução cultural” da China de Mao, considerada uma etapa superior de construção do comunismo, acima do burocratismo do sistema soviético. Nesse contexto, Aron era cultivado apenas num pequeno circulo de iniciados, uma vez que a maior parte dos acadêmicos se alinhava com as posições “progressistas” da esquerda ocidental. 

 

III.   Aron ainda pode ser considerado, em termos intelectuais, autor atual e influente?

 

PRA: Absolutamente: todas as suas obras, sejam as de filosofia da história, ou as de sociologia industrial, e ainda as de geopolítica no contexto das doutrinas realistas, são pertinentes e indispensáveis a um debate intelectual da mais alta qualidade sobre os problemas sociais, políticos e geopolíticos das sociedades contemporâneas, mesmo no pós-Guerra Fria, uma vez que as características e tendências fundamentais da geopolítica mundial, e das sociedades industriais permanecem válidas mesmo após o declínio irresistível dos projetos socialistas de cunho marxista-leninista. Aron preserva uma lucidez impressionante em relação ao simples debate entre liberais e socialistas de cunho reformista (lassalianos, fabianos, ou seja II Internacional), e mantém coerência em relação às escolhas fundamentais que devem ser feitas no plano interno (democracia de mercado) e no contexto internacional (defesa dos valores ocidentais, contra propostas autoritárias de ordenamento político e social). 

 

IV.    Quando aluno, Aron aparecia como bibliografia nos cursos de graduação e/ou pós-graduação que você frequentou? Como professor, você utiliza ou utilizou obras de Aron como bibliografia em cursos de graduação e/ou pós-graduação? Nos dois casos, quais obras?

 

PRA: Frequentando cursos de Ciências Sociais no Brasil (USP) e no exterior (ULB, em Bruxelas), não me lembro de ter sido recomendado expressamente a ler Raymond Aron, mas como ele era um referência indispensável nos debates políticos da época, fui levado a buscar voluntariamente seus livros sobre a sociedade industrial, e seus debates com os intelectuais marxistas. Nessa época, início dos anos 1970, ainda procurava me alinhar mais com os autores marxistas (sobretudo da Europa ocidental), mas nunca deixei de ler Raymond Aron, como o contraponto necessário aos argumentos dessa linha. Junto com Aron, lia Karl Popper e outros “liberais”, embora tendesse a aderir bem mais às teses anticapitalistas dos socialistas franceses e ingleses, tipo Nikos Poulantzas, Christopher Hill, Perry Anderson e outros. Aron era o antagonista preferido de toda essa tropa de marxistas acadêmicos, aos quais eu aderia residualmente, sem deixar de me referir a Aron (ou Alain Peyrefitte, por exemplo) em sua contestação às principais teses dos esquerdistas. Aos poucos, Aron deixou de ser o “inimigo ideológico” para se converter no “adversário político”, mais adiante convertido em “interlocutor indispensável”, nas reflexões sobre as vias abertas às sociedades do Ocidente e as do Terceiro Mundo.

 

V.      Durante sua segunda visita ao Brasil, em 1980, Aron foi a figura central do simpósio “Raymond Aron na UnB”. Em relação ao homenageado, em sua opinião e tendo em vista o contexto da época, quais as principais motivações para o convite? Em que medida, tais motivações teriam estado ligadas ao contexto político nacional (início do processo de redemocratização) e ao contexto internacional, ainda marcado pela tensão bipolar entre os EUA e a URSS - para além das questões propriamente intelectuais?

 

PRA: Nessa fase, início dos anos 1980, eu já tinha ingressado na carreira diplomática (desde 1977) e me encontrava em postos no exterior, de 1979 a 1984, entre Berna e Belgrado, e tinha retomado minha tese de doutoramento em sociologia política, iniciada em 1976, mas interrompida em 1977 na volta ao Brasil. Posso dizer que Aron foi decisivo no plano puramente bibliográfico, pois passei todos esses anos lendo uma enorme bibliografia em história e sociologia, para completar uma tese sobre as revoluções burguesas, mas num sentido totalmente contrário ao que tinha quando fiz o projeto e iniciei os trabalhos entre 1976 e 1977. Não só Aron, mas Weber, Fernand Braudel, Barrington Moore Jr., Albert Hirschman, os revisionistas históricos sobre as revoluções burguesas, influenciaram minha conversão do marxismo acadêmico a uma análise mais realista dos processos políticos e sociais que levaram as sociedades do Ocidente moderno a sistemas políticos pluralistas e abertos. Aron, entre vários outros, foi essencial nessa revisão interpretativa sobre a natureza do poder político e suas relações com a base social e econômica no processo de modernização contemporânea.

Não tomei conhecimento da vinda de Raymond Aron ao Brasil senão depois de 1985, ao retomar ao Brasil e começar a dar aulas na UnB e no Instituto Rio Branco (a academia diplomática do Itamaraty) de sociologia política, exatamente. Aron era, não preciso dizer, uma referência indispensável, junto com Weber, Marx e outros teóricos, na construção das aulas e nas reflexões sobre nossa transição democrática pós-regime militar. Foi nesse momento que abandonei completamente os esquemas marxistas de reflexão em favor de uma visão mais eclética, inevitavelmente influenciada por intelectuais como Raymond Aron.

 

VI.    Também à época de sua segunda visita, a Editora da UnB traduziu e publicou a principal obra de Aron dedicada ao tema das relações internacionais, Paz e Guerra entre as nações, além de diversos outros títulos de autores tidos como conservadores ou liberais. Em sua opinião, qual a importância deste esforço editorial tendo em vista o ambiente intelectual brasileiro da época?

 

PRA: O esforço empreendido no âmbito da UnB, sobretudo por um dos integrantes do Conselho Editorial da Editora da UnB, o diplomata Carlos Henrique Cardim, foi absolutamente magnífico, no sentido de trazer ao Brasil as mais importantes obras do pensamento político e de relações internacionais, até então inacessíveis ao público local, em especial os cientistas sociais brasileiros. Simplesmente não se tinha acesso a essas obras, a não ser trazidas do exterior pelos próprios acadêmicos que estudavam fora, mas os estudantes estavam praticamente excluídos desse universo. De repente, no espaço de poucos anos – primeira metade dos anos 1980 – todas essas obras ficaram disponíveis, com traduções de qualidade, feitas por diplomatas e professores. Se quisermos mensurar esse aporte em termos de PIB intelectual, pode-se dizer que a riqueza intelectual trazida por essas edições situou-se na faixa de 10 a 20% de acréscimos bibliográficos, senão mais. Mas não só as edições: a própria presença de eminentes intelectuais trazidos para debates pessoais com acadêmicos brasileiros representou um empreendimento intelectual até hoje inigualado nas proporções que essas iniciativas da UnB representaram à época e nos anos subsequentes. A série “[Fulano] na UnB” ofereceu uma apresentação sintética do pensamento de cada um dos intelectuais trazidos ao Brasil, que pode ser considerada inédita no plano mundial, uma vez que não existe depoimentos do gênero dos que foram feitos na UnB nas edições estrangeiras.

 

VII.  O livro ‘Paz e Guerra entre as nações’ foi adotado pelo MEC como leitura obrigatória nos cursos de graduação em relações internacionais a partir dos anos 2000. Como você avalia a influência desta obra em particular para o campo das RI? Aron pode ser considerado um autor original ou influente a partir das reflexões contidas no livro?

 

PRA: Os poucos geopolíticos existentes no Brasil, mas muitos outros professores de relações internacionais, são obrigados a recorrer ao pensamento de Aron, pois ele é incontornável no debate a respeito das grandes questões da guerra e da paz no plano mundial. A bibliografia necessariamente parte de Morgenthau e vai diretamente a Aron, como referência indispensável na discussão da temática geopolítica. O seu realismo “frio”, construído a partir de uma potência de primeiro plano, mas diminuída depois dos conflitos napoleônicos (clausewitzianos) e sobretudo com a ascensão da Alemanha, oferece um contraponto necessário à bipolaridade da era nuclear capitaneada pelos EUA e pela União Soviética. Nesse contexto bipolar, a França foi a nação que escolheu ter uma defesa própria, independente do campo ocidental, e com isso representa um tipo de soberanismo geopolítico talvez adequado a um país como o Brasil, também cioso de sua autonomia em relação aos blocos então existentes.

 

VIII.       Ainda no campo dos estudos das relações internacionais, Aron alinha-se à tradição dos pensadores realistas. Poderíamos vislumbrar afinidades eletivas entre o pensamento reinante no Itamaraty, cuja origem remete a Paulino Soares de Sousa, o Visconde de Uruguai - leitor sistemático de Tocqueville, e as posições liberais que Aron sustentou ao longo do século XX?

 

PRA: Aron era o que eu chamo de “realista flexível”, ou seja, consciente de que o equilíbrio entre grandes potências e potências médias, ainda que fortes (como a França), não poderia ser estudado e considerado apenas com base em premissas teóricas, mas sobretudo com base num itinerário específico no plano das experiências concretas. Essa era, também, a perspectiva de Tocqueville, que estudou os Estados Unidos em sua dimensão própria, ainda que contrapondo suas estruturas políticas e sociais às de sua França e Europa aristocráticas – ainda que transformadas, ambas, pelas grandes rupturas da revolução e da era napoleônica – e podia assim fazer uma análise original da formação política e social americana, apontando-a como o futuro da Europa igualmente (no que estava enganado). Aron tinha plena consciência do quantum de liberdade que os homens e as sociedades dispõem para determinar o seu futuro, e não alimentava nenhum determinismo fatalístico quanto a isso. Sua compreensão da doutrina marxista, e também da weberiana, o habilitava a distinguir os imponderáveis da história.

Nisso, ele foi totalmente distinto dos demais intelectuais franceses (ou de quaisquer outros países) de gabinete, pois temperava suas leituras dos clássicos e contemporâneos com uma reflexão original sobre os itinerários concretos das sociedades. Importante nessa originalidade teórico-prática foi a sua estada na Alemanha no início dos anos 1930, quando assistiu à ascensão do nazismo, constatando a deriva de algumas sociedades para o populismo, a demagogia, o autoritarismo e outras falácias e tragédias, o que o colocou à frente de todos os demais intelectuais puramente acadêmicos. Sua estada em Londres, durante a guerra, também foi importante ao dar uma dimensão eclética ao seu pensamento, absolutamente original no contexto francês. 

Não estou habilitado a avaliar, por não conhecer, essa influência de Tocqueville nas concepções do grande diplomata que foi Paulino Soares de Souza, certamente um dos maiores diplomatas do Império, junto com Miguel da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco. Todos eles foram realistas flexíveis, podendo ser considerados, nesse sentido, “aronianos avant la lettre”, como também o foi o filho do Visconde, o Barão do Rio Branco, menos doutrinário do que Rui Barbosa, por exemplo. Nenhum deles têm sucessores claros no século XX, a não ser parcialmente: Oswaldo Aranha, um realista sem qualquer elaboração doutrinal (a não ser um estrategista instintivo), San Tiago Dantas, um pensador original, infelizmente desaparecido precocemente, e talvez Roberto Campos, um realista da tecnocracia planejadora antes de se converter em um liberal pragmático; pode-se agregar o nome de José Guilherme Merquior, mas este bem mais no terreno teórico do que prático. Todos eles passaram a integrar plenamente minhas reflexões de natureza política, econômica e geopolítica, e meus escritos.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 18 de fevereiro de 2018