O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Raymond Aron. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Raymond Aron. Mostrar todas as postagens

domingo, 30 de julho de 2023

Interrogações sobre o futuro - Paulo Roberto de Almeida

 Interrogações sobre o futuro

A União Soviética esteve no centro das relações internacionais do século XX, de 1917 até 1991, provocando reações nas democracias ocidentais e a animosidade dos fascismos concorrentes. 
Depois foi um vazio de duas décadas, por auto implosão, não porque o capitalismo ou a democracia tenham vencido o maior desafio à estabilidade econômica e política do mundo durante mais de três gerações. 
Agora a Rússia, uma irmã menor, quase vassala, da China, a nova candidata a Hegemon mundial, parecem se colocar no centro do século XXI. Teremos mais 70 anos de tensões geopolíticas? 
É possível que sim, mas não porque a China pretende mudar a estrutura econômica e política do globo, como era a intenção dos bolcheviques leninistas. Ela apenas quer se colocar numa posição de não ser submetida novamente por potências estrangeiras.
Em parte, as tensões atuais se devem a que o atual Hegemon não pretende adotar uma política de igualdade estratégica e de paridade no processo decisório mundial.
Até aí, ainda estamos no terreno normal das disputas geopolíticas entre grandes potências.
Mas será que no terreno dos valores, a grande disputa possa ser considerada apenas nos termos tradicionais de espaços de poder decisório.
Raymond Aron ainda teria algo a nos ensinar? 
Acredito que sim...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 30/07/2023

domingo, 12 de março de 2023

Haverá paz no mundo em 2023? (Artigos na revista Crusoé) - Paulo Roberto de Almeida

Um artigo do final de 2022, para ser publicado num número especial da revista Crusoé sobre as perspectivas para 2023.

Haverá paz no mundo em 2023? 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com; pralmeida@me.com)

Artigo de fim de ano para a revista Crusoé, a convite de Duda Teixeira.

Revisto e publicado, sob o título “Paz impossível, guerra improvável”, na revista Crusoé (n. 244, sexta-feira, 30/12/2022, link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/244/paz-impossivel-guerra-improvavel/). Relação de Publicados n. 1487.

  

Uma resposta precisa a esta complexa questão é um enfático e rotundo NÃO! Mas a concisão e a simplicidade desta afirmação não significam que o mundo conhecerá alguma guerra de proporção equivalente à dos grandes conflitos globais que marcaram a primeira metade do “curto século XX”, de que falava o historiador marxista Eric J. Hobsbawm. O que se descarta é a ocorrência de uma nova guerra total entre adversários geoestratégicos, não a recorrência de guerras interestatais, civis, étnicas, religiosas, ou de proxy wars, conflitos por procuração, entre as grandes potências existentes, nunca interrompidas em qualquer época.

A razão da negativa a uma hipótese jamais descartada pelos planejadores militares é a mesma que já tinha sido dada desde 1948 pelo conhecido filósofo e pensador estratégico francês Raymond Aron, ao considerar a possibilidade de uma nova guerra total entre grandes impérios, no imediato seguimento da Segunda Guerra Mundial: “paz impossível, guerra improvável”. Ele ainda confirmou seu argumento, formulado originalmente no livro Le Grand Schisme (O grande cisma; Paris: Gallimard), em seu livro de memórias, publicado pouco antes de sua morte, Les dernières années du siècle(Os últimos anos do século, 1983), pelos mesmos motivos que sustentavam seu raciocínio: a emergência da arma atômica, a grande dissuasora de qualquer novo enfrentamento global passada a tecnologia das guerras convencionais (exércitos no terreno, mais aviação e frotas bélicas) que ainda marcaram o início das guerras de 1914 e de 1939 (armas de destruição em massa, como o recurso à guerra química e as bombas nucleares foram introduzidas num fase mais avançada das duas grandes guerras mundiais. Registre-se que sua peremptória e durável frase foi feita ainda no período em que a superpotência americana detinha o monopólio da arma atômica, mas Aron nunca duvidou que a União Soviética alcançasse a paridade em breve tempo (ela o fez em 1949, como resultado da espionagem atômica e da capacitação própria dos físicos nucleares russos).

De fato, mais do que as promessas de paz e de segurança internacionais, inscritas no preâmbulo e nos primeiros artigos da Carta de San Francisco (1945), o que realmente evitou uma nova guerra total foi a promessa de uma destruição generalizada entre contendores dotados da ultima ratio do holocausto nuclear. Não que o emprego tático, ou mesmo estratégico, de armas atômicas não tenha sido cogitado ao longo dos últimos 77 anos desde Hiroshima e Nagasaki, mas é que o cogumelo cada vez maior previsto com o aumento dos megatons acrescidos desde então faz com que os líderes políticos, bem mais do que os oficiais militares superiores, retenham a respiração antes de considerar o recurso ao que se convencionou chamar de Armagedom. O general MacArthur, cujas tropas (supostamente a serviço da ONU) tinham sido empurradas de volta para a extremidade sul da Coreia depois do ingresso de “voluntários” chineses na primeira guerra quente da Guerra Fria, cogitou ordenar um bombardeio atômico nas fronteiras da China para cortar o fluxo de tropas e de equipamentos em apoio às forças do ditador Kim Il Sung, da Coreia do Norte; ele foi demitido na mesma hora pelo presidente Truman, o mesmo que tinha aprovado o bombardeio das duas cidades japonesas cinco anos antes. 

Recorde-se, também, que o mundo caminhou para a borda do precipício nuclear, quando da extrema tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética, em outubro de 1962, depois da descoberta da instalação de mísseis soviéticos em Cuba, a poucas milhas da Flórida. O jogo de poker entre os dois gigantes da Guerra Fria foi brilhantemente descrita pelo professor Graham Allison, autor da obra The Essence of Decision (1971), sobre as difíceis negociações entre o presidente John Kennedy e o líder russo Nikita Kruschev até conseguirem desarmar o ímpeto bélico de seus generais e comandantes navais, quando do embargo total sobre a ilha do Caribe decretado pelos americanos. Curiosamente, o mesmo pesquisador tornou-se novamente famoso ao explorar, em 2017, a possibilidade de uma nova guerra total entre os impérios americano e chinês, em seu livro Destined for War: Can America and China Escape Thucydides's Trap? (Condenados à guerra: podem a América e a China escapar à armadilha de Tucídides?), obra supostamente destinada a evitar uma repetição da guerra do Peloponeso descrita pelo conhecido historiador grego, contemporâneo daquela contenda fatal entre a Esparta autoritária e a democrática Atenas.

Mais recentemente, o espectro de um conflito nuclear entre os mesmos contendores da velha Guerra Fria voltou a ser aventado pelo próprio neoczar russo, Putin, ao declarar que não hesitaria em recorrer às suas armas mais poderosas caso a Otan viesse em socorro direto à Ucrânia depois de sua frustrada invasão e guerra de agressão iniciada em fevereiro de 2022, contra um vizinho não nuclear, depois de sua separação do império soviético em 1991. No caso, os planejadores militares exploraram o recurso a armas nucleares táticas, ou seja, de terreno, não o deslanchar de um ataque devastador contra os territórios adversários, mas ainda assim proliferaram especulações sobre a efetiva possibilidade desse recurso último, caso a Rússia seja humilhada no terreno (como está sendo) pelas forças ucranianas (apoiadas maciçamente pelos países da Otan e outras democracias ocidentais). Seria interessante ter novamente Raymond Aron formulando seus argumentos sobre esse terrível conflito.

Mas, excluindo-se, de forma ingênua ou otimista, um novo passeio à beira do abismo, cabe reafirmar que o mundo não terá paz em 2023 ou mais além, pelo simples motivo de que os Estados nacionais ou apenas grupos armados e dotados de qualquer causa bélica legítima ou ilegítima estão sempre dispostos a recorrer ao uso da força em defesa de seus interesses nacionais, étnicos, religiosos e até mesmo tribais. Uma visita ao cenário atual de conflitos latentes ou potenciais pode confirmar a grande disseminação das guerras entre Estados ou intra Estados na presente conjuntura: Somália, Etiópia, República Democrática do Congo, República Centro-Africana, Burkina Faso, Chade, Mali, Niger, Nigéria e Sudão são os pontos mais visíveis no continente africano; Iêmen, Síria, Líbano, no Oriente Médio; Afeganistão, Paquistão e Mianmar, na Ásia do sul; talvez até Venezuela e novamente no Haiti não podem ser excluídos o ressurgimento ou a continuidade de conflitos armados. Em muitos outros países, bandos armados já em ação não excluem a passagem a guerras civis localizadas. 

A Ucrânia, obviamente, garante a continuidade do maior conflito na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial, não esquecendo os que já ocorreram nos Balcãs, cenário do início da Grande Guerra, e diversos outros latentes, como entre Azerbaijão e Armênia, ou a longa luta dos curdos e dos próprios palestinos a propósito da denegação de um dos mais difíceis princípios expostos pelo presidente Woodrow Wilson para as negociações de paz de Paris em 1919: a autodeterminação dos povos. Todos esses conflitos e outros ainda possíveis garantem uma agenda sempre problemática para debate e eventual encaminhamento ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), encarregado justamente de promover e defender a paz e a segurança internacionais, segundo os artigos mais relevantes da Carta da ONU. Pode-se também antecipar que mais da metade deles sequer serão objeto de qualquer decisão do CSNU em 2023 ou nos anos à frente, e não apenas em virtude do famigerado direito de veto exercido arbitrariamente por algum dos seus cinco membros permanentes.

Com efeito, a despeito da Corte Internacional de Justiça já ter formado maioria contra a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, e de ter ordenado a retirada imediata das tropas invasoras, nada de efetivo ocorreu, pois que a CIJ “não tem dentes”, dependente que é de resoluções do CSNU para o cumprimento de suas decisões, o que permanece uma hipótese altamente aleatória. Mesmo quando esse órgão de última instância da ONU aprova uma decisão em favor de uma nova missão de manutenção ou de imposição da paz, isto não quer dizer que ela será imediatamente cumprida, uma vez que a ONU, essa velha senhora, não dispõe de seus próprios “cães de guarda”, sendo totalmente dependente, por sua vez, da vontade ou da propensão dos membros permanentes e temporários do CSNU, ou outros membros da organização, de colocarem tropas, equipamentos e recursos para a formação de uma missão de paz (de qualquer tipo) e para o seu deslocamento para o terreno. No caso da Ucrânia, como já visto ao longo de 2022, essa possibilidade é totalmente inexistente, razão pela qual os “aliados” do país da Europa oriental introduziram sanções unilaterais contra a potência agressora, ainda que num espírito e modalidades totalmente convergentes com os artigos da Carta que regulam tais medidas (já utilizadas multilateralmente nos casos da Coreia do Norte, do ex-Congo belga, da Rodésia do Sul e da África do Sul nos tempos dos governos de minoria branca, do Iraque invasor do Kuwait em 1990 e do Afeganistão, em 2001, como “hospedeiro” dos terroristas que atacaram os EUA no mesmo ano). 

A Rússia vetou qualquer resolução do CSNU tendente a sancioná-la pela guerra de agressão, ainda que não tivesse podido impedir manifestações maciças da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos condenando-a pela invasão e pelos crimes de guerra que estão sendo continuamente perpetrados pela Rússia, o que garantiria a Putin o “direito” a um Nuremberg só seu, hipótese tão improvável quanto um processo e condenação pelo TPI da Haia. Não existe, por outro lado, qualquer possibilidade, no futuro previsível, de que a Carta da ONU seja revista para impedir, por exemplo, que os membros permanentes utilizem essa excrescência do direito de veto quando são eles próprios violadores dos artigos da Carta. O cenário provável é, portanto, o da continuidade dessa guerra monstruosa, assim como de diversas outras praticamente esquecidas pela parte “civilizada” do planeta, neste ano de 2023 e nos que se lhe seguirão. A agenda do CSNU e da própria AGNU permanecerá bloqueada para as questões mais delicadas, que são sempre aquelas nas quais as grandes potências possuem interesses relevantes, e também para as outras, em relação às quais são indiferentes.

Esse cenário coloca na agenda multilateral do Brasil, e também humanitária, ou no plano simplesmente moral, a questão de saber qual postura sua diplomacia deveria adotar nesses casos que impactam, direta ou indiretamente seus interesses nacionais, ou mesmo a consciência ética de seus líderes, se por acaso esse elemento entra em linha de conta. Na diplomacia do “primeiro” Lula, seu chanceler por dois mandatos, Celso Amorim, invocou o princípio subjetivo da “não indiferença” para justificar a aceitação da sugestão feita pelos EUA e França da liderança do Brasil numa missão de estabilização dos agudos conflitos internos no Haiti, que ameaçam desbordar para essas duas potências “coloniais”. Não se sabe se na gestão de Lula “terceiro” o mesmo princípio será invocado para retomar o caminho da antiga Minustah numa nova modalidade de intervenção humanitária e assistencial. O mais relevante, porém, é saber qual postura o país adotará em relação a um possível agravamento da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, que é o cenário mais provável de ocorrer em 2023, em face das contínuas dificuldades de Putin no enfrentamento do seu “Vietnã” nouvelle manière. Até aqui, o Brasil refugiou-se numa posição de neutralidade hipócrita, pois que objetivamente favorável à Rússia, com a qual o governo Bolsonaro negociou a continuidade do fornecimento de fertilizantes e até a importação de combustíveis. 

Essa guerra já provocou uma dramática crise energética (sobretudo na Europa), uma igualmente dramática ameaça ao comércio de grãos (em direção de importadores pobres), além de fenômenos mais recorrentes no cenário da economia mundial: inflação, alta de juros e, ainda mais preocupante, uma nova recessão nas principais economias afetadas pelo conflito, com repercussões inevitáveis sobre todos os demais países. Por mais que o Brasil possua uma matriz energética diversificada e uma amplíssima produção primária de bens agrícolas e minerais, ele não é insensível à volatilidade desses mercados, assim como aos fluxos financeiros e cambiais que podem acelerar o ímpeto inflacionário interno, assim como agravar eventual carência de empréstimos, financiamentos ou investimentos externos. No plano propriamente diplomático, a possível consolidação de uma nova Guerra Fria (desta vez mais propriamente econômica do que geopolítica, mas também esta) acarretará angústias semelhantes ou similares àquelas ressentidas nos anos 1940-80, quando o Brasil buscava firmar uma agenda universalista e ecumênica, capaz de fortalecer sua autonomia decisória e a exclusiva defesa dos interesses nacionais em face das grandes contendas da época.

Naquela fase, o Brasil tinha sido sede da assinatura do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (de 1947), um predecessor do princípio da segurança coletiva que seria depois implantado no Tratado de Washington de 1949, criando a Otan, um dos personagens mais ativos na atual guerra da Ucrânia. A diplomacia brasileira manteve-se pouco propensa a invocar o TIAR quando da guerra das Malvinas, em 1982, mas lembrou-se dele, para oferecer solidariedade aos EUA, quando dos ataques terroristas de setembro de 2001. Um elemento novo na equação da segurança, que afetará diplomaticamente o Brasil na presente conjuntura, é a existência do Brics, um foro de consulta e coordenação que congrega, ademais da Índia, da China e da África do Sul, o próprio agressor da Ucrânia e violador da Carta da ONU. Saber o que decidirá a diplomacia de “Lula III” em face do que se afigura um dilema dos mais angustiantes é a grande incógnita do presente momento. Bem-vindos a 2023.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4290: 18 dezembro 2022, 5 p.

 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Inéditos de José Guilherme Merquior: amostras da ‘máquina de pensar’ - Paulo Roberto de Almeida (Seminário Merquior 80 anos)

Minha colaboração ao Seminário Internacional José Guilherme Merquior, 80 anos:

 4038. “Inéditos de José Guilherme Merquior: amostras da ‘máquina de pensar’”, Brasília, 7 dezembro 2021, 19 p. Apresentação sumária dos textos inéditos ou pouco conhecidos de José Guilherme Merquior: prefácio às edições brasileiras dos Estudos Políticos de Raymond Aron (1980) e do Dicionário Crítico da Revolução Francesa, de François Furet e Mouna Ozouf (1988), e conferências feitas na Universidade de Harvard, El Otro Occidente (1988) e no Centre de Recherches sur le Brésil Contemporain, “Brésil: cent ans de bilan historique” (1990). Divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/63761861/4038_Ineditos_de_Jose_Guilherme_Merquior_amostras_da_maquina_de_pensar_2021_).


Inéditos de José Guilherme Merquior: amostras da ‘máquina de pensar’

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata; IHG-DF; Ibmec-Brasília

Colaboração preparada para o:

Seminário Internacional José Guilherme Merquior: 80 anos

Painel “Inéditos de José Guilherme Merquior” (10/12/2021, 16hs)

  

Sumário

Introdução: os quase inéditos de Merquior, dois prefácios e duas conferências

Raymond Aron: o mestre incomparável da sociologia histórica

Um outro Ocidente: a filosofia da história vista da América Latina

A Revolução francesa ainda não terminou: pelo menos não na academia

Um balanço em claro e escuro da incompleta construção republicana

Depois de San Tiago Dantas, provavelmente o maior intelectual brasileiro do século XX

 

 

Introdução: os quase inéditos de Merquior, dois prefácios e duas conferências

Foi o ex-ministro da Educação, editor e seu colega na Academia Brasileira de Letras, Eduardo Portella, que designou José Guilherme Merquior como “mais fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista: irreverente, agudo, sábio.” As provas desse verdadeiro veredito estão refletidas em dezenas de obras publicadas, mas também em um sem-número de escritos que ainda não vieram a lume, ou que passaram quase despercebidos, por terem sido publicados em obras de terceiros ou por terem sido recolhidos em veículos de menor circulação. Estão nesse caso várias conferências feitas a públicos diversos, assim como ensaios preparados especialmente para livros traduzidos e publicados no Brasil. 

Como antecipei em uma nota introdutória a esta apresentação sobre alguns dos textos relativamente inéditos ou pouco conhecidos do grande intelectual brasileiro falecido prematuramente em 1991 – “Jose Guilherme Merquior: textos inéditos ou pouco conhecidos” (Brasília, 2 dezembro 2021, 7 p.; disponível na plataforma Academia.edu, link: https://www.academia.edu/63037269/4034_Jose_Guilherme_Merquior_textos_relativamente_ineditos_ou_pouco_conhecidos_2021_); divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/12/jose-guilherme-merquior-80-anos-6.html) –, pretendo cumprir com o prometido ao abordar, com maior grau de detalhe, alguns dos trabalhos que ele produziu, mas que não integraram, na forma como foram produzidos, seus próprios livros individuais. José Guilherme Merquior, ademais de sua imensa bibliografia, possui um volume ainda não catalogado de manuscritos e inéditos que estão sendo progressivamente disponibilizados graças ao labor conjunto do organizador de várias de suas reedições, o professor João Cézar de Castro Rocha, e do editor encarregado pela família de publicar ou republicar o seu espólio, Edson Filho, da É Realizações Editora. 

Já discorri, de modo amplo, sobre grande parte da obra publicada de Merquior no terreno da sociologia política, notadamente no posfácio à reedição da edição brasileira de Foucault, incorporada sob o título de “José Guilherme Merquior: o esgrimista liberal”, in: José Guilherme Merquior, Foucault, ou o niilismo de cátedra (nova edição: São Paulo: É Realizações, 2021, p. 251-320), o que me dispensa de novamente abordar aqui a riqueza totalizante da sua produção intelectual, pelo menos nessa área especializada de sua imensa contribuição à crítica das ideias e doutrinas políticas. Pretendo, portanto, nesta nova nota, tratar de alguns trabalhos pouco conhecidos de José Guilherme Merquior, ou talvez até relativamente inéditos, no sentido em que eles não foram recolhidos, na forma em que foram apresentados por ele uma primeira ou uma única vez, nos livros editados comercialmente, inclusive porque foram publicados em obras de terceiros. 

Vou deixar de lado, no momento, alguns desses inéditos, inclusive porque tomei a iniciativa, quando do transcurso de seus 80 anos, em abril de 2021, de incorporá-los numa brochura que preparei naquela ocasião – José Guilherme Merquior: um intelectual brasileiro (Brasília, 19 de abril de 2021, 187 p.; disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/46954903/Jose_Guilherme_Merquior_um_Intelectual_Brasileiro_2021_) –, e que são, linearmente, o seu discurso de posse como orador da turma do Instituto Rio Branco (dezembro de 1963), sua tese apresentada no I Curso de Altos Estudos no Instituto Rio Branco, “O problema da legitimidade em política internacional (1978)”, ambos recolhidos no volume preparado pelo Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais do Itamaraty: Celso Lafer et alii, José Guilherme Merquior, diplomata (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1993, respectivamente p. 39-45 e 47-80), ademais do ofício que ele redigiu quando era secretário da embaixada do Brasil em Bonn, em 1973, sobre os grandes desafios da Guerra Fria num momento de tensões entre as grandes potências: “O sistema internacional e a Europa Ocidental”, este sim verdadeiramente inédito.

Naquela oportunidade, tentei imaginar, o que ele poderia ter ainda produzido, na fase mais produtiva de uma vida toda ela dedicada às leituras, aos estudos, às reflexões e à escrita, se não tivesse falecido prematuramente em 1991, logo depois da última palestra apresentada nesta nota, e antes que fosse publicado, pela editora Twayne, de Boston, seu primeiro livro póstumo: Liberalism Old and New. De fato, Merquior produziu, num curto espaço de trinta anos, um volume prodigioso de trabalhos de alta qualidade, ademais de um número talvez ainda não catalogado devidamente de artigos de jornal no contexto de debates que ele empreendeu com todo tipo de “parceiros” (inclusive marxistas) ou “adversários” (mas todos involuntários, pois ele não concebia dessa maneira). Pode-se imaginar o que ele teria ainda produzido nos trinta anos seguintes ao seu infeliz passamento, naquela que teria sido, provavelmente, a fase mais fecunda e mais produtiva de uma vida toda ela dedicada à leitura, às reflexões e à escritura, ou seja, tudo aquilo que perdemos, como comunidade acadêmica, e a própria nação brasileira, privados de seu imenso conhecimento altamente sofisticado.

Divulguei, ao longo dos primeiros meses de 2021, uma série de postagens no blog Diplomatizzando discorrendo sobre aspectos diversos da produção intelectual já conhecida de José Guilherme Merquior. Vou, portanto, limitar-me, nesta nota expositiva, a apresentar alguns poucos trabalhos menos conhecidos de Merquior, inseridos como prefácios ou palestras nas publicações que indico a seguir: 

1) “Ciência e consciência da política em Raymond Aron”, um longo prefácio (30 p.) que ele preparou para a edição brasileira da obra de Raymond Aron: Études politiques (Paris: Gallimard, 1972), que foi publicado em tradução de Sérgio Bath (já tradutor de várias outras obras de Aron, entre elas o Paz e Guerra entre as Nações), com apresentação de Rolf Kuntz, sendo que Merquior parafraseia o capítulo introdutório do próprio Aron: “Ciência e consciência da sociedade”: Raymond Aron, Estudos Políticos (Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 9-39);

2) “El Outro Occidente (um poco de filosofia de la historia desde Latinoamerica”), uma conferência feita em espanhol, quando ele era embaixador do Brasil no México, no Departamento de Línguas e Literatura Românicas da Universidade de Harvard, em setembro de 1988, publicada depois nos Cuadernos Americanos da Universidade Nacional do México (UNAM, n. 13, jan.-fev.1989, p. 19-23); 

3) “O repensamento da Revolução”, o longo (40 p.) e erudito prefácio que ele preparou, no México, entre dezembro de 1988 e janeiro de 1989, para a edição brasileira do Dicionário Crítico da Revolução Francesa de François Furet e Mona Ozouf (Paris: Flammarion, 1988), publicado nesse mesmo ano pela Nova Fronteira; p. xvii-lvii).

4) “Brésil: cent ans de bilan historique”, a palestra efetuada em Paris, quando ele já ocupava a representação do Brasil junto à Unesco, em dezembro de 1990, depois publicada nos Cahiers du Brésil Contemporain (Paris: Centre d’Études sur le Brésil Contemporain, n. 16, 1990, p. 5-22) e que eu reproduzi fac-similarmente na minha brochura de abril, José Guilherme Merquior: um intelectual brasileiro.

 

(...)


Íntegra do texto neste link: 


https://www.academia.edu/63761861/4038_Ineditos_de_Jose_Guilherme_Merquior_amostras_da_maquina_de_pensar_2021_ 


segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

O diplomata e o soldado: Celso Lafer sobre a obra de Raymond Aron (Revista 451, 2019)

Um ensaio que eu não conhecia, e que escapou da coletânea de textos que organizei para o patrono das Relações Internacionais do Brasil (mas ela só foi até 2017), publicada em 2018: Celso Lafer, Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação (Brasília: Funag, 2018, 2 vols.).

Paulo Roberto de Almeida

Relações Internacionais

O diplomata e o soldado

Ex-chanceler brasileiro analisa a importância de Raymond Aron no campo das relações internacionais

Celso Lafer

Quatro Cinco Um, 01/04/2019


articles-lN6Ji3xoT9cGDyK
O filósofo francês Raymond Aron em 1986 Erling Mandelmann/Gamma-Rapho
Aron, Raymond
Paz e guerra entre as nações 
Tradução de Sérgio Bath
WMF Martins Fontes • 980 pp • R$ 119,90

Raymond Aron (1905-83) foi um pensador de grande envergadura em muitos campos do conhecimento das ciências humanas. O seu ponto de partida foram as obras de cunho universitário que elaborou na década de 1930 dedicadas à filosofia da história, à analise em profundidade dos limites da objetividade histórica, e às condições da existência histórica. 

Como aconteceu com tantos pensadores europeus que foram seus contemporâneos, o turbilhão da Segunda Guerra Mundial alterou a sua vida.  No plano intelectual, levou-o a uma abrangente e interdisciplinar reflexão de “observador engajado” sobre as rupturas que caracterizaram o século 20. Empenhou-se em  esclarecer e explicar a dinâmica dos múltiplos setores da sociedade moderna — como por exemplo, as relações sociais, as relações de classe, os regimes políticos, as discussões ideológicas — valendo-se do seu aprofundado domínio da filosofia, da sociologia e da ciência política. Um dos campos a que se dedicou com maestria foi o da especificidade das relações interestatais. 

Paz e guerra entre as nações insere-se neste âmbito da sua dedicação às relações internacionais. Teve como estímulo o ineditismo da existência das armas nucleares. Foi o complemento reflexivo da sua atividade jornalística, na qual, a partir da segunda metade de 1940 até a sua morte, notabilizou-se como comentarista e editorialista regular de política internacional na grande imprensa francesa — tarefa que exerceu concomitantemente e sem prejuízo da sua atividade de grande professor universitário.

Paz e guerra foi redigido em 1960-1961 e publicado na França em 1962. A primeira edição brasileira data de 2002. Foi publicada na coleção clássicos do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), sob os auspícios da Editora da Universidade de Brasília e da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

A edição beneficia-se de uma qualificada apresentação de Antonio Paim e contém um prefácio do próprio Aron à tradução brasileira. Aron, cabe lembrar, teve presença em nosso país como assíduo colaborador de O Estado de S. Paulo

Esteve entre nós em duas ocasiões. A primeira em 1962, quando deu conferências em universidades brasileiras — dentre elas, uma na Faculdade de Direito da USP, à qual assisti. Nela, começou apontando a unidade do campo diplomático: “Pela primeira vez os homens vivem uma só e mesma história. A humanidade está unificada pelos seus conflitos, pela técnica e também por seus problemas”. A segunda foi em 1980, tendo Aron participado de um simpósio na Universidade de Brasília dedicado à sua obra (“Raymond Aron na UnB”), do qual participei, e proferindo conferências em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Economia e futebol

A presente edição agrega à anterior um substancioso texto seu de 1983, que serviu como apresentação à 8ª edição francesa, assim como seu prefácio de 1966 à 4ª edição francesa. Paz e guerra entre as nações é um livro notável. 

Em contraste com tantos livros de teoria das relações internacionais, escritos e pensados sob a perspectiva da Guerra Fria e da rivalidade Estados Unidos/União Soviética e que se tornaram obsoletos já na década de 1990, com o término das polaridades definidas — Leste/Oeste e, nas suas brechas, a Norte/Sul —, a grande obra de Aron retém plena a atualidade.

As relações internacionais se desdobram sob a sombra da guerra, um camaleão científico-tecnológico 

Permanece como um mapa de conhecimento para o estudo e a avaliação das relações internacionais, graças aos instrumentos analíticos que oferece e elabora com rigor e qualidade. 

Aron argumenta que a singularidade do campo, que o diferencia de outras áreas das ciências sociais, é que ele está permeado pela situação limite paz/guerra; e que, no âmbito das relações interestatais, como ele diz recorrendo a Max Weber, existe a ausência  de uma instância que detenha o monopólio da violência legítima, em contraste com o que ocorre no plano interno dos Estados. Daí a importância que atribui a dois personagens qualificados como simbólicos: o diplomata e o soldado como os representantes por excelência  das coletividades estatais. 

Aron evidentemente não ignora  que a sociedade internacional é mais ampla do que a sociedade interestata, como aponta no livro e nos seus prefácios que integram a edição brasileira. Engloba o sistema econômico mundial e os fenômenos transnacionais que a influencia e impacta.

Isto não afasta, contudo, no entender de Aron, a singularidade sistêmica das relações interestatais, que não se amoldam à predominância causal da economia. É o que observa com a sua autoridade de marxólogo, que está aliás, em consonância com a análise de Bobbio sobre as insuficiências do marxismo para um abrangente trato das relações internacionais e da guerra. 

Na discussão dos níveis conceituais da compreensão do campo, Aron aponta que não cabe a analogia nem com a economia nem com o futebol. O tema unificador da primeira é o desafio da escassez, e o seu problema é a da escolha dos meios de superá-la e de distribuir os resultados alcançados. O futebol tem regras, juiz, e o preciso objetivo dos times é ganhar a partida travada no interior de um campo delimitado com um número fixo de participantes. Não são estas características do campo das relações internacionais.

Este se desdobra sob a sombra da guerra. Ao tema, Aron dedicou um pioneiro livro em 1951, Les guerres en chaîne [As guerras em cadeia], um acurado exame da Primeira Guerra Mundial — dos equívocos diplomáticos que a desencadearam e da surpresa técnica dos novos armamentos que a prolongou. Na sequência de Paz e guerra escreveu, inspirado pelo pensamento de Clausewitz, os dois volumes de Penser la guerre [Pensar a guerra], em 1976.

Moldura

A guerra, observa Aron, é um camaleão. Assume sempre novas formas, inclusive e muito especialmente na sua dimensão científico-tecnológica. A indeterminação a priori das suas formas é um dado que paira sobre o campo das relações internacionais. Daí as distintas modalidades de paz e as tipologias sugeridas por Aron em Paz e guerra: paz de equilíbrio, de hegemonia, de império, de impotência, de satisfação — e o papel que no seus âmbitos desempenham a persuasão e a subversão. 

Estas, por sua vez, assumem características próprias, à luz das constelações diplomáticas que levam em conta as polaridades prevalecentes no sistema interestatal e da homogeneidade ou heterogeneidade dos Estados que o compõem — vale dizer, o maior ou menor grau de mútuo reconhecimento e a ação dos atores que nele operam, com maior ou menor empenho na estabilidade. 

É nesta moldura ampla que Aron vai destacar uma característica singularizadora das relações internacionais: a pluralidade dinâmica dos objetivos concretos configuradores das políticas externas dos Estados que compõem o sistema estatal. Entre estes objetivos figuram a segurança, o desenvolvimento, o bem estar, o prestígio, a afirmação de valores e, consequentemente, o papel das afinidades e das discrepâncias quanto às formas de conceber a vida em sociedade. O maior ou menor peso destes objetivos varia de acordo com as circunstâncias. 

É isso que faz do conceito de interesse nacional, norteador da política externa, algo plurívoco e, por vezes, esquivo. Por esse motivo, a racionalidade dos objetivos das condutas das políticas externas é circunscrita pela escolha de certas premissas que norteiam o seu processo decisório. Daí um componente de indeterminação da ação estratégica-diplomática que pode variar no tempo. Um exemplo atual é a diferença entre a conduta da política externa dos Estados Unidos no governo Trump, oposta à diplomacia de seu antecessor, Barack Obama.

Os objetivos da implementação de uma política externa estão vinculados aos meios de que dispõe um Estado no âmbito de um sistema interestatal que obedece à lógica de uma distribuição de poder individual, mas desigual, entre os seus integrantes.

Aron trata dos meios na moldura do que denomina determinantes e regularidades sociológicas. Entre elas: o espaço, referente à inserção geográfica e territorial de um país num mundo finito mas planetariamente unificado, para o bem e para o mal, pela técnica, por seus conflitos e por seus múltiplos problemas; o número, que é o componente demográfico das pessoas que se distribuem e que se acomodam, ou não, no espaço dos territórios dos múltiplos Estados que integram o sistema interestatal; os recursos, que, numa acepção abrangente, cobrem o conjunto dos meios materiais e de conhecimento de que dispõe uma coletividade estatal; e a natureza das nações e dos regimes, que ajuda a entender o modo de ser e de agir dos atores estatais, os sujeitos da história diplomática.  

Maquiavel e Kant

Destaquei nesta minha leitura de Paz e guerra entre as nações alguns dos aspectos que considero relevantes para a compreensão do campo das relações internacionais, mas evidentemente não fiz justiça e não dei conta da abrangência analítica e conceitual de um livro de quase mil páginas. 

Aron desenvolveu uma ética de prudência e de equilíbrio entre excessos que me inspirou quando tive a oportunidade de conduzir o Itamaraty

Quero concluir com uma rápida consideração sobre o que Aron discute na última parte de seu livro — “Praxeologia” —, na qual examina as antinomias com as quais se confrontam os responsáveis pela condução da política exterior: em síntese, o enfrentamento tanto do problema maquiavélico quanto do problema kantiano. 

O problema maquiavélico diz respeito ao realismo dos meios legítimos da condução de política externa, que, no limite, comportam o uso da força. É o tema de preservação do Estado como uma unidade independente no âmbito do sistema interestatal. Para ele aponta o inciso I do artigo 4º da Constituição brasileira, que positiva os princípios que regem as relações internacionais do país: independência nacional.

O problema kantiano é o da busca da “paz perpétua” e de um princípio de razão abrangente regulador da humanidade, que substitua a “moral de combate”. Algo que está igualmente positivado na Constituição de 1988, também no artigo 4º: defesa da paz (inciso VI), solução pacífica de conflitos (VII) e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (IX).

Na interação entre os dois problemas, Aron desenvolveu uma ética de prudência e de equilíbrio entre excessos. Foi uma lição que me inspirou nas duas ocasiões em que tive oportunidade de conduzir o Itamaraty.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Raymond Aron: uma influência decisiva em minha formação - Paulo Roberto de Almeida

Um trabalho que permaneceu inédito até aqui:  

Raymond Aron: uma influência decisiva em minha formação

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

Brasília, 18 de fevereiro de 2018

 [Objetivo: Respostas a consulta de professor da Faculdade de Educação da Unicamp, do Departamento de Ciências Sociais na Educação da UniCampfinalidadeinfluência de Raymond Aron no meu trabalho intelectual.]

 

 

1. Introdução: consulta sobre Raymond Aron

 

Este roteiro de questões diz respeito tanto à pesquisa de mestrado (...) sobre a influência do pensamento de Raymond Aron (1905-1983) na consolidação do pioneiro programa de Pós-graduação em Relações Internacionais na UnB na década de 1970 - que se encontra em andamento no Programa de Pós-graduação em Educação da Unicamp, quanto às pesquisas do orientador do estudo (...) centradas no pensamento político e sociológico de Aron.

A proposta de trabalho de mestrado (...) centra-se, de um lado, no exame do conjunto de teses e dissertações defendidas na UnB tendo como parâmetro o uso dos conceitos aronianos a partir das principais obras que dedicou às RI – Paz e Guerra entre as Nações (1962) e Pensar a Guerra: Clausewitz (1976) e, de outro, na influência mais ampla de seu pensamento no Brasil, em especial a partir de meados da década de 1970 -  culminando com sua visita ao país em um seminário promovido pela UnB em 1980.

Aron é sempre citado como exemplo de potência e coerência intelectual. A maneira pela qual sustentou posições liberais num contexto de franco alinhamento político e ideológico dos mais importantes intelectuais de sua época com o marxismo em suas diversas expressões (em especial na França) acabaram por inverter, após a sua morte em 1983, a máxima segundo a qual seria “preferível errar com Sartre a acertar com Aron”.

Autor de diversos interesses, Aron não fez escola em nenhuma das áreas a que se dedicou intelectualmente: nem o filósofo promissor que publicava, já em 1938, o opus Introduction à la philosophie de l’histoire, nem o sociólogo e analista político autor de livros monumentais e tampouco o influente teórico das RI. O maior legado de Aron, para além do conjunto de uma obra a um só tempo fragmentária e erudita (de alguém que também escreveu por 35 anos na imprensa francesa), parece ter sido o engajamento de uma vida em nome de valores inegociáveis.

No Brasil, a influência de seu pensamento ainda não foi devidamente mensurada ou estudada. O clássico As etapas do pensamento sociológico (1967) é adotado como livro base na maior parte dos cursos de introdução à sociologia, ao passo que a sua trilogia sobre a sociedade industrial, conjunto de aulas proferidas na Sorbonne da década de 1950 que foram publicadas na década subsequente, já não aparece com a mesma regularidade de outrora à guisa de leitura obrigatória para os estudantes brasileiros de ciências sociais. Via de regra, Aron é menos associado às obras que escreveu que aos posicionamentos políticos que em vida assumiu.

O primeiro contato de Aron com o Brasil ocorre da década de 1930, quando Júlio de Mesquita Filho o procura em Paris aparentemente interessado no estudo dos filósofos alemães. Daí floresceria uma amizade que resultaria na colaboração com O Estado de S. Paulo por quase duas décadas (268 artigos no total entre 1960 e 1980). A primeira visita de Aron ao Brasil ocorre em 1962, entre os dias 12 a 28 de setembro. Amplamente noticiada por diversos jornais brasileiros, a visita parece estar relacionada ao contexto político internacional, mais especificamente ao encontro do então presidente Goulart com Kennedy, nos Estados Unidos - mediado por Roberto Campos, que servia à época na embaixada em Washington. Neste período, Aron gozava de um período sabático em Harvard, no qual se dedicava à escrita de Paz e Guerra entre as Nações. Bem relacionado com as autoridades norte americanas e amigo pessoal do assessor da presidência americana Henry Kissinger (que também visita o Brasil no mesmo ano), Aron desembarca no Rio de Janeiro e, recepcionado pelo diplomata Francisco Lima e Silva, realiza diversas palestras e conferências em universidades e em órgãos públicos. 

A palestra proferida no Itamaraty tem como assunto o Mercado Comum Europeu, mesma pauta da conversa de Kissinger com Celso Furtado na Sudene e também de Goulart com Kennedy. O programa Aliança para o Progresso, lançado por Kennedy em 1961 com o propósito de supostamente desenvolver o progresso econômico da américa latina e refrear o avanço do comunismo, representa o pano de fundo para todas as ações deste cenário.

A segunda visita de Aron ao Brasil ocorre em 1980 como principal convidado do evento patrocinado pela UnB sob o título de “Encontros Internacionais”. Esses encontros ocorreram entre 1976 e 1984 e contaram com a participação de mais de cinquenta intelectuais de diversos países, entre eles Karl Deutsch, Henry Kissinger, Ernest Gelner, F. A. Hayek, Laszek Kolakowski, Maurice Duverger, Robert Dahl, Giovanni Sartori, Hélio Jaguaribe, Celso Lafer, Norberto Bobbio, Afonso Arinos, Gilberto Freyre entre outros.  As conferências realizadas por Aron no encontro, assim como as entrevistas aos jornais e os textos dos intelectuais convidados como debatedores foram reunidos no livro Raymond Aron na UnB: Conferência e comentário de um simpósio internacional realizado de 22 a 26 de setembro em 1980, publicado no mesmo ano pela editora da UnB. Após o compromisso em Brasília, Aron viaja a São Paulo onde, recepcionado pelo neto de Júlio de Mesquita, o então jovem jornalista Fernão Lara Mesquita, proferiu palestras no jornal O Estado de S. Paulo

Aron teve algumas de suas principais obras publicadas no Brasil pela coleção “Pensamento Político”, editada pela Editora da UnB na década de 1980 – O ópio dos intelectuais (1980), Estudos Políticos (1985), Paz e guerra entre as nações (1986) e Pensar a guerra, Clausewitz (1986) – com prefácios, respectivamente, de intelectuais ligados a ele por laços de amizade ou admiração intelectual: Roberto Campos, José Guilherme Merquior e Antonio Paim – este tanto para Paz e Guerra como para Clausewitz.

Tendo em vista o panorama brevemente descrito, as relações intelectuais e políticas de Aron pensadores brasileiros, bem como a influência que exerceu como pensador liberal nesse período, propomos algumas questões que serão trabalhadas nas pesquisas em andamento sobre Aron e a influência de seu pensamento no Brasil.

 

2. Respostas de Paulo Roberto de Almeida às questões recebidas:

 

I.       Como se deu o seu primeiro contato com Raymond Aron ou com a sua obra? Em quais circunstâncias?

 

PRA: Meu primeiro contato com a obra e o pensamento de Raymond Aron se deu ainda em meados dos anos 1960, jovem adolescente frequentando o “colegial” (ou seja, a segunda etapa do secundário, ou curso médio, depois do ginasial, no então chamado “clássico”, em contraposição ao “científico”, preparatório ao terceiro ciclo de estudos), mas já leitor de obras típicas dos cursos universitários em humanidades. Estudando de noite e trabalhando de dia, eu comprava o jornal “reacionário” O Estado de S. Paulo todos os fins de semana, especialmente aos domingos, interessado nos suplementos culturais do sábado, e nos grandes artigos internacionais do domingo. Minha atenção para os temas internacionais tinha sido despertada pouco tempo antes por uma palestra do cientista político e editorialista do Estadão Oliveiros da Silva Ferreira, feita ainda no ginásio (em 1964 ou 1965), sobre a crise dos foguetes soviéticos em Cuba e o contexto geral da Guerra Fria. A partir desse momento, passei a comprar o Estadão nas bancas, todo fim de semana, e passava as tardes lendo e estudando os grandes artigos traduzidos de grandes intelectuais internacionais. Entre eles se encontrava obviamente Raymond Aron, e ao que me lembre eram artigos traduzidos do semanário L’Express ou de outros periódicos publicados na França. Nessa época, eram poucas as revistas brasileiras sobre temas internacionais, e eu ignorava obviamente a existência da Revista Brasileira de Política Internacional, publicada no Rio de Janeiro desde 1958, mas que não circulava nos circuitos comerciais de varejo. Foi nas páginas do Estadão de domingo, portanto, que eu tomei contato, pela primeira vez, com os artigos eruditos de Raymond Aron e de Roberto Campos, duas leituras obrigatórias, ainda que com grandes restrições de caráter ideológico, uma vez que eu me considerava um aderente precoce da doutrina marxista, e portanto “inimigo” do pensamento de “direita” representado pelos dois intelectuais. Este foi o meu primeiro contato com as ideias “direitistas” de Raymond Aron, intelectual que nunca deixei de ler, mesmo tentando me contrapor, como também era o caso em relação a Roberto Campos, aos seus argumentos enquadrados no pensamento geopolítico da Guerra Fria, durante a qual eu mantinha um posicionamento anticapitalista, mesmo sem necessariamente aderir ao comunismo de tipo soviético, que sempre desprezei. 

 

II.     Em sua opinião, qual a influência do pensamento de Aron tendo em vista as temáticas intelectuais às quais ele se dedicou?

 

PRA: Posso dizer que essa influência foi enorme, mesmo a contragosto, se ouso dizer, uma vez que, numa primeira fase, o marxismo juvenil, de certo modo ingênuo, me levava a considerar que o lado correto era o do intelectual esquerdista Jean-Paul Sartre, não o de Raymond Aron, classificado entre os partidários da “direita”. Pouco antes de sair do Brasil, no final de 1970, em direção à Europa, eu já considerava indispensável ler suas obras, que conhecia de nome, mas que ainda não havia lido nem em francês – língua que eu dominava mal – nem em eventuais traduções em português, que ignorava existir. Sabia de seus livros resultantes das aulas na Sorbonne desde meados dos anos 1950, mas não tinha tido ainda oportunidade de ler.

Estimo que sua influência foi apenas parcialmente importante, no conjunto da academia até o final dos anos 1960, ou até mais além, uma vez que as humanidades no Brasil sempre estiveram bem mais vinculadas ao pensamento marxista do que às teses e argumentos “atlantistas” ou “liberais” de intelectuais como Raymond Aron ou, no caso, brasileiro, Roberto Campos, Eugênio Gudin, ou outros. Ainda se achava basicamente correta a postura de “estar errado com Jean-Paul Sartre, em lugar de acertar com Raymond Aron”, e 1968 era considerado um passo na direção correta, a de recusar a sociedade burguesa e construir uma sociedade solidária; esta não estava alinhada com as posturas do comunismo tradicional, mas sim com a Escola de Frankfurt, com Herbert Marcuse, com Wilhelm Reich e outros teóricos libertários. 

Na época “áurea” da Guerra Fria, Raymond Aron estava estritamente alinhado com os esquemas atlantistas da OTAN e dos EUA, então envolvidos na guerra do Vietnã, e portanto condenados por toda a esquerda mundial, da qual, uma parte pelo menos apoiava a “revolução cultural” da China de Mao, considerada uma etapa superior de construção do comunismo, acima do burocratismo do sistema soviético. Nesse contexto, Aron era cultivado apenas num pequeno circulo de iniciados, uma vez que a maior parte dos acadêmicos se alinhava com as posições “progressistas” da esquerda ocidental. 

 

III.   Aron ainda pode ser considerado, em termos intelectuais, autor atual e influente?

 

PRA: Absolutamente: todas as suas obras, sejam as de filosofia da história, ou as de sociologia industrial, e ainda as de geopolítica no contexto das doutrinas realistas, são pertinentes e indispensáveis a um debate intelectual da mais alta qualidade sobre os problemas sociais, políticos e geopolíticos das sociedades contemporâneas, mesmo no pós-Guerra Fria, uma vez que as características e tendências fundamentais da geopolítica mundial, e das sociedades industriais permanecem válidas mesmo após o declínio irresistível dos projetos socialistas de cunho marxista-leninista. Aron preserva uma lucidez impressionante em relação ao simples debate entre liberais e socialistas de cunho reformista (lassalianos, fabianos, ou seja II Internacional), e mantém coerência em relação às escolhas fundamentais que devem ser feitas no plano interno (democracia de mercado) e no contexto internacional (defesa dos valores ocidentais, contra propostas autoritárias de ordenamento político e social). 

 

IV.    Quando aluno, Aron aparecia como bibliografia nos cursos de graduação e/ou pós-graduação que você frequentou? Como professor, você utiliza ou utilizou obras de Aron como bibliografia em cursos de graduação e/ou pós-graduação? Nos dois casos, quais obras?

 

PRA: Frequentando cursos de Ciências Sociais no Brasil (USP) e no exterior (ULB, em Bruxelas), não me lembro de ter sido recomendado expressamente a ler Raymond Aron, mas como ele era um referência indispensável nos debates políticos da época, fui levado a buscar voluntariamente seus livros sobre a sociedade industrial, e seus debates com os intelectuais marxistas. Nessa época, início dos anos 1970, ainda procurava me alinhar mais com os autores marxistas (sobretudo da Europa ocidental), mas nunca deixei de ler Raymond Aron, como o contraponto necessário aos argumentos dessa linha. Junto com Aron, lia Karl Popper e outros “liberais”, embora tendesse a aderir bem mais às teses anticapitalistas dos socialistas franceses e ingleses, tipo Nikos Poulantzas, Christopher Hill, Perry Anderson e outros. Aron era o antagonista preferido de toda essa tropa de marxistas acadêmicos, aos quais eu aderia residualmente, sem deixar de me referir a Aron (ou Alain Peyrefitte, por exemplo) em sua contestação às principais teses dos esquerdistas. Aos poucos, Aron deixou de ser o “inimigo ideológico” para se converter no “adversário político”, mais adiante convertido em “interlocutor indispensável”, nas reflexões sobre as vias abertas às sociedades do Ocidente e as do Terceiro Mundo.

 

V.      Durante sua segunda visita ao Brasil, em 1980, Aron foi a figura central do simpósio “Raymond Aron na UnB”. Em relação ao homenageado, em sua opinião e tendo em vista o contexto da época, quais as principais motivações para o convite? Em que medida, tais motivações teriam estado ligadas ao contexto político nacional (início do processo de redemocratização) e ao contexto internacional, ainda marcado pela tensão bipolar entre os EUA e a URSS - para além das questões propriamente intelectuais?

 

PRA: Nessa fase, início dos anos 1980, eu já tinha ingressado na carreira diplomática (desde 1977) e me encontrava em postos no exterior, de 1979 a 1984, entre Berna e Belgrado, e tinha retomado minha tese de doutoramento em sociologia política, iniciada em 1976, mas interrompida em 1977 na volta ao Brasil. Posso dizer que Aron foi decisivo no plano puramente bibliográfico, pois passei todos esses anos lendo uma enorme bibliografia em história e sociologia, para completar uma tese sobre as revoluções burguesas, mas num sentido totalmente contrário ao que tinha quando fiz o projeto e iniciei os trabalhos entre 1976 e 1977. Não só Aron, mas Weber, Fernand Braudel, Barrington Moore Jr., Albert Hirschman, os revisionistas históricos sobre as revoluções burguesas, influenciaram minha conversão do marxismo acadêmico a uma análise mais realista dos processos políticos e sociais que levaram as sociedades do Ocidente moderno a sistemas políticos pluralistas e abertos. Aron, entre vários outros, foi essencial nessa revisão interpretativa sobre a natureza do poder político e suas relações com a base social e econômica no processo de modernização contemporânea.

Não tomei conhecimento da vinda de Raymond Aron ao Brasil senão depois de 1985, ao retomar ao Brasil e começar a dar aulas na UnB e no Instituto Rio Branco (a academia diplomática do Itamaraty) de sociologia política, exatamente. Aron era, não preciso dizer, uma referência indispensável, junto com Weber, Marx e outros teóricos, na construção das aulas e nas reflexões sobre nossa transição democrática pós-regime militar. Foi nesse momento que abandonei completamente os esquemas marxistas de reflexão em favor de uma visão mais eclética, inevitavelmente influenciada por intelectuais como Raymond Aron.

 

VI.    Também à época de sua segunda visita, a Editora da UnB traduziu e publicou a principal obra de Aron dedicada ao tema das relações internacionais, Paz e Guerra entre as nações, além de diversos outros títulos de autores tidos como conservadores ou liberais. Em sua opinião, qual a importância deste esforço editorial tendo em vista o ambiente intelectual brasileiro da época?

 

PRA: O esforço empreendido no âmbito da UnB, sobretudo por um dos integrantes do Conselho Editorial da Editora da UnB, o diplomata Carlos Henrique Cardim, foi absolutamente magnífico, no sentido de trazer ao Brasil as mais importantes obras do pensamento político e de relações internacionais, até então inacessíveis ao público local, em especial os cientistas sociais brasileiros. Simplesmente não se tinha acesso a essas obras, a não ser trazidas do exterior pelos próprios acadêmicos que estudavam fora, mas os estudantes estavam praticamente excluídos desse universo. De repente, no espaço de poucos anos – primeira metade dos anos 1980 – todas essas obras ficaram disponíveis, com traduções de qualidade, feitas por diplomatas e professores. Se quisermos mensurar esse aporte em termos de PIB intelectual, pode-se dizer que a riqueza intelectual trazida por essas edições situou-se na faixa de 10 a 20% de acréscimos bibliográficos, senão mais. Mas não só as edições: a própria presença de eminentes intelectuais trazidos para debates pessoais com acadêmicos brasileiros representou um empreendimento intelectual até hoje inigualado nas proporções que essas iniciativas da UnB representaram à época e nos anos subsequentes. A série “[Fulano] na UnB” ofereceu uma apresentação sintética do pensamento de cada um dos intelectuais trazidos ao Brasil, que pode ser considerada inédita no plano mundial, uma vez que não existe depoimentos do gênero dos que foram feitos na UnB nas edições estrangeiras.

 

VII.  O livro ‘Paz e Guerra entre as nações’ foi adotado pelo MEC como leitura obrigatória nos cursos de graduação em relações internacionais a partir dos anos 2000. Como você avalia a influência desta obra em particular para o campo das RI? Aron pode ser considerado um autor original ou influente a partir das reflexões contidas no livro?

 

PRA: Os poucos geopolíticos existentes no Brasil, mas muitos outros professores de relações internacionais, são obrigados a recorrer ao pensamento de Aron, pois ele é incontornável no debate a respeito das grandes questões da guerra e da paz no plano mundial. A bibliografia necessariamente parte de Morgenthau e vai diretamente a Aron, como referência indispensável na discussão da temática geopolítica. O seu realismo “frio”, construído a partir de uma potência de primeiro plano, mas diminuída depois dos conflitos napoleônicos (clausewitzianos) e sobretudo com a ascensão da Alemanha, oferece um contraponto necessário à bipolaridade da era nuclear capitaneada pelos EUA e pela União Soviética. Nesse contexto bipolar, a França foi a nação que escolheu ter uma defesa própria, independente do campo ocidental, e com isso representa um tipo de soberanismo geopolítico talvez adequado a um país como o Brasil, também cioso de sua autonomia em relação aos blocos então existentes.

 

VIII.       Ainda no campo dos estudos das relações internacionais, Aron alinha-se à tradição dos pensadores realistas. Poderíamos vislumbrar afinidades eletivas entre o pensamento reinante no Itamaraty, cuja origem remete a Paulino Soares de Sousa, o Visconde de Uruguai - leitor sistemático de Tocqueville, e as posições liberais que Aron sustentou ao longo do século XX?

 

PRA: Aron era o que eu chamo de “realista flexível”, ou seja, consciente de que o equilíbrio entre grandes potências e potências médias, ainda que fortes (como a França), não poderia ser estudado e considerado apenas com base em premissas teóricas, mas sobretudo com base num itinerário específico no plano das experiências concretas. Essa era, também, a perspectiva de Tocqueville, que estudou os Estados Unidos em sua dimensão própria, ainda que contrapondo suas estruturas políticas e sociais às de sua França e Europa aristocráticas – ainda que transformadas, ambas, pelas grandes rupturas da revolução e da era napoleônica – e podia assim fazer uma análise original da formação política e social americana, apontando-a como o futuro da Europa igualmente (no que estava enganado). Aron tinha plena consciência do quantum de liberdade que os homens e as sociedades dispõem para determinar o seu futuro, e não alimentava nenhum determinismo fatalístico quanto a isso. Sua compreensão da doutrina marxista, e também da weberiana, o habilitava a distinguir os imponderáveis da história.

Nisso, ele foi totalmente distinto dos demais intelectuais franceses (ou de quaisquer outros países) de gabinete, pois temperava suas leituras dos clássicos e contemporâneos com uma reflexão original sobre os itinerários concretos das sociedades. Importante nessa originalidade teórico-prática foi a sua estada na Alemanha no início dos anos 1930, quando assistiu à ascensão do nazismo, constatando a deriva de algumas sociedades para o populismo, a demagogia, o autoritarismo e outras falácias e tragédias, o que o colocou à frente de todos os demais intelectuais puramente acadêmicos. Sua estada em Londres, durante a guerra, também foi importante ao dar uma dimensão eclética ao seu pensamento, absolutamente original no contexto francês. 

Não estou habilitado a avaliar, por não conhecer, essa influência de Tocqueville nas concepções do grande diplomata que foi Paulino Soares de Souza, certamente um dos maiores diplomatas do Império, junto com Miguel da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco. Todos eles foram realistas flexíveis, podendo ser considerados, nesse sentido, “aronianos avant la lettre”, como também o foi o filho do Visconde, o Barão do Rio Branco, menos doutrinário do que Rui Barbosa, por exemplo. Nenhum deles têm sucessores claros no século XX, a não ser parcialmente: Oswaldo Aranha, um realista sem qualquer elaboração doutrinal (a não ser um estrategista instintivo), San Tiago Dantas, um pensador original, infelizmente desaparecido precocemente, e talvez Roberto Campos, um realista da tecnocracia planejadora antes de se converter em um liberal pragmático; pode-se agregar o nome de José Guilherme Merquior, mas este bem mais no terreno teórico do que prático. Todos eles passaram a integrar plenamente minhas reflexões de natureza política, econômica e geopolítica, e meus escritos.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 18 de fevereiro de 2018