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domingo, 12 de março de 2023

O que o Brasil deixou de aprender com a Alemanha? (artigos na revista Crusoé) - Paulo Roberto de Almeida

 O que o Brasil deixou de aprender com a Alemanha?

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Colaboração com a revista Crusoé, a propósito da visita ao Brasil do chanceler Olaf Scholz, enfatizando educação de qualidade na Alemanha e trajetórias diferentes do SPD e do PT. Publicado em 3/02/2023 (link: https://oantagonista.uol.com.br/brasil/crusoe-o-que-o-brasil-deixou-de-aprender-com-a-alemanha/).

 

 

Na origem de tudo: o marxismo juvenil e o capitalismo tardio

Quando o jovem Marx e colegas da esquerda hegeliana se cansaram da censura prussiana e decidiram partir para o exílio, na França, na Bélgica, no Reino Unido, eles não estavam tão oprimidos pela repressão da polícia dos Hohenzollern quanto obcecados pela visão de uma Alemanha dividida e muito atrás, economicamente falando, da pujante Grã-Bretanha, na sua marcha triunfal do primeiro capitalismo (manchesteriano). De fato, a Alemanha da primeira metade do século XIX era o próprio símbolo daquilo que os ideólogos da UniCamp chamariam, no seguimento de Trotsky e outros epígonos, de capitalismo tardio, uma “maldição” que também atingia, ao que parece, o Brasil da primeira metade do século XX. Pouco depois, graças a List e outros “desenvolvimentistas” prussianos, entre os quais o próprio Bismarck, a Alemanha unificada deslanchou sua “revolução pelo alto”, o que a fez ultrapassar a Grã-Bretanha ainda antes do final do século XIX. 

O Brasil não conseguiu igualar tal feito, e só enveredou pela segunda revolução industrial quando o capitalismo avançado já estava na quarta, mesmo tendo tido vários generais e intelectuais bismarckianos na condução de seu “desenvolvimentismo” tardio. Mas o que a Alemanha conheceu de original, no plano dos movimentos de massa, foi ter criado um modelo de partido socialista, tendo na sua base o marxismo sindical, que conseguiu sobreviver à crise da República de Weimar, à tirania hitlerista, para construir, no pós-guerra, junto com o ordo-liberalismo da democracia cristã, um modelo de capitalismo liberal e de democracia de mercado, que assegurou à nova Alemanha, novamente reunificada, o galardão de economia mais produtiva do mundo e a de maior sucesso nas exportações de ponta.

Como isso foi possível? Parte do sucesso é histórico, partindo da educação de massa ainda sob o absolutismo prussiano, passando pela educação humboldtiana da nação liberta da dominação napoleônica, tanto na sua vertente popular, das escolas técnicas superiores para a formação da mão-de-obra trabalhadora, quanto na formação graduada, deixando de lado o modelo escolástico dos países pioneiros para enveredar por universidades vinculadas à indústria, até chegar à inovação tecnológica contínua, com pesquisa científica associada. A outra parte é propriamente social, ou política, e está vinculada às vidas paralelas dos partidos conservadores (majoritariamente cristãos) e do grande partido socialista, o mais antigo em funcionamento no mundo, o SPD, fundado quando Marx ainda era vivo. Na terceira década do século XX, impulsionadas pelo fervor bolchevique da Revolução russa, frações radicais do socialismo marxista formam o Partido Comunista, que será selvagemente reprimido quando Hitler chega ao poder, em 1933, como de resto o SPD e todos os demais partidos. 

No pós-guerra, o SPD permanece geralmente na oposição, pois a CDU, de base cristã-democrata, obtém o controle quase constante do Bundestag, o parlamento alemão. O “milagre alemão” dos anos 1950-60 será presidido sobretudo pelo seu líder, Konrad Adenauer, mas os socialistas chegam ao poder em 1969, com Willy Brandt. Tal evolução deve-se especialmente à reviravolta política ocorrida no SPD, a partir de seu congresso de Bad Godesberg, em 1959, que abandona o velho programa marxista de construção do socialismo em favor da adoção de um programa reformista dentro do capitalismo liberal e da democracia de mercado. Tal visão não estava distante daquilo que pretendia o socialista Friedrich Ebert, o primeiro dirigente da República de Weimar, em 1919, em linha com o reformismo moderado adotado por vários partidos socialistas que, desde o final do século XIX, tinham decidido abandonar o projeto revolucionário para reformar o capitalismo a partir do seu interior. 

Data dessa época, a fundação da Segunda Internacional, organização política de caráter nitidamente socialdemocrata, em contraposição à primeira Internacional, dos tempos de Marx, onde se digladiavam marxistas e anarquistas. A Segunda Internacional permanece até hoje, tendo deixado para trás a Terceira, fundada pelo próprio Lênin, e a anêmica Quarta Internacional, criada por Trotsky para se contrapor ao stalinismo da Terceira (que acabou sendo extinta em plena Segunda Guerra Mundial, quando a União Soviética precisava da ajuda das potências capitalistas para vencer a superioridade bélica do Exército nazista). Nessa época, a Alemanha foi seduzida e destruída pelo psicopata perverso que só perdeu para Mao Tse-tung no número de vítimas de seu horrível regime totalitário. A derrota e a ocupação militar estrangeira durante a Guerra Fria parecem tê-la curado de ideologias extremas. Com a auto implosão da União Soviética, o que sobrou de “comunismo” no mundo acabou escanteado nas antípodas (em Cuba e na Coreia do Norte), sobrevivendo pateticamente em alguns poucos partidos leninistas espalhados sobretudo na América Latina.

 

Mas o que o Brasil e o PT deixaram de aprender com a Alemanha? 

Alemanha e Brasil são ambos exemplos de capitalismo tardio, como proclamam acadêmicos da UniCamp, o que, aliás, é válido para qualquer outro país que não a Inglaterra da primeira revolução industrial. O Brasil também seguiu o modelo da modernização pelo alto de estilo bismarckiano, chegando até a praticar certa modalidade de “stalinismo industrial” durante o auge da “marcha forçada para a frente” do período militar. Nos anos 1930, o Brasil varguista e a Alemanha nazista eram os países que mais defendiam seus mercados com tarifas elevadíssimas, e até fizeram acordo bilateral para comerciar sem divisas, o que, aliás, alguns alucinados argentinos e brasileiros querem adotar atualmente para supostamente “estimular o comércio recíproco”, o que significaria um retrocesso de mais de 80 anos na modalidade multilateral de pagamentos estabelecida em Bretton Woods (1944).

O que o Brasil não fez foi a grande revolução educacional, que tinha começado na Prússia numa primeira derrota para os suecos, ainda no regime absolutista, que foi a escolarização compulsória para alfabetização das crianças, seguida, depois da derrota para Napoleão em Iena (1806), da grande transformação do ensino médio para capacitar sua mão-de-obra industrial, a Technische Hoschschule, e, sobretudo, pela novidade da universidade humboldtiana, mais vinculada à indústria do que à escolástica medieval das primeiras universidades europeias, criadas ainda na Idade Média. Comparado aos países pioneiros na alfabetização universal – os Estados Unidos e a própria Alemanha do início do século XIX –, o Brasil só conseguiu atingir esse objetivo – puramente quantitativo, vale recordar – no final do século XX, quando dos esforços do governo FHC em apoio ao ciclo primário local. 

O segundo não aprendizado tem mais a ver com traços da vida política e social vinculados à ideologia progressista que tanto o SPD alemão quanto o PT dizem defender, o primeiro de maneira mais pragmática, o segundo de forma bizarramente canhestra. Depois do grande desafio do renascimento alemão do pós-Segunda Guerra, marcado pela liderança moderada e democrática de Adenauer, e do “ordo-liberalismo” da política econômica que permitiu o “milagre alemão” dos anos 1950 e 60, o SPD resolveu finalmente se modernizar, abandonando a ideologia marxista das décadas precedentes para adotar o reformismo dentro do capitalismo e da democracia, o que foi feito no famoso Congresso de Bad Godesberg, em 1959, revolução partidária que o New Labour de Tony Blair só fez nos anos 1990, depois do furacão neoliberal de Margaret Thatcher. Ora, o PT jamais fez o seu “Bad Godesberg”, pois que continua a exibir as mesmas más ideias do “desenvolvimentismo” inflacionário iniciado nos anos 1950, continuado pelo extremo intervencionismo estatal da ditadura militar. 

Ainda agora, depois da Grande Destruição Econômica da era Dilma, a maior recessão de toda a história do Brasil (superior à crise dos anos 1930-31), lideranças do PT continuam a exibir a mesma incompreensão sobre os mecanismos de uma moderna economia integrada aos mercados mundiais quanto a que caracterizou o partido e seus conselheiros econômicos na maior parte de sua história. No plano da geopolítica mundial, o contraste não poderia ser mais eloquente entre o SPD e o PT: em face do desafio representado pelo comunismo soviético – que, por sinal, inundou as duas Alemanhas de espiões e funcionários subornados pela sua “atração fatal” –, os socialistas alemães adotaram resolutamente a defesa dos valores das liberdades, da democracia e dos direitos humanos, os valores centrais desse “Ocidente” tão desprezado pelos aliados do “socialismo sem exploração do homem pelo homem”. O PT, formado por sindicalistas anticapitalistas e ex-guerrilheiros reciclados – complementados pela massa eleitoral da “teologia da libertação” –, jamais proclamou abertamente sua opção pelo reformismo capitalista, que eles praticaram contra a vontade, canhestramente, durante os mandatos confusos dos anos 2003-16. Pior ainda, prisioneiros do apoio castrista e chavista nos primeiros anos, o PT e seus líderes nunca se distanciaram dos seus “amigos” ditatoriais pretensamente de esquerda (quando são apenas brutais ditadores muito similares ao fascismo de estilo mussoliniano). 

Essa distância se torna ainda mais dramática quando o chanceler Olaf Scholz, o primeiro alto dirigente estrangeiro em visita ao Brasil de Lula 3, vem pleitear do Brasil, não a defesa desse “Ocidente” identificado com a Otan, mas a simples adesão aos princípios mais elementares do Direito Internacional enfeixados na Carta da ONU e integrados à Constituição de 1988. Ao proclamar uma falsa “neutralidade” na guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, com o cometimento de crimes de guerra, contra a humanidade e o supremo crime contra a paz – os mesmos que levaram dirigentes civis e militares nazistas ao Tribunal de Nuremberg em 1946 –, a nova-velha diplomacia lulopetista mostra a pior face de um alheamento completo às realidades da nova “guerra fria” entre o Ocidente e as autocracias remanescentes do século XX. Pior ainda, o grande erro estratégico cometido pela mesma diplomacia obtusa, na criação dessa entidade bizarra chamada Brics – derivada, em 2011, do Bric original de 2006-2009 –, faz com que o Brasil lulista se torne caudatário, hoje, dos interesses nacionais de duas grandes autocracias.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4314: 31 janeiro 2023, 4 p.

 

Fórum de Davos: o piquenique invernal do capitalismo bem-comportado (artigos na revista Crusoé) - Paulo Roberto de Almeida

 Fórum de Davos: o piquenique invernal do capitalismo bem-comportado  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com; pralmeida@me.com)

Artigo sobre o Fórum Econômico Mundial de 2023.

Publicado em versão revista e editada na revista Crusoé: “O capitalismo bem-comportado de Davos”, revista Crusoé (13/01/2023; https://crusoe.uol.com.br/secao/reportagem/o-capitalismo-bem-comportado-de-davos/).

  

Por mais de meio século, o suíço Klaus Schwab tem liderado esses convescotes anuais na atraente estação de esqui de Davos, reunindo centenas das maiores empresas mundiais e líderes políticos para debater temas de grande atualidade econômica e política e até alguns problemas de urgente necessidade de resolução cooperativa, como conflitos militares, crises econômicas ou ameaças ambientais e sanitárias de dimensões mundiais. Em 2023, o tema escolhido, de forma talvez deliberadamente ambígua, foi “Cooperação em um mundo fragmentado”, o que parece ser, na tradicional expressão em inglês, uma clara demonstração de understatement, ou seja, uma minimização da situação atual da política mundial.

De fato, a pandemia da Covid-19 em 2020 e 2021 — que levou o Fórum de Davos a se reunir online —, assim como a guerra de agressão da Rússia contra a vizinha Ucrânia — ex-república federada do finado império soviético- não causaram (ainda?) uma grave alteração da ordem global, a despeito de sobressaltos inevitáveis e de alguns impactos mais graves (como crises de abastecimento energético e alimentar em certas regiões do planeta, na Europa ocidental e na África em particular). A ordem econômica quase global de Bretton Woods continua funcionando, assim com a ordem política quase universal da ONU continua não funcionando em seu modo habitual, isto é, com muita retórica, mas poucos resultados práticos.

Na verdade, falar de “cooperação num mundo fragmentado” parece ser, no nosso próprio linguajar, “chover no molhado”, pois que se existe fragmentação no mundo atual este é claramente o momento, e se inexiste cooperação esta é exatamente a conjuntura sob a qual vivemos, duas situações para as quais o encontro de Davos será ineficaz para qualquer tipo de encaminhamento prático.

Nem sempre foi assim no passado, pois alguns convites a líderes de países em conflito — como no caso de Israel e palestinos, por exemplo — ou, na vertente photo opportunity, a celebridades hollywoodianas permitiram avançar alguns centímetros na direção da minimização de danos, nos temas ambiental, de refugiados de guerras civis ou interestatais e até crises sanitárias graves.

Não parece ser assim nesta edição de 2023, pois inexiste qualquer possibilidade de cooperação no caso do mais grave conflito militar no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial, a invasão e a destruição sistemática da Ucrânia pelo seu poderoso e criminoso vizinho, o que gerou uma das emigrações em massa, num curto espaço de tempo, jamais conhecidas em toda a história mundial. A tragédia ucraniana (e seus impactos externos) é totalmente devida à paranoia e à prepotência arrogante de um dirigente russo que não possui qualquer disposição para o diálogo em termos aceitáveis do ponto de vista do Direito Internacional ou simplesmente no contexto da Carta da ONU, cujas obrigações ele violou deliberadamente diversas vezes, e em relação aos quais já se tornou suscetível de “indiciamento” por crimes de guerra, contra a humanidade e contra a paz, as mesmas acusações que levaram líderes civis e militares nazistas ao Tribunal de Nuremberg em 1946.

Tal situação está muito acima da capacidade do Fórum de Davos de tratar de qualquer possibilidade de minimização de danos, assim como é o caso da própria ONU (congelada em face do inaceitável exercício do direito de veto por qualquer um dos cinco membros permanentes do CSNU, quando um deles é o próprio violador da sua Carta).

O Fórum de 2023 consistirá, portanto, em mais um exemplo de keep talking, continue falando a respeito, mas, sobretudo, perca a esperança de avançar em qualquer solução cooperativa, com fragmentação ou sem. Historicamente, nenhum dos grandes problemas da humanidade — desde o Congresso de Viena de 1815, passando pelas negociações de paz de Paris, de 1919, que levaram à criação da Liga das Nações, nem as conferências diplomáticas entre as grandes potências na Segunda Grande Guerra, que resultaram na fundação da ONU — foram resolvidas pela via multilateral e pacifica, e sim por um próprio arranjo consensual entre elas ou no completo esgotamento de outras possibilidades de resolução, depois de imensos danos acumulados. 

Foi assim nos casos da primeira guerra da Crimeia (1853-55), do tratado impositivo de Versalhes (1919) e da própria conformação iníqua e discriminatória do órgão decisor, em última instância, do Conselho de Segurança na conferência de San Francisco que criou a ONU em 1945.

Naquela ocasião, em nome do fundamento doutrinal central do multilateralismo contemporâneo, que é o princípio da igualdade soberana dos Estados — defendido arduamente por Rui Barbosa, na segunda conferência mundial da paz da Haia, em 1907 —, a delegação brasileira em San Francisco (ainda em pleno Estado Novo varguista) opôs-se formalmente ao direito de veto, justamente por ser iníquo e discriminatório, assim como a diplomacia brasileira do pós-guerra continuou opondo-se durante cerca de três décadas ao Tratado de Não Proliferação Nuclear pelas mesmas razões.

Tais questões, pertencentes ao exercício unilateral de uma espécie de “soberania imperial”, que está restrito ao domínio exclusivo da Realpolitik, exercida de forma arrogante pelas grandes potências, está muito além da capacidade resolutiva de um Fórum de “keep talking” como o de Davos, assim como da própria ONU. Os capitalistas multinacionais, assim como os líderes políticos necessitados de alguma photo opportunity, continuarão a frequentar o convescote criado por Klaus Schwab, mas não conseguirão apor sequer um band-aid à fragmentação atual e persistente do mundo.

Desde os anos 1970, quando foi criado, o Fórum de Davos não teve nenhuma influência sobre a dinâmica da Guerra Fria geopolítica dos anos 1947-1990: esta só veio a termo pela implosão autoinduzida do socialismo realmente existente, não por qualquer vitória do capitalismo triunfante sobre seus inimigos autocráticos e estatistas. Também parece improvável que ele consiga influenciar a dinâmica da atual Guerra Fria Econômica entre os Estados Unidos e a China, e a da presente confrontação militar entre a Otan (indiretamente, pela via da Ucrânia) e a Rússia semi-imperial do neoczar Putin.

Davos continuará a ser um jamboree anual de capitalistas bem-sucedidos, condescendendo em ouvir alguns belos discursos entre uma e outra descida de esqui nos Alpes suíços. Todos eles merecem um pouco de divertimento em meio ao extenuante trabalho de garantir lucros e dividendos para proprietários e acionistas dessas grandes empresas politicamente corretas. Superricos também são humanos…

E o Brasil nisso tudo? Em 2003, Lula (recém-empossado) compareceu, numa imediata sequência, ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre, aqueles dos antiglobalistas (hoje praticamente desaparecido, por sua própria contradição nos termos), e ao Fórum Econômico Mundial de Davos, globalista por excelência, falando em cada um aquilo que correspondia exatamente às expectativas das respectivas plateias, o que sempre foi o seu estilo populista. Em 2023, salvo impedimento maior, ele deveria arriscar novamente seu grande prestígio mundial, para tentar atrair alguns bilhões de investimentos externos tão necessitados pela combalida economia brasileira. Como o antigo Fórum “Surreal” Mundial já não apresenta qualquer atrativo midiático, Lula pode exercer o melhor do seu talento na tentativa de “desfragmentar” o mundo e apelar para o aumento da cooperação ao desenvolvimento dos países mais pobres. Apelos desse tipo sempre confortam o ânimo e retiram um pouco do “remorso social” desses capitalistas multinacionais que torram algumas dezenas de milhares de dólares nos poucos dias que passam em Davos. Superricos também têm coração, e um tino especial para novas oportunidades de ganhos. Só não se sabe se o Brasil de Lula III oferece, realmente, oportunidades tão aliciantes quanto aquelas dos anos 2000, quando a economia mundial parecia flutuar em céu de brigadeiro e quando a China e os Estados Unidos ainda pareciam entreter a complementaridade perfeita de uma Chimérica, como sugerida pelo historiador Niall Ferguson.

Os tempos são outros…

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4292: 22 dezembro 2022, 4 p.

 


Haverá paz no mundo em 2023? (Artigos na revista Crusoé) - Paulo Roberto de Almeida

Um artigo do final de 2022, para ser publicado num número especial da revista Crusoé sobre as perspectivas para 2023.

Haverá paz no mundo em 2023? 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com; pralmeida@me.com)

Artigo de fim de ano para a revista Crusoé, a convite de Duda Teixeira.

Revisto e publicado, sob o título “Paz impossível, guerra improvável”, na revista Crusoé (n. 244, sexta-feira, 30/12/2022, link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/244/paz-impossivel-guerra-improvavel/). Relação de Publicados n. 1487.

  

Uma resposta precisa a esta complexa questão é um enfático e rotundo NÃO! Mas a concisão e a simplicidade desta afirmação não significam que o mundo conhecerá alguma guerra de proporção equivalente à dos grandes conflitos globais que marcaram a primeira metade do “curto século XX”, de que falava o historiador marxista Eric J. Hobsbawm. O que se descarta é a ocorrência de uma nova guerra total entre adversários geoestratégicos, não a recorrência de guerras interestatais, civis, étnicas, religiosas, ou de proxy wars, conflitos por procuração, entre as grandes potências existentes, nunca interrompidas em qualquer época.

A razão da negativa a uma hipótese jamais descartada pelos planejadores militares é a mesma que já tinha sido dada desde 1948 pelo conhecido filósofo e pensador estratégico francês Raymond Aron, ao considerar a possibilidade de uma nova guerra total entre grandes impérios, no imediato seguimento da Segunda Guerra Mundial: “paz impossível, guerra improvável”. Ele ainda confirmou seu argumento, formulado originalmente no livro Le Grand Schisme (O grande cisma; Paris: Gallimard), em seu livro de memórias, publicado pouco antes de sua morte, Les dernières années du siècle(Os últimos anos do século, 1983), pelos mesmos motivos que sustentavam seu raciocínio: a emergência da arma atômica, a grande dissuasora de qualquer novo enfrentamento global passada a tecnologia das guerras convencionais (exércitos no terreno, mais aviação e frotas bélicas) que ainda marcaram o início das guerras de 1914 e de 1939 (armas de destruição em massa, como o recurso à guerra química e as bombas nucleares foram introduzidas num fase mais avançada das duas grandes guerras mundiais. Registre-se que sua peremptória e durável frase foi feita ainda no período em que a superpotência americana detinha o monopólio da arma atômica, mas Aron nunca duvidou que a União Soviética alcançasse a paridade em breve tempo (ela o fez em 1949, como resultado da espionagem atômica e da capacitação própria dos físicos nucleares russos).

De fato, mais do que as promessas de paz e de segurança internacionais, inscritas no preâmbulo e nos primeiros artigos da Carta de San Francisco (1945), o que realmente evitou uma nova guerra total foi a promessa de uma destruição generalizada entre contendores dotados da ultima ratio do holocausto nuclear. Não que o emprego tático, ou mesmo estratégico, de armas atômicas não tenha sido cogitado ao longo dos últimos 77 anos desde Hiroshima e Nagasaki, mas é que o cogumelo cada vez maior previsto com o aumento dos megatons acrescidos desde então faz com que os líderes políticos, bem mais do que os oficiais militares superiores, retenham a respiração antes de considerar o recurso ao que se convencionou chamar de Armagedom. O general MacArthur, cujas tropas (supostamente a serviço da ONU) tinham sido empurradas de volta para a extremidade sul da Coreia depois do ingresso de “voluntários” chineses na primeira guerra quente da Guerra Fria, cogitou ordenar um bombardeio atômico nas fronteiras da China para cortar o fluxo de tropas e de equipamentos em apoio às forças do ditador Kim Il Sung, da Coreia do Norte; ele foi demitido na mesma hora pelo presidente Truman, o mesmo que tinha aprovado o bombardeio das duas cidades japonesas cinco anos antes. 

Recorde-se, também, que o mundo caminhou para a borda do precipício nuclear, quando da extrema tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética, em outubro de 1962, depois da descoberta da instalação de mísseis soviéticos em Cuba, a poucas milhas da Flórida. O jogo de poker entre os dois gigantes da Guerra Fria foi brilhantemente descrita pelo professor Graham Allison, autor da obra The Essence of Decision (1971), sobre as difíceis negociações entre o presidente John Kennedy e o líder russo Nikita Kruschev até conseguirem desarmar o ímpeto bélico de seus generais e comandantes navais, quando do embargo total sobre a ilha do Caribe decretado pelos americanos. Curiosamente, o mesmo pesquisador tornou-se novamente famoso ao explorar, em 2017, a possibilidade de uma nova guerra total entre os impérios americano e chinês, em seu livro Destined for War: Can America and China Escape Thucydides's Trap? (Condenados à guerra: podem a América e a China escapar à armadilha de Tucídides?), obra supostamente destinada a evitar uma repetição da guerra do Peloponeso descrita pelo conhecido historiador grego, contemporâneo daquela contenda fatal entre a Esparta autoritária e a democrática Atenas.

Mais recentemente, o espectro de um conflito nuclear entre os mesmos contendores da velha Guerra Fria voltou a ser aventado pelo próprio neoczar russo, Putin, ao declarar que não hesitaria em recorrer às suas armas mais poderosas caso a Otan viesse em socorro direto à Ucrânia depois de sua frustrada invasão e guerra de agressão iniciada em fevereiro de 2022, contra um vizinho não nuclear, depois de sua separação do império soviético em 1991. No caso, os planejadores militares exploraram o recurso a armas nucleares táticas, ou seja, de terreno, não o deslanchar de um ataque devastador contra os territórios adversários, mas ainda assim proliferaram especulações sobre a efetiva possibilidade desse recurso último, caso a Rússia seja humilhada no terreno (como está sendo) pelas forças ucranianas (apoiadas maciçamente pelos países da Otan e outras democracias ocidentais). Seria interessante ter novamente Raymond Aron formulando seus argumentos sobre esse terrível conflito.

Mas, excluindo-se, de forma ingênua ou otimista, um novo passeio à beira do abismo, cabe reafirmar que o mundo não terá paz em 2023 ou mais além, pelo simples motivo de que os Estados nacionais ou apenas grupos armados e dotados de qualquer causa bélica legítima ou ilegítima estão sempre dispostos a recorrer ao uso da força em defesa de seus interesses nacionais, étnicos, religiosos e até mesmo tribais. Uma visita ao cenário atual de conflitos latentes ou potenciais pode confirmar a grande disseminação das guerras entre Estados ou intra Estados na presente conjuntura: Somália, Etiópia, República Democrática do Congo, República Centro-Africana, Burkina Faso, Chade, Mali, Niger, Nigéria e Sudão são os pontos mais visíveis no continente africano; Iêmen, Síria, Líbano, no Oriente Médio; Afeganistão, Paquistão e Mianmar, na Ásia do sul; talvez até Venezuela e novamente no Haiti não podem ser excluídos o ressurgimento ou a continuidade de conflitos armados. Em muitos outros países, bandos armados já em ação não excluem a passagem a guerras civis localizadas. 

A Ucrânia, obviamente, garante a continuidade do maior conflito na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial, não esquecendo os que já ocorreram nos Balcãs, cenário do início da Grande Guerra, e diversos outros latentes, como entre Azerbaijão e Armênia, ou a longa luta dos curdos e dos próprios palestinos a propósito da denegação de um dos mais difíceis princípios expostos pelo presidente Woodrow Wilson para as negociações de paz de Paris em 1919: a autodeterminação dos povos. Todos esses conflitos e outros ainda possíveis garantem uma agenda sempre problemática para debate e eventual encaminhamento ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), encarregado justamente de promover e defender a paz e a segurança internacionais, segundo os artigos mais relevantes da Carta da ONU. Pode-se também antecipar que mais da metade deles sequer serão objeto de qualquer decisão do CSNU em 2023 ou nos anos à frente, e não apenas em virtude do famigerado direito de veto exercido arbitrariamente por algum dos seus cinco membros permanentes.

Com efeito, a despeito da Corte Internacional de Justiça já ter formado maioria contra a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, e de ter ordenado a retirada imediata das tropas invasoras, nada de efetivo ocorreu, pois que a CIJ “não tem dentes”, dependente que é de resoluções do CSNU para o cumprimento de suas decisões, o que permanece uma hipótese altamente aleatória. Mesmo quando esse órgão de última instância da ONU aprova uma decisão em favor de uma nova missão de manutenção ou de imposição da paz, isto não quer dizer que ela será imediatamente cumprida, uma vez que a ONU, essa velha senhora, não dispõe de seus próprios “cães de guarda”, sendo totalmente dependente, por sua vez, da vontade ou da propensão dos membros permanentes e temporários do CSNU, ou outros membros da organização, de colocarem tropas, equipamentos e recursos para a formação de uma missão de paz (de qualquer tipo) e para o seu deslocamento para o terreno. No caso da Ucrânia, como já visto ao longo de 2022, essa possibilidade é totalmente inexistente, razão pela qual os “aliados” do país da Europa oriental introduziram sanções unilaterais contra a potência agressora, ainda que num espírito e modalidades totalmente convergentes com os artigos da Carta que regulam tais medidas (já utilizadas multilateralmente nos casos da Coreia do Norte, do ex-Congo belga, da Rodésia do Sul e da África do Sul nos tempos dos governos de minoria branca, do Iraque invasor do Kuwait em 1990 e do Afeganistão, em 2001, como “hospedeiro” dos terroristas que atacaram os EUA no mesmo ano). 

A Rússia vetou qualquer resolução do CSNU tendente a sancioná-la pela guerra de agressão, ainda que não tivesse podido impedir manifestações maciças da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos condenando-a pela invasão e pelos crimes de guerra que estão sendo continuamente perpetrados pela Rússia, o que garantiria a Putin o “direito” a um Nuremberg só seu, hipótese tão improvável quanto um processo e condenação pelo TPI da Haia. Não existe, por outro lado, qualquer possibilidade, no futuro previsível, de que a Carta da ONU seja revista para impedir, por exemplo, que os membros permanentes utilizem essa excrescência do direito de veto quando são eles próprios violadores dos artigos da Carta. O cenário provável é, portanto, o da continuidade dessa guerra monstruosa, assim como de diversas outras praticamente esquecidas pela parte “civilizada” do planeta, neste ano de 2023 e nos que se lhe seguirão. A agenda do CSNU e da própria AGNU permanecerá bloqueada para as questões mais delicadas, que são sempre aquelas nas quais as grandes potências possuem interesses relevantes, e também para as outras, em relação às quais são indiferentes.

Esse cenário coloca na agenda multilateral do Brasil, e também humanitária, ou no plano simplesmente moral, a questão de saber qual postura sua diplomacia deveria adotar nesses casos que impactam, direta ou indiretamente seus interesses nacionais, ou mesmo a consciência ética de seus líderes, se por acaso esse elemento entra em linha de conta. Na diplomacia do “primeiro” Lula, seu chanceler por dois mandatos, Celso Amorim, invocou o princípio subjetivo da “não indiferença” para justificar a aceitação da sugestão feita pelos EUA e França da liderança do Brasil numa missão de estabilização dos agudos conflitos internos no Haiti, que ameaçam desbordar para essas duas potências “coloniais”. Não se sabe se na gestão de Lula “terceiro” o mesmo princípio será invocado para retomar o caminho da antiga Minustah numa nova modalidade de intervenção humanitária e assistencial. O mais relevante, porém, é saber qual postura o país adotará em relação a um possível agravamento da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, que é o cenário mais provável de ocorrer em 2023, em face das contínuas dificuldades de Putin no enfrentamento do seu “Vietnã” nouvelle manière. Até aqui, o Brasil refugiou-se numa posição de neutralidade hipócrita, pois que objetivamente favorável à Rússia, com a qual o governo Bolsonaro negociou a continuidade do fornecimento de fertilizantes e até a importação de combustíveis. 

Essa guerra já provocou uma dramática crise energética (sobretudo na Europa), uma igualmente dramática ameaça ao comércio de grãos (em direção de importadores pobres), além de fenômenos mais recorrentes no cenário da economia mundial: inflação, alta de juros e, ainda mais preocupante, uma nova recessão nas principais economias afetadas pelo conflito, com repercussões inevitáveis sobre todos os demais países. Por mais que o Brasil possua uma matriz energética diversificada e uma amplíssima produção primária de bens agrícolas e minerais, ele não é insensível à volatilidade desses mercados, assim como aos fluxos financeiros e cambiais que podem acelerar o ímpeto inflacionário interno, assim como agravar eventual carência de empréstimos, financiamentos ou investimentos externos. No plano propriamente diplomático, a possível consolidação de uma nova Guerra Fria (desta vez mais propriamente econômica do que geopolítica, mas também esta) acarretará angústias semelhantes ou similares àquelas ressentidas nos anos 1940-80, quando o Brasil buscava firmar uma agenda universalista e ecumênica, capaz de fortalecer sua autonomia decisória e a exclusiva defesa dos interesses nacionais em face das grandes contendas da época.

Naquela fase, o Brasil tinha sido sede da assinatura do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (de 1947), um predecessor do princípio da segurança coletiva que seria depois implantado no Tratado de Washington de 1949, criando a Otan, um dos personagens mais ativos na atual guerra da Ucrânia. A diplomacia brasileira manteve-se pouco propensa a invocar o TIAR quando da guerra das Malvinas, em 1982, mas lembrou-se dele, para oferecer solidariedade aos EUA, quando dos ataques terroristas de setembro de 2001. Um elemento novo na equação da segurança, que afetará diplomaticamente o Brasil na presente conjuntura, é a existência do Brics, um foro de consulta e coordenação que congrega, ademais da Índia, da China e da África do Sul, o próprio agressor da Ucrânia e violador da Carta da ONU. Saber o que decidirá a diplomacia de “Lula III” em face do que se afigura um dilema dos mais angustiantes é a grande incógnita do presente momento. Bem-vindos a 2023.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4290: 18 dezembro 2022, 5 p.