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domingo, 12 de março de 2023

Haverá paz no mundo em 2023? (Artigos na revista Crusoé) - Paulo Roberto de Almeida

Um artigo do final de 2022, para ser publicado num número especial da revista Crusoé sobre as perspectivas para 2023.

Haverá paz no mundo em 2023? 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com; pralmeida@me.com)

Artigo de fim de ano para a revista Crusoé, a convite de Duda Teixeira.

Revisto e publicado, sob o título “Paz impossível, guerra improvável”, na revista Crusoé (n. 244, sexta-feira, 30/12/2022, link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/244/paz-impossivel-guerra-improvavel/). Relação de Publicados n. 1487.

  

Uma resposta precisa a esta complexa questão é um enfático e rotundo NÃO! Mas a concisão e a simplicidade desta afirmação não significam que o mundo conhecerá alguma guerra de proporção equivalente à dos grandes conflitos globais que marcaram a primeira metade do “curto século XX”, de que falava o historiador marxista Eric J. Hobsbawm. O que se descarta é a ocorrência de uma nova guerra total entre adversários geoestratégicos, não a recorrência de guerras interestatais, civis, étnicas, religiosas, ou de proxy wars, conflitos por procuração, entre as grandes potências existentes, nunca interrompidas em qualquer época.

A razão da negativa a uma hipótese jamais descartada pelos planejadores militares é a mesma que já tinha sido dada desde 1948 pelo conhecido filósofo e pensador estratégico francês Raymond Aron, ao considerar a possibilidade de uma nova guerra total entre grandes impérios, no imediato seguimento da Segunda Guerra Mundial: “paz impossível, guerra improvável”. Ele ainda confirmou seu argumento, formulado originalmente no livro Le Grand Schisme (O grande cisma; Paris: Gallimard), em seu livro de memórias, publicado pouco antes de sua morte, Les dernières années du siècle(Os últimos anos do século, 1983), pelos mesmos motivos que sustentavam seu raciocínio: a emergência da arma atômica, a grande dissuasora de qualquer novo enfrentamento global passada a tecnologia das guerras convencionais (exércitos no terreno, mais aviação e frotas bélicas) que ainda marcaram o início das guerras de 1914 e de 1939 (armas de destruição em massa, como o recurso à guerra química e as bombas nucleares foram introduzidas num fase mais avançada das duas grandes guerras mundiais. Registre-se que sua peremptória e durável frase foi feita ainda no período em que a superpotência americana detinha o monopólio da arma atômica, mas Aron nunca duvidou que a União Soviética alcançasse a paridade em breve tempo (ela o fez em 1949, como resultado da espionagem atômica e da capacitação própria dos físicos nucleares russos).

De fato, mais do que as promessas de paz e de segurança internacionais, inscritas no preâmbulo e nos primeiros artigos da Carta de San Francisco (1945), o que realmente evitou uma nova guerra total foi a promessa de uma destruição generalizada entre contendores dotados da ultima ratio do holocausto nuclear. Não que o emprego tático, ou mesmo estratégico, de armas atômicas não tenha sido cogitado ao longo dos últimos 77 anos desde Hiroshima e Nagasaki, mas é que o cogumelo cada vez maior previsto com o aumento dos megatons acrescidos desde então faz com que os líderes políticos, bem mais do que os oficiais militares superiores, retenham a respiração antes de considerar o recurso ao que se convencionou chamar de Armagedom. O general MacArthur, cujas tropas (supostamente a serviço da ONU) tinham sido empurradas de volta para a extremidade sul da Coreia depois do ingresso de “voluntários” chineses na primeira guerra quente da Guerra Fria, cogitou ordenar um bombardeio atômico nas fronteiras da China para cortar o fluxo de tropas e de equipamentos em apoio às forças do ditador Kim Il Sung, da Coreia do Norte; ele foi demitido na mesma hora pelo presidente Truman, o mesmo que tinha aprovado o bombardeio das duas cidades japonesas cinco anos antes. 

Recorde-se, também, que o mundo caminhou para a borda do precipício nuclear, quando da extrema tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética, em outubro de 1962, depois da descoberta da instalação de mísseis soviéticos em Cuba, a poucas milhas da Flórida. O jogo de poker entre os dois gigantes da Guerra Fria foi brilhantemente descrita pelo professor Graham Allison, autor da obra The Essence of Decision (1971), sobre as difíceis negociações entre o presidente John Kennedy e o líder russo Nikita Kruschev até conseguirem desarmar o ímpeto bélico de seus generais e comandantes navais, quando do embargo total sobre a ilha do Caribe decretado pelos americanos. Curiosamente, o mesmo pesquisador tornou-se novamente famoso ao explorar, em 2017, a possibilidade de uma nova guerra total entre os impérios americano e chinês, em seu livro Destined for War: Can America and China Escape Thucydides's Trap? (Condenados à guerra: podem a América e a China escapar à armadilha de Tucídides?), obra supostamente destinada a evitar uma repetição da guerra do Peloponeso descrita pelo conhecido historiador grego, contemporâneo daquela contenda fatal entre a Esparta autoritária e a democrática Atenas.

Mais recentemente, o espectro de um conflito nuclear entre os mesmos contendores da velha Guerra Fria voltou a ser aventado pelo próprio neoczar russo, Putin, ao declarar que não hesitaria em recorrer às suas armas mais poderosas caso a Otan viesse em socorro direto à Ucrânia depois de sua frustrada invasão e guerra de agressão iniciada em fevereiro de 2022, contra um vizinho não nuclear, depois de sua separação do império soviético em 1991. No caso, os planejadores militares exploraram o recurso a armas nucleares táticas, ou seja, de terreno, não o deslanchar de um ataque devastador contra os territórios adversários, mas ainda assim proliferaram especulações sobre a efetiva possibilidade desse recurso último, caso a Rússia seja humilhada no terreno (como está sendo) pelas forças ucranianas (apoiadas maciçamente pelos países da Otan e outras democracias ocidentais). Seria interessante ter novamente Raymond Aron formulando seus argumentos sobre esse terrível conflito.

Mas, excluindo-se, de forma ingênua ou otimista, um novo passeio à beira do abismo, cabe reafirmar que o mundo não terá paz em 2023 ou mais além, pelo simples motivo de que os Estados nacionais ou apenas grupos armados e dotados de qualquer causa bélica legítima ou ilegítima estão sempre dispostos a recorrer ao uso da força em defesa de seus interesses nacionais, étnicos, religiosos e até mesmo tribais. Uma visita ao cenário atual de conflitos latentes ou potenciais pode confirmar a grande disseminação das guerras entre Estados ou intra Estados na presente conjuntura: Somália, Etiópia, República Democrática do Congo, República Centro-Africana, Burkina Faso, Chade, Mali, Niger, Nigéria e Sudão são os pontos mais visíveis no continente africano; Iêmen, Síria, Líbano, no Oriente Médio; Afeganistão, Paquistão e Mianmar, na Ásia do sul; talvez até Venezuela e novamente no Haiti não podem ser excluídos o ressurgimento ou a continuidade de conflitos armados. Em muitos outros países, bandos armados já em ação não excluem a passagem a guerras civis localizadas. 

A Ucrânia, obviamente, garante a continuidade do maior conflito na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial, não esquecendo os que já ocorreram nos Balcãs, cenário do início da Grande Guerra, e diversos outros latentes, como entre Azerbaijão e Armênia, ou a longa luta dos curdos e dos próprios palestinos a propósito da denegação de um dos mais difíceis princípios expostos pelo presidente Woodrow Wilson para as negociações de paz de Paris em 1919: a autodeterminação dos povos. Todos esses conflitos e outros ainda possíveis garantem uma agenda sempre problemática para debate e eventual encaminhamento ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), encarregado justamente de promover e defender a paz e a segurança internacionais, segundo os artigos mais relevantes da Carta da ONU. Pode-se também antecipar que mais da metade deles sequer serão objeto de qualquer decisão do CSNU em 2023 ou nos anos à frente, e não apenas em virtude do famigerado direito de veto exercido arbitrariamente por algum dos seus cinco membros permanentes.

Com efeito, a despeito da Corte Internacional de Justiça já ter formado maioria contra a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, e de ter ordenado a retirada imediata das tropas invasoras, nada de efetivo ocorreu, pois que a CIJ “não tem dentes”, dependente que é de resoluções do CSNU para o cumprimento de suas decisões, o que permanece uma hipótese altamente aleatória. Mesmo quando esse órgão de última instância da ONU aprova uma decisão em favor de uma nova missão de manutenção ou de imposição da paz, isto não quer dizer que ela será imediatamente cumprida, uma vez que a ONU, essa velha senhora, não dispõe de seus próprios “cães de guarda”, sendo totalmente dependente, por sua vez, da vontade ou da propensão dos membros permanentes e temporários do CSNU, ou outros membros da organização, de colocarem tropas, equipamentos e recursos para a formação de uma missão de paz (de qualquer tipo) e para o seu deslocamento para o terreno. No caso da Ucrânia, como já visto ao longo de 2022, essa possibilidade é totalmente inexistente, razão pela qual os “aliados” do país da Europa oriental introduziram sanções unilaterais contra a potência agressora, ainda que num espírito e modalidades totalmente convergentes com os artigos da Carta que regulam tais medidas (já utilizadas multilateralmente nos casos da Coreia do Norte, do ex-Congo belga, da Rodésia do Sul e da África do Sul nos tempos dos governos de minoria branca, do Iraque invasor do Kuwait em 1990 e do Afeganistão, em 2001, como “hospedeiro” dos terroristas que atacaram os EUA no mesmo ano). 

A Rússia vetou qualquer resolução do CSNU tendente a sancioná-la pela guerra de agressão, ainda que não tivesse podido impedir manifestações maciças da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos condenando-a pela invasão e pelos crimes de guerra que estão sendo continuamente perpetrados pela Rússia, o que garantiria a Putin o “direito” a um Nuremberg só seu, hipótese tão improvável quanto um processo e condenação pelo TPI da Haia. Não existe, por outro lado, qualquer possibilidade, no futuro previsível, de que a Carta da ONU seja revista para impedir, por exemplo, que os membros permanentes utilizem essa excrescência do direito de veto quando são eles próprios violadores dos artigos da Carta. O cenário provável é, portanto, o da continuidade dessa guerra monstruosa, assim como de diversas outras praticamente esquecidas pela parte “civilizada” do planeta, neste ano de 2023 e nos que se lhe seguirão. A agenda do CSNU e da própria AGNU permanecerá bloqueada para as questões mais delicadas, que são sempre aquelas nas quais as grandes potências possuem interesses relevantes, e também para as outras, em relação às quais são indiferentes.

Esse cenário coloca na agenda multilateral do Brasil, e também humanitária, ou no plano simplesmente moral, a questão de saber qual postura sua diplomacia deveria adotar nesses casos que impactam, direta ou indiretamente seus interesses nacionais, ou mesmo a consciência ética de seus líderes, se por acaso esse elemento entra em linha de conta. Na diplomacia do “primeiro” Lula, seu chanceler por dois mandatos, Celso Amorim, invocou o princípio subjetivo da “não indiferença” para justificar a aceitação da sugestão feita pelos EUA e França da liderança do Brasil numa missão de estabilização dos agudos conflitos internos no Haiti, que ameaçam desbordar para essas duas potências “coloniais”. Não se sabe se na gestão de Lula “terceiro” o mesmo princípio será invocado para retomar o caminho da antiga Minustah numa nova modalidade de intervenção humanitária e assistencial. O mais relevante, porém, é saber qual postura o país adotará em relação a um possível agravamento da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, que é o cenário mais provável de ocorrer em 2023, em face das contínuas dificuldades de Putin no enfrentamento do seu “Vietnã” nouvelle manière. Até aqui, o Brasil refugiou-se numa posição de neutralidade hipócrita, pois que objetivamente favorável à Rússia, com a qual o governo Bolsonaro negociou a continuidade do fornecimento de fertilizantes e até a importação de combustíveis. 

Essa guerra já provocou uma dramática crise energética (sobretudo na Europa), uma igualmente dramática ameaça ao comércio de grãos (em direção de importadores pobres), além de fenômenos mais recorrentes no cenário da economia mundial: inflação, alta de juros e, ainda mais preocupante, uma nova recessão nas principais economias afetadas pelo conflito, com repercussões inevitáveis sobre todos os demais países. Por mais que o Brasil possua uma matriz energética diversificada e uma amplíssima produção primária de bens agrícolas e minerais, ele não é insensível à volatilidade desses mercados, assim como aos fluxos financeiros e cambiais que podem acelerar o ímpeto inflacionário interno, assim como agravar eventual carência de empréstimos, financiamentos ou investimentos externos. No plano propriamente diplomático, a possível consolidação de uma nova Guerra Fria (desta vez mais propriamente econômica do que geopolítica, mas também esta) acarretará angústias semelhantes ou similares àquelas ressentidas nos anos 1940-80, quando o Brasil buscava firmar uma agenda universalista e ecumênica, capaz de fortalecer sua autonomia decisória e a exclusiva defesa dos interesses nacionais em face das grandes contendas da época.

Naquela fase, o Brasil tinha sido sede da assinatura do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (de 1947), um predecessor do princípio da segurança coletiva que seria depois implantado no Tratado de Washington de 1949, criando a Otan, um dos personagens mais ativos na atual guerra da Ucrânia. A diplomacia brasileira manteve-se pouco propensa a invocar o TIAR quando da guerra das Malvinas, em 1982, mas lembrou-se dele, para oferecer solidariedade aos EUA, quando dos ataques terroristas de setembro de 2001. Um elemento novo na equação da segurança, que afetará diplomaticamente o Brasil na presente conjuntura, é a existência do Brics, um foro de consulta e coordenação que congrega, ademais da Índia, da China e da África do Sul, o próprio agressor da Ucrânia e violador da Carta da ONU. Saber o que decidirá a diplomacia de “Lula III” em face do que se afigura um dilema dos mais angustiantes é a grande incógnita do presente momento. Bem-vindos a 2023.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4290: 18 dezembro 2022, 5 p.

 

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Haverá paz no mundo em 2023? - Paulo Roberto de Almeida

 Haverá paz no mundo em 2023? 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Artigo de fim de ano publicado em versão ligeiramente modificada na revista Crusoé (n. 244, sexta-feira, 30/12/2022, link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/244/paz-impossivel-guerra-improvavel/).

 

Uma resposta precisa a esta complexa questão é um enfático e rotundo NÃO! Mas a concisão e a simplicidade desta afirmação não significam que o mundo conhecerá alguma guerra de proporção equivalente à dos grandes conflitos globais que marcaram a primeira metade do “curto século XX”, de que falava o historiador marxista Eric J. Hobsbawm. O que se descarta é a ocorrência de uma nova guerra total entre adversários geoestratégicos, não a recorrência de guerras interestatais, civis, étnicas, religiosas, ou de proxy wars, conflitos por procuração, entre as grandes potências existentes, nunca interrompidas em qualquer época.

A razão da negativa a uma hipótese jamais descartada pelos planejadores militares é a mesma que já tinha sido dada desde 1948 pelo conhecido filósofo e pensador estratégico francês Raymond Aron, ao considerar a possibilidade de uma nova guerra total entre grandes impérios, no imediato seguimento da Segunda Guerra Mundial: “paz impossível, guerra improvável”. Ele ainda confirmou seu argumento, formulado originalmente no livro Le Grand Schisme (O grande cisma; Paris: Gallimard), em seu livro de memórias, publicado pouco antes de sua morte, Les dernières années du siècle(Os últimos anos do século, 1983), pelos mesmos motivos que sustentavam seu raciocínio: a emergência da arma atômica, a grande dissuasora de qualquer novo enfrentamento global passada a tecnologia das guerras convencionais (exércitos no terreno, mais aviação e frotas bélicas) que ainda marcaram o início das guerras de 1914 e de 1939 (armas de destruição em massa, como o recurso à guerra química e as bombas nucleares foram introduzidas num fase mais avançada das duas grandes guerras mundiais. Registre-se que sua peremptória e durável frase foi feita ainda no período em que a superpotência americana detinha o monopólio da arma atômica, mas Aron nunca duvidou que a União Soviética alcançasse a paridade em breve tempo (ela o fez em 1949, como resultado da espionagem atômica e da capacitação própria dos físicos nucleares russos).

De fato, mais do que as promessas de paz e de segurança internacionais, inscritas no preâmbulo e nos primeiros artigos da Carta de San Francisco (1945), o que realmente evitou uma nova guerra total foi a promessa de uma destruição generalizada entre contendores dotados da ultima ratio do holocausto nuclear. Não que o emprego tático, ou mesmo estratégico, de armas atômicas não tenha sido cogitado ao longo dos últimos 77 anos desde Hiroshima e Nagasaki, mas é que o cogumelo cada vez maior previsto com o aumento dos megatons acrescidos desde então faz com que os líderes políticos, bem mais do que os oficiais militares superiores, retenham a respiração antes de considerar o recurso ao que se convencionou chamar de Armagedom. O general MacArthur, cujas tropas (supostamente a serviço da ONU) tinham sido empurradas de volta para a extremidade sul da Coreia depois do ingresso de “voluntários” chineses na primeira guerra quente da Guerra Fria, cogitou ordenar um bombardeio atômico nas fronteiras da China para cortar o fluxo de tropas e de equipamentos em apoio às forças do ditador Kim Il Sung, da Coreia do Norte; ele foi demitido na mesma hora pelo presidente Truman, o mesmo que tinha aprovado o bombardeio das duas cidades japonesas cinco anos antes. 

Recorde-se, também, que o mundo caminhou para a borda do precipício nuclear, quando da extrema tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética, em outubro de 1962, depois da descoberta da instalação de mísseis soviéticos em Cuba, a poucas milhas da Flórida. O jogo de poker entre os dois gigantes da Guerra Fria foi brilhantemente descrita pelo professor Graham Allison, autor da obra The Essence of Decision (1971), sobre as difíceis negociações entre o presidente John Kennedy e o líder russo Nikita Kruschev até conseguirem desarmar o ímpeto bélico de seus generais e comandantes navais, quando do embargo total sobre a ilha do Caribe decretado pelos americanos. Curiosamente, o mesmo pesquisador tornou-se novamente famoso ao explorar, em 2017, a possibilidade de uma nova guerra total entre os impérios americano e chinês, em seu livro Destined for War: Can America and China Escape Thucydides's Trap? (Condenados à guerra: podem a América e a China escapar à armadilha de Tucídides?), obra supostamente destinada a evitar uma repetição da guerra do Peloponeso descrita pelo conhecido historiador grego, contemporâneo daquela contenda fatal entre a Esparta autoritária e a democrática Atenas.

Mais recentemente, o espectro de um conflito nuclear entre os mesmos contendores da velha Guerra Fria voltou a ser aventado pelo próprio neoczar russo, Putin, ao declarar que não hesitaria em recorrer às suas armas mais poderosas caso a Otan viesse em socorro direto à Ucrânia depois de sua frustrada invasão e guerra de agressão iniciada em fevereiro de 2022, contra um vizinho não nuclear, depois de sua separação do império soviético em 1991. No caso, os planejadores militares exploraram o recurso a armas nucleares táticas, ou seja, de terreno, não o deslanchar de um ataque devastador contra os territórios adversários, mas ainda assim proliferaram especulações sobre a efetiva possibilidade desse recurso último, caso a Rússia seja humilhada no terreno (como está sendo) pelas forças ucranianas (apoiadas maciçamente pelos países da Otan e outras democracias ocidentais). Seria interessante ter novamente Raymond Aron formulando seus argumentos sobre esse terrível conflito.

Mas, excluindo-se, de forma ingênua ou otimista, um novo passeio à beira do abismo, cabe reafirmar que o mundo não terá paz em 2023 ou mais além, pelo simples motivo de que os Estados nacionais ou apenas grupos armados e dotados de qualquer causa bélica legítima ou ilegítima estão sempre dispostos a recorrer ao uso da força em defesa de seus interesses nacionais, étnicos, religiosos e até mesmo tribais. Uma visita ao cenário atual de conflitos latentes ou potenciais pode confirmar a grande disseminação das guerras entre Estados ou intra Estados na presente conjuntura: Somália, Etiópia, República Democrática do Congo, República Centro-Africana, Burkina Faso, Chade, Mali, Niger, Nigéria e Sudão são os pontos mais visíveis no continente africano; Iêmen, Síria, Líbano, no Oriente Médio; Afeganistão, Paquistão e Mianmar, na Ásia do sul; talvez até Venezuela e novamente no Haiti não podem ser excluídos o ressurgimento ou a continuidade de conflitos armados. Em muitos outros países, bandos armados já em ação não excluem a passagem a guerras civis localizadas. 

A Ucrânia, obviamente, garante a continuidade do maior conflito na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial, não esquecendo os que já ocorreram nos Balcãs, cenário do início da Grande Guerra, e diversos outros latentes, como entre Azerbaijão e Armênia, ou a longa luta dos curdos e dos próprios palestinos a propósito da denegação de um dos mais difíceis princípios expostos pelo presidente Woodrow Wilson para as negociações de paz de Paris em 1919: a autodeterminação dos povos. Todos esses conflitos e outros ainda possíveis garantem uma agenda sempre problemática para debate e eventual encaminhamento ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), encarregado justamente de promover e defender a paz e a segurança internacionais, segundo os artigos mais relevantes da Carta da ONU. Pode-se também antecipar que mais da metade deles sequer serão objeto de qualquer decisão do CSNU em 2023 ou nos anos à frente, e não apenas em virtude do famigerado direito de veto exercido arbitrariamente por algum dos seus cinco membros permanentes.

Com efeito, a despeito da Corte Internacional de Justiça já ter formado maioria contra a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, e de ter ordenado a retirada imediata das tropas invasoras, nada de efetivo ocorreu, pois que a CIJ “não tem dentes”, dependente que é de resoluções do CSNU para o cumprimento de suas decisões, o que permanece uma hipótese altamente aleatória. Mesmo quando esse órgão de última instância da ONU aprova uma decisão em favor de uma nova missão de manutenção ou de imposição da paz, isto não quer dizer que ela será imediatamente cumprida, uma vez que a ONU, essa velha senhora, não dispõe de seus próprios “cães de guarda”, sendo totalmente dependente, por sua vez, da vontade ou da propensão dos membros permanentes e temporários do CSNU, ou outros membros da organização, de colocarem tropas, equipamentos e recursos para a formação de uma missão de paz (de qualquer tipo) e para o seu deslocamento para o terreno. No caso da Ucrânia, como já visto ao longo de 2022, essa possibilidade é totalmente inexistente, razão pela qual os “aliados” do país da Europa oriental introduziram sanções unilaterais contra a potência agressora, ainda que num espírito e modalidades totalmente convergentes com os artigos da Carta que regulam tais medidas (já utilizadas multilateralmente nos casos da Coreia do Norte, do ex-Congo belga, da Rodésia do Sul e da África do Sul nos tempos dos governos de minoria branca, do Iraque invasor do Kuwait em 1990 e do Afeganistão, em 2001, como “hospedeiro” dos terroristas que atacaram os EUA no mesmo ano). 

A Rússia vetou qualquer resolução do CSNU tendente a sancioná-la pela guerra de agressão, ainda que não tivesse podido impedir manifestações maciças da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos condenando-a pela invasão e pelos crimes de guerra que estão sendo continuamente perpetrados pela Rússia, o que garantiria a Putin o “direito” a um Nuremberg só seu, hipótese tão improvável quanto um processo e condenação pelo TPI da Haia. Não existe, por outro lado, qualquer possibilidade, no futuro previsível, de que a Carta da ONU seja revista para impedir, por exemplo, que os membros permanentes utilizem essa excrescência do direito de veto quando são eles próprios violadores dos artigos da Carta. O cenário provável é, portanto, o da continuidade dessa guerra monstruosa, assim como de diversas outras praticamente esquecidas pela parte “civilizada” do planeta, neste ano de 2023 e nos que se lhe seguirão. A agenda do CSNU e da própria AGNU permanecerá bloqueada para as questões mais delicadas, que são sempre aquelas nas quais as grandes potências possuem interesses relevantes, e também para as outras, em relação às quais são indiferentes.

Esse cenário coloca na agenda multilateral do Brasil, e também humanitária, ou no plano simplesmente moral, a questão de saber qual postura sua diplomacia deveria adotar nesses casos que impactam, direta ou indiretamente seus interesses nacionais, ou mesmo a consciência ética de seus líderes, se por acaso esse elemento entra em linha de conta. Na diplomacia do “primeiro” Lula, seu chanceler por dois mandatos, Celso Amorim, invocou o princípio subjetivo da “não indiferença” para justificar a aceitação da sugestão feita pelos EUA e França da liderança do Brasil numa missão de estabilização dos agudos conflitos internos no Haiti, que ameaçam desbordar para essas duas potências “coloniais”. Não se sabe se na gestão de Lula “terceiro” o mesmo princípio será invocado para retomar o caminho da antiga Minustah numa nova modalidade de intervenção humanitária e assistencial. O mais relevante, porém, é saber qual postura o país adotará em relação a um possível agravamento da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, que é o cenário mais provável de ocorrer em 2023, em face das contínuas dificuldades de Putin no enfrentamento do seu “Vietnã” nouvelle manière. Até aqui, o Brasil refugiou-se numa posição de neutralidade hipócrita, pois que objetivamente favorável à Rússia, com a qual o governo Bolsonaro negociou a continuidade do fornecimento de fertilizantes e até a importação de combustíveis. 

Essa guerra já provocou uma dramática crise energética (sobretudo na Europa), uma igualmente dramática ameaça ao comércio de grãos (em direção de importadores pobres), além de fenômenos mais recorrentes no cenário da economia mundial: inflação, alta de juros e, ainda mais preocupante, uma nova recessão nas principais economias afetadas pelo conflito, com repercussões inevitáveis sobre todos os demais países. Por mais que o Brasil possua uma matriz energética diversificada e uma amplíssima produção primária de bens agrícolas e minerais, ele não é insensível à volatilidade desses mercados, assim como aos fluxos financeiros e cambiais que podem acelerar o ímpeto inflacionário interno, assim como agravar eventual carência de empréstimos, financiamentos ou investimentos externos. No plano propriamente diplomático, a possível consolidação de uma nova Guerra Fria (desta vez mais propriamente econômica do que geopolítica, mas também esta) acarretará angústias semelhantes ou similares àquelas ressentidas nos anos 1940-80, quando o Brasil buscava firmar uma agenda universalista e ecumênica, capaz de fortalecer sua autonomia decisória e a exclusiva defesa dos interesses nacionais em face das grandes contendas da época.

Naquela fase, o Brasil tinha sido sede da assinatura do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (de 1947), um predecessor do princípio da segurança coletiva que seria depois implantado no Tratado de Washington de 1949, criando a Otan, um dos personagens mais ativos na atual guerra da Ucrânia. A diplomacia brasileira manteve-se pouco propensa a invocar o TIAR quando da guerra das Malvinas, em 1982, mas lembrou-se dele, para oferecer solidariedade aos EUA, quando dos ataques terroristas de setembro de 2001. Um elemento novo na equação da segurança, que afetará diplomaticamente o Brasil na presente conjuntura, é a existência do Brics, um foro de consulta e coordenação que congrega, ademais da Índia, da China e da África do Sul, o próprio agressor da Ucrânia e violador da Carta da ONU. Saber o que decidirá a diplomacia de “Lula III” em face do que se afigura um dilema dos mais angustiantes é a grande incógnita do presente momento. Bem-vindos a 2023.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4290: 18 dezembro 2022, 5 p.