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terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Haverá paz no mundo em 2023? - Paulo Roberto de Almeida

 Haverá paz no mundo em 2023? 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Artigo de fim de ano publicado em versão ligeiramente modificada na revista Crusoé (n. 244, sexta-feira, 30/12/2022, link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/244/paz-impossivel-guerra-improvavel/).

 

Uma resposta precisa a esta complexa questão é um enfático e rotundo NÃO! Mas a concisão e a simplicidade desta afirmação não significam que o mundo conhecerá alguma guerra de proporção equivalente à dos grandes conflitos globais que marcaram a primeira metade do “curto século XX”, de que falava o historiador marxista Eric J. Hobsbawm. O que se descarta é a ocorrência de uma nova guerra total entre adversários geoestratégicos, não a recorrência de guerras interestatais, civis, étnicas, religiosas, ou de proxy wars, conflitos por procuração, entre as grandes potências existentes, nunca interrompidas em qualquer época.

A razão da negativa a uma hipótese jamais descartada pelos planejadores militares é a mesma que já tinha sido dada desde 1948 pelo conhecido filósofo e pensador estratégico francês Raymond Aron, ao considerar a possibilidade de uma nova guerra total entre grandes impérios, no imediato seguimento da Segunda Guerra Mundial: “paz impossível, guerra improvável”. Ele ainda confirmou seu argumento, formulado originalmente no livro Le Grand Schisme (O grande cisma; Paris: Gallimard), em seu livro de memórias, publicado pouco antes de sua morte, Les dernières années du siècle(Os últimos anos do século, 1983), pelos mesmos motivos que sustentavam seu raciocínio: a emergência da arma atômica, a grande dissuasora de qualquer novo enfrentamento global passada a tecnologia das guerras convencionais (exércitos no terreno, mais aviação e frotas bélicas) que ainda marcaram o início das guerras de 1914 e de 1939 (armas de destruição em massa, como o recurso à guerra química e as bombas nucleares foram introduzidas num fase mais avançada das duas grandes guerras mundiais. Registre-se que sua peremptória e durável frase foi feita ainda no período em que a superpotência americana detinha o monopólio da arma atômica, mas Aron nunca duvidou que a União Soviética alcançasse a paridade em breve tempo (ela o fez em 1949, como resultado da espionagem atômica e da capacitação própria dos físicos nucleares russos).

De fato, mais do que as promessas de paz e de segurança internacionais, inscritas no preâmbulo e nos primeiros artigos da Carta de San Francisco (1945), o que realmente evitou uma nova guerra total foi a promessa de uma destruição generalizada entre contendores dotados da ultima ratio do holocausto nuclear. Não que o emprego tático, ou mesmo estratégico, de armas atômicas não tenha sido cogitado ao longo dos últimos 77 anos desde Hiroshima e Nagasaki, mas é que o cogumelo cada vez maior previsto com o aumento dos megatons acrescidos desde então faz com que os líderes políticos, bem mais do que os oficiais militares superiores, retenham a respiração antes de considerar o recurso ao que se convencionou chamar de Armagedom. O general MacArthur, cujas tropas (supostamente a serviço da ONU) tinham sido empurradas de volta para a extremidade sul da Coreia depois do ingresso de “voluntários” chineses na primeira guerra quente da Guerra Fria, cogitou ordenar um bombardeio atômico nas fronteiras da China para cortar o fluxo de tropas e de equipamentos em apoio às forças do ditador Kim Il Sung, da Coreia do Norte; ele foi demitido na mesma hora pelo presidente Truman, o mesmo que tinha aprovado o bombardeio das duas cidades japonesas cinco anos antes. 

Recorde-se, também, que o mundo caminhou para a borda do precipício nuclear, quando da extrema tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética, em outubro de 1962, depois da descoberta da instalação de mísseis soviéticos em Cuba, a poucas milhas da Flórida. O jogo de poker entre os dois gigantes da Guerra Fria foi brilhantemente descrita pelo professor Graham Allison, autor da obra The Essence of Decision (1971), sobre as difíceis negociações entre o presidente John Kennedy e o líder russo Nikita Kruschev até conseguirem desarmar o ímpeto bélico de seus generais e comandantes navais, quando do embargo total sobre a ilha do Caribe decretado pelos americanos. Curiosamente, o mesmo pesquisador tornou-se novamente famoso ao explorar, em 2017, a possibilidade de uma nova guerra total entre os impérios americano e chinês, em seu livro Destined for War: Can America and China Escape Thucydides's Trap? (Condenados à guerra: podem a América e a China escapar à armadilha de Tucídides?), obra supostamente destinada a evitar uma repetição da guerra do Peloponeso descrita pelo conhecido historiador grego, contemporâneo daquela contenda fatal entre a Esparta autoritária e a democrática Atenas.

Mais recentemente, o espectro de um conflito nuclear entre os mesmos contendores da velha Guerra Fria voltou a ser aventado pelo próprio neoczar russo, Putin, ao declarar que não hesitaria em recorrer às suas armas mais poderosas caso a Otan viesse em socorro direto à Ucrânia depois de sua frustrada invasão e guerra de agressão iniciada em fevereiro de 2022, contra um vizinho não nuclear, depois de sua separação do império soviético em 1991. No caso, os planejadores militares exploraram o recurso a armas nucleares táticas, ou seja, de terreno, não o deslanchar de um ataque devastador contra os territórios adversários, mas ainda assim proliferaram especulações sobre a efetiva possibilidade desse recurso último, caso a Rússia seja humilhada no terreno (como está sendo) pelas forças ucranianas (apoiadas maciçamente pelos países da Otan e outras democracias ocidentais). Seria interessante ter novamente Raymond Aron formulando seus argumentos sobre esse terrível conflito.

Mas, excluindo-se, de forma ingênua ou otimista, um novo passeio à beira do abismo, cabe reafirmar que o mundo não terá paz em 2023 ou mais além, pelo simples motivo de que os Estados nacionais ou apenas grupos armados e dotados de qualquer causa bélica legítima ou ilegítima estão sempre dispostos a recorrer ao uso da força em defesa de seus interesses nacionais, étnicos, religiosos e até mesmo tribais. Uma visita ao cenário atual de conflitos latentes ou potenciais pode confirmar a grande disseminação das guerras entre Estados ou intra Estados na presente conjuntura: Somália, Etiópia, República Democrática do Congo, República Centro-Africana, Burkina Faso, Chade, Mali, Niger, Nigéria e Sudão são os pontos mais visíveis no continente africano; Iêmen, Síria, Líbano, no Oriente Médio; Afeganistão, Paquistão e Mianmar, na Ásia do sul; talvez até Venezuela e novamente no Haiti não podem ser excluídos o ressurgimento ou a continuidade de conflitos armados. Em muitos outros países, bandos armados já em ação não excluem a passagem a guerras civis localizadas. 

A Ucrânia, obviamente, garante a continuidade do maior conflito na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial, não esquecendo os que já ocorreram nos Balcãs, cenário do início da Grande Guerra, e diversos outros latentes, como entre Azerbaijão e Armênia, ou a longa luta dos curdos e dos próprios palestinos a propósito da denegação de um dos mais difíceis princípios expostos pelo presidente Woodrow Wilson para as negociações de paz de Paris em 1919: a autodeterminação dos povos. Todos esses conflitos e outros ainda possíveis garantem uma agenda sempre problemática para debate e eventual encaminhamento ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), encarregado justamente de promover e defender a paz e a segurança internacionais, segundo os artigos mais relevantes da Carta da ONU. Pode-se também antecipar que mais da metade deles sequer serão objeto de qualquer decisão do CSNU em 2023 ou nos anos à frente, e não apenas em virtude do famigerado direito de veto exercido arbitrariamente por algum dos seus cinco membros permanentes.

Com efeito, a despeito da Corte Internacional de Justiça já ter formado maioria contra a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, e de ter ordenado a retirada imediata das tropas invasoras, nada de efetivo ocorreu, pois que a CIJ “não tem dentes”, dependente que é de resoluções do CSNU para o cumprimento de suas decisões, o que permanece uma hipótese altamente aleatória. Mesmo quando esse órgão de última instância da ONU aprova uma decisão em favor de uma nova missão de manutenção ou de imposição da paz, isto não quer dizer que ela será imediatamente cumprida, uma vez que a ONU, essa velha senhora, não dispõe de seus próprios “cães de guarda”, sendo totalmente dependente, por sua vez, da vontade ou da propensão dos membros permanentes e temporários do CSNU, ou outros membros da organização, de colocarem tropas, equipamentos e recursos para a formação de uma missão de paz (de qualquer tipo) e para o seu deslocamento para o terreno. No caso da Ucrânia, como já visto ao longo de 2022, essa possibilidade é totalmente inexistente, razão pela qual os “aliados” do país da Europa oriental introduziram sanções unilaterais contra a potência agressora, ainda que num espírito e modalidades totalmente convergentes com os artigos da Carta que regulam tais medidas (já utilizadas multilateralmente nos casos da Coreia do Norte, do ex-Congo belga, da Rodésia do Sul e da África do Sul nos tempos dos governos de minoria branca, do Iraque invasor do Kuwait em 1990 e do Afeganistão, em 2001, como “hospedeiro” dos terroristas que atacaram os EUA no mesmo ano). 

A Rússia vetou qualquer resolução do CSNU tendente a sancioná-la pela guerra de agressão, ainda que não tivesse podido impedir manifestações maciças da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos condenando-a pela invasão e pelos crimes de guerra que estão sendo continuamente perpetrados pela Rússia, o que garantiria a Putin o “direito” a um Nuremberg só seu, hipótese tão improvável quanto um processo e condenação pelo TPI da Haia. Não existe, por outro lado, qualquer possibilidade, no futuro previsível, de que a Carta da ONU seja revista para impedir, por exemplo, que os membros permanentes utilizem essa excrescência do direito de veto quando são eles próprios violadores dos artigos da Carta. O cenário provável é, portanto, o da continuidade dessa guerra monstruosa, assim como de diversas outras praticamente esquecidas pela parte “civilizada” do planeta, neste ano de 2023 e nos que se lhe seguirão. A agenda do CSNU e da própria AGNU permanecerá bloqueada para as questões mais delicadas, que são sempre aquelas nas quais as grandes potências possuem interesses relevantes, e também para as outras, em relação às quais são indiferentes.

Esse cenário coloca na agenda multilateral do Brasil, e também humanitária, ou no plano simplesmente moral, a questão de saber qual postura sua diplomacia deveria adotar nesses casos que impactam, direta ou indiretamente seus interesses nacionais, ou mesmo a consciência ética de seus líderes, se por acaso esse elemento entra em linha de conta. Na diplomacia do “primeiro” Lula, seu chanceler por dois mandatos, Celso Amorim, invocou o princípio subjetivo da “não indiferença” para justificar a aceitação da sugestão feita pelos EUA e França da liderança do Brasil numa missão de estabilização dos agudos conflitos internos no Haiti, que ameaçam desbordar para essas duas potências “coloniais”. Não se sabe se na gestão de Lula “terceiro” o mesmo princípio será invocado para retomar o caminho da antiga Minustah numa nova modalidade de intervenção humanitária e assistencial. O mais relevante, porém, é saber qual postura o país adotará em relação a um possível agravamento da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, que é o cenário mais provável de ocorrer em 2023, em face das contínuas dificuldades de Putin no enfrentamento do seu “Vietnã” nouvelle manière. Até aqui, o Brasil refugiou-se numa posição de neutralidade hipócrita, pois que objetivamente favorável à Rússia, com a qual o governo Bolsonaro negociou a continuidade do fornecimento de fertilizantes e até a importação de combustíveis. 

Essa guerra já provocou uma dramática crise energética (sobretudo na Europa), uma igualmente dramática ameaça ao comércio de grãos (em direção de importadores pobres), além de fenômenos mais recorrentes no cenário da economia mundial: inflação, alta de juros e, ainda mais preocupante, uma nova recessão nas principais economias afetadas pelo conflito, com repercussões inevitáveis sobre todos os demais países. Por mais que o Brasil possua uma matriz energética diversificada e uma amplíssima produção primária de bens agrícolas e minerais, ele não é insensível à volatilidade desses mercados, assim como aos fluxos financeiros e cambiais que podem acelerar o ímpeto inflacionário interno, assim como agravar eventual carência de empréstimos, financiamentos ou investimentos externos. No plano propriamente diplomático, a possível consolidação de uma nova Guerra Fria (desta vez mais propriamente econômica do que geopolítica, mas também esta) acarretará angústias semelhantes ou similares àquelas ressentidas nos anos 1940-80, quando o Brasil buscava firmar uma agenda universalista e ecumênica, capaz de fortalecer sua autonomia decisória e a exclusiva defesa dos interesses nacionais em face das grandes contendas da época.

Naquela fase, o Brasil tinha sido sede da assinatura do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (de 1947), um predecessor do princípio da segurança coletiva que seria depois implantado no Tratado de Washington de 1949, criando a Otan, um dos personagens mais ativos na atual guerra da Ucrânia. A diplomacia brasileira manteve-se pouco propensa a invocar o TIAR quando da guerra das Malvinas, em 1982, mas lembrou-se dele, para oferecer solidariedade aos EUA, quando dos ataques terroristas de setembro de 2001. Um elemento novo na equação da segurança, que afetará diplomaticamente o Brasil na presente conjuntura, é a existência do Brics, um foro de consulta e coordenação que congrega, ademais da Índia, da China e da África do Sul, o próprio agressor da Ucrânia e violador da Carta da ONU. Saber o que decidirá a diplomacia de “Lula III” em face do que se afigura um dilema dos mais angustiantes é a grande incógnita do presente momento. Bem-vindos a 2023.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4290: 18 dezembro 2022, 5 p.


sexta-feira, 15 de julho de 2011

Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI (1/2011): Guerra e Paz de Portinari

Instituto Brasileiro de Relações Internacionais
Revista Brasileira de Política Internacional
Editorial da Edição Vol. 54 – No. 1 (1/2011) da RBPI
Guerra e Paz, traduções do nosso tempo
por Antônio Carlos Lessa
Publicação decana da área no Brasil, com mais de cinquenta anos de circulação, a Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI desde a sua fundação foi diagramada com capas padronizadas, que mudaram apenas duas ou três vezes ao longo da sua história. Desde 2004 temos empreendido um esforço de rejuvenescimento do padrão gráfico da Revista, com capas especialmente preparadas para cada uma das edições, de modo a emprestar-lhe leveza e modernidade. A idéia é a de singularizar a nossa publicação nas estantes dos nossos leitores, fazê-la ponto de referência visual e, para além do seu conteúdo, tornar a sua apresentação um ponto de observação e de nota.

Até o momento, não tivemos a oportunidade de ocupar o espaço nobre da capa das nossas edições com homenagens – talvez pela desconfiança de que uma revista científica não seria o espaço adequado para manifestações dessa natureza, ou porque não tenhamos tido até então um fato marcante o bastante, e de interesse geral, que o justificasse. A transferência dos painéis Guerra e Paz, de Cândido Portinari, para obras de restauro no Brasil, nos oferece essa primeira oportunidade e, por isso, as capas das duas edições do nosso volume 54, referente a 2011, estamparão as duas magníficas imagens.[1]

Os painéis foram doados pelo governo brasileiro à Organização das Nações Unidas, e inaugurados no hall dos Delegados da Assembléia Geral em setembro de 1957. No nosso ponto de vista, os painéis sugerem de modo dramático as circunstâncias do mundo em que vivemos, e são hoje, tanto quanto no momento em que foram concebidos, a expressão de crise internacional, e também a de seu remédio. São, portanto, uma expressão gráfica perfeita do nosso objeto, da agenda de pesquisa de todos quantos se dediquem ao estudo das Relações Internacionais, que de certo modo repercutimos nas edições da RBPI desde 1958.

A sua execução esgotou a saúde de Cândido Portinari, artista que fez do Brasil o seu grande tema, numa obra de caráter social e trágico, mas que se superou com a linda homenagem que o Brasil fez à ONU. Na inauguração dos painéis, o Embaixador Cyro de Freitas Valle, chefe da delegação brasileira à Assembléia Geral, resumiu com perfeição o significado dos painéis, e a importância de terem sido concebidos e executados por um dos maiores artistas brasileiros: “…o Brasil está oferecendo hoje às Nações Unidas o que acredita ser o melhor que tem para dar”.

Nós agradecemos à equipe do Projeto Portinari pelo suporte técnico para a reprodução das imagens e, especialmente, ao Professor João Cândido Portinari, filho do grande artista brasileiro, pelo apoio que nos deu. A permissão para a reprodução do trabalho de seu pai em nossa Revista viabilizou essa homenagem, que é nossa, e de todos os que acreditam que as inquietações expressadas em Guerra e Paz são também a tradução do nosso tempo.

[1] Mais informações sobre os trabalhos de restauração podem ser obtidas no site do projeto, acessível em http://www.guerraepaz.org.br.

Antônio Carlos Lessa é Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília – UnB, pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e editor da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Por que o mundo não vive em paz? - Paulo Roberto de Almeida

De vez em quando uma coluna minha se perde nas brumas do tempo. Esta abaixo, por exemplo, tinha sido elaborada um ano atrás. Apenas agora sai publicada em dois veículos "paralelos".
Paulo Roberto de Almeida

Por que o mundo não vive em paz? Breve exame das razões possíveis
Paulo Roberto de Almeida
Dom Total, 05/05/2011
Via Política, 4/05/2011

Toda pessoa sensível e educada, toda sociedade próspera, todos os regimes democráticos aspiram à paz. E, no entanto, a humanidade tem conhecido a guerra por mais de nove décimos do tempo decorrido desde o estabelecimento das primeiras civilizações sedentárias (mas várias guerras foram conduzidas por sociedades nômades, como os hunos e os mongóis).

A razão parece ser simples: durante os mesmos nove décimos de história humana, as sociedades tem sido brutas, os homens pouco instruídos, a escassez uma regra mais constante do que a abundância, e poucos regimes poderiam legitimamente ser chamados de democráticos, no sentido lato do termo (isto é, prevendo eleições para os cidadãos, mesmo com representação limitada a certa elite, como na Grécia antiga ou nas repúblicas italianas do Renascimento).

É difícil traçar uma correlação unívoca, ou mecânica, entre progressos materiais, avanços democráticos domésticos e educação do povo; mas ela de fato existe, ainda que de forma não linear e não determinista. Algumas sociedades atrasadas são perfeitamente pacíficas, ao passo que democracias avançadas podem se lançar em guerras de conquista e em aventuras imperialistas.

Mas a própria existência de “leis da guerra”, no contexto contemporâneo, indica que a humanidade realizou imensos progressos desde os tempos em que a eliminação de prisioneiros de guerra e tratamentos cruéis eram a regra em sociedades que consideravam as guerras corriqueiras e inevitáveis.

Se existe alguma linearidade cronológica na “arte da guerra”, poderia ser esta: as guerras em sociedades antigas eram entre clãs e tribos rivais, geralmente pela busca de recursos escassos, aprovisionamento em escravos e outras necessidades urgentes da vida material, num contexto de equilíbrios instáveis pela sobrevivência física da comunidade; sociedades sedentárias, de base agrícola e mercantil, com alguma produção manufatureira, eram frequentemente objeto da cupidez de tribos de pastores guerreiros, formidáveis por suas táticas militares, atacando e fugindo rapidamente, levando com eles bens e mulheres, quando não, destruindo tudo que encontravam; sociedades mais estruturadas, com cidades vibrantes e grande comércio internacional passaram a contratar mercenários para a sua defesa, o que nem sempre dissuadiu príncipes mais ‘empreendedores’, capazes de comandar forças mais extensas, bem treinadas; daí se passou à constituição de exércitos nacionais, baseados no recrutamento obrigatório e contando com profissionais devotados unicamente às artes militares, no quadro de Estados unificados e tendencialmente conquistadores; sociedades industriais também souberam produzir guerras industriais, ou seja, alinhando soldados como operários numa fábrica, e destruindo não apenas exércitos, mas cidades inteiras; culturas sofisticadas não foram garantia contra tiranos belicosos, que lançaram seus povos em guerras genocidas, com um poder mortífero situado na casa dos milhões; finalmente, a arma atômica conteve o desejo de matar das grandes potências, mas incitou aventureiros e fanáticos a se lançarem na proliferação artesanal e nos ataques terroristas.

Talvez a linearidade cronológica esteja relativamente correta, mas não existe muito progresso moral desde o tempo das cavernas. Se houve algum avanço civilizatório, ele certamente se situa nos instrumentos de contenção dos instintos guerreiros dos homens, posto que os sentimentos primários continuam os mesmos de dez mil anos atrás: amor, ódio, cupidez, ambição de poder, perversões diversas que não dignificam a mensagem dos filósofos da paz, aqueles que pretendem que repúblicas constitucionais são mais propensas à paz perpétua. Pode ser, muito embora isso não tenha impedido o surgimento de tiranos ocasionais, animados de uma “vontade de poder” homicida.

Entretanto, uma vez construído um sistema político baseado no famoso conceito dos checks and balances, com uma divisão satisfatória e equilibrada entre os poderes, é mais difícil que apareçam, nesse tipo de sociedade, ditadores de opereta e caudilhos belicosos, como em certos países não muito distantes. Governos limitados constituem, certamente, uma melhor garantia de paz do que governos despóticos, e este parece ser um vínculo de causalidade facilmente inteligível na vida das nações.

Infelizmente, governos desse tipo constituíam uma ínfima minoria até poucas décadas atrás. Embora o número dos regimes democráticos venha aumentando de forma consistente em tempos recentes, o mundo ainda não é governado de maneira democrática, nem corre o risco de sê-lo no futuro previsível.

Mesmo a Carta das Nações Unidas, supostamente garantidora da paz e da segurança internacionais, baseia-se no princípio westfaliano da soberania absoluta dos Estados membros. Embora seu preâmbulo refira-se aos “povos das Nações Unidas”, todos os seus artigos e capítulos remetem aos Estados membros, que possuem, assim, preeminência sobre os direitos do homem e do cidadão.

Democracia e direitos humanos não são exatamente princípios organizadores da vida internacional; enquanto não o forem, não existe nenhuma garantia de que as guerras sejam apenas um registro do passado, e não uma possibilidade do presente.

O fato alentador, contudo, é que as guerras globais, típicas do ‘momento napoleônico’ que caracterizou o sistema internacional desde o final do século 18 até meados do século 20, parecem ter perdido o ímpeto, por uma combinação da dissuasão nuclear e a disseminação de regimes democráticos na maior parte do Ocidente desenvolvido.

Atualmente, as guerras mais prováveis – a despeito do cenário ainda tradicional dos conflitos no Oriente Médio, mas que justamente mobilizam Estados despóticos, de um lado, contra a única democracia existente na região – não são mais entre Estados, mas dentro dos Estados, ocorrendo em circunstâncias frequentemente associadas a Estados falidos, conflitos religiosos e enfrentamentos étnicos, geralmente envolvendo minorias oprimidas.

Não existe previsão capaz de antever o surgimento de democracias estáveis nesses cenários dominados pela desigualdade, pela pobreza, por regimes autoritários, desrespeitadores dos direitos humanos e das liberdades democráticas (reunião, expressão, religião, representação política e partidária etc.).

Talvez a aposta kantiana não esteja errada: ela só estava dois ou três séculos antes do tempo certo. Os progressos da humanidade são irritantemente lentos, infelizmente...

Paulo Roberto de Almeida é doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas (1984). Diplomata de carreira desde 1977, exerceu diversos cargos na Secretaria de Estado das Relações Exteriores e em embaixadas e delegações do Brasil no exterior. Trabalhou entre 2003 e 2007 como Assessor Especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Autor de vários trabalhos sobre relações internacionais e política externa do Brasil.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Guerra e paz no contexto internacional - Paulo R. Almeida

Paz e guerra no contexto internacional: um mundo pacífico ainda está longe
Paulo Roberto de Almeida
Via Política, 14.06.2010

A história da humanidade é, em grande medida, uma história de guerras, como ensina John Keegan em seus muitos livros de história militar. Guerras de conquista por territórios, recursos e escravos; guerras de defesa contra inimigos mais poderosos; impérios expansionistas (desde os mongóis, sobre a China, até a Alemanha e o Japão, no século 20); alianças militares (defensivas e ofensivas) e enormes gastos estatais com aparatos bélicos custosos; e, finalmente, uma tentativa de deslegitimar a guerra, no contexto do direito internacional.

Este é o cenário evolutivo – nem sempre para melhor – das sociedades humanas desde a mais remota antiguidade. Os ‘progressos’ da civilização também assistiram à expansão exponencial da capacidade de matar, como demonstrou ainda recentemente Niall Ferguson (em The War of the World).
(...)
Texto integral aqui.