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terça-feira, 21 de junho de 2022

Uma seleção das inteligências nacionais - Paulo Roberto de Almeida

 Uma seleção das inteligências nacionais  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Uma lista arbitrária da intelligentsia nacional

  

Intelligentsia, uma palavra russa para designar intelectuais, cobre geralmente a fração daquelas pessoas mais preparadas e capacitadas para serem estadistas, ou seja, os condutores da nação. Mas nem todos os estadistas são necessariamente inteligentes, no sentido intelectual do termo, e nem todos os intelectuais conseguem ser estadistas, ou líderes sagazes; alguns, tidos por intelectuais, são até muito limitados, e podem até causar malefícios à nação, ao orientá-la por maus caminhos, na economia, na política, na cultura, nas relações exteriores. 

Pensando na nossa intelligentsia, resolvi alinhar alguns nomes daqueles que eu considero verdadeiros estadistas, ou seja, inteligentes e capazes de liderar a nação, ainda que alguns não tenham tido essa oportunidade, por artes do destino.

Numa ordem não necessariamente definitiva, vou alinhar aqueles que eu considero verdadeiros estadistas, e que também são inteligentes, ao acaso da memória, do conhecimento, da história.

 

1) Hipólito José da Costa

2) San Tiago Dantas

3) Rui Barbosa 

4) Fernando Henrique Cardoso

5) José Guilherme Merquior

6) Monteiro Lobato

7) José da Silva Lisboa

8 Juscelino Kubitschek 

9) visconde do Rio Branco

10) Humberto de Alencar Castelo Branco

11) Roberto Campos

12) José Bonifácio de Andrada e Silva

13) Paulino José Soares de Souza

14) Ernesto Geisel (com restrições)

15) Eugenio Gudin

16) Josué de Castro

17) Anísio Teixeira 

18) Roberto Simonsen

19) Fernando de Azevedo

20) Irineu Evangelista de Souza

21) Oswaldo Aranha

22) Barão do Rio Branco 

23) Afonso Arinos de Melo Franco

24) Joaquim Nabuco

25) Machado de Assis

26) D. Pedro II

27) Barbosa Lima Sobrinho

28) Alberto da Costa e Silva

29) Darcy Ribeiro

30) Padre Antonio Vieira

31) Raymundo Faoro

32) Celso Furtado

33) Manoel Bonfim

34) Oliveira Lima

35) Sérgio Buarque de Holanda 

36) Alexandre de Gusmão 

37) Tom Jobim

38) Vinicius de Moraes

39) Cartola

40) Princesa Leopoldina

41) Rubens Ricupero 

(…)

 

Por certo, haveria muitos outros, mas vou parar por aqui, para não enveredar por justificativas que podem não ser consensuais.

Não me peçam para selecionar as antípodas dessa lista, os piores dentre os piores, pois já os tivemos e ainda temos, sendo que o pior nem preciso mencionar, pois não merece nenhuma classificação ou categoria. 

Vamos ficar com os melhores, os membros da intelligentsia que também foram, são, ou poderiam ser estadistas da nação. 

Vou me ocupar de cada um deles, para justificar minhas escolhas e duas dezenas deles já figuram no meu próximo livro: Construtores da Nação: projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior (sendo preparado para publicação). Até lá, e mais além, pois pretendo continuar.


P.S.: Recebi, pela via dos comentários à postagem, uma ou outra restrição – ao racismo de Monteiro Lobato, por exemplo –, e dezenas de novas sugestões, sobretudo de mulheres, que posto de forma não organizada aqui na sequência, ao mesmo tempo em que agradeço aos atentos leitores e gentis colaboradores com esta inteligência da intelligentsia nacional. Não endosso todos eles, no meu critério de inteligência com capacidade de liderança nacional, mas registro seus nomes, pelo fato de serem todos relevantes na cultura nacional e para a nação brasileira.

 

42) Mário Henrique Simonsen

43) Pedro Sampaio Malan

44) Tancredo Neves

45) Ulysses Guimarães

46) Ruth Cardoso

47) Joaquim Barbosa

48) Chico Mendes

49) Augusto Ruschi

50) José Mangabeira Unger

51) José Thomas de Araújo Filho

52) André Rebouças

53) Nise da Silveira

54) Elizeth Cardoso

55) Villa-Lobos

56) Mario Schemberg

57) João Guimarães Rosa

58) Oscar Niemeyer 

59) Mário de Andrade

60) Tarsila do Amaral

61) Candido Portinari

62) Di Cavalcanti

63) Glauber Rocha

64) Pelé

65) Marechal Rondon

66) Pedro I

67) Cacique Raoni

68) Emanuel Araújo

69) ?

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4179: 21 junho 2022, 2 p.


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Raymond Aron: uma influência decisiva em minha formação - Paulo Roberto de Almeida

Um trabalho que permaneceu inédito até aqui:  

Raymond Aron: uma influência decisiva em minha formação

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

Brasília, 18 de fevereiro de 2018

 [Objetivo: Respostas a consulta de professor da Faculdade de Educação da Unicamp, do Departamento de Ciências Sociais na Educação da UniCampfinalidadeinfluência de Raymond Aron no meu trabalho intelectual.]

 

 

1. Introdução: consulta sobre Raymond Aron

 

Este roteiro de questões diz respeito tanto à pesquisa de mestrado (...) sobre a influência do pensamento de Raymond Aron (1905-1983) na consolidação do pioneiro programa de Pós-graduação em Relações Internacionais na UnB na década de 1970 - que se encontra em andamento no Programa de Pós-graduação em Educação da Unicamp, quanto às pesquisas do orientador do estudo (...) centradas no pensamento político e sociológico de Aron.

A proposta de trabalho de mestrado (...) centra-se, de um lado, no exame do conjunto de teses e dissertações defendidas na UnB tendo como parâmetro o uso dos conceitos aronianos a partir das principais obras que dedicou às RI – Paz e Guerra entre as Nações (1962) e Pensar a Guerra: Clausewitz (1976) e, de outro, na influência mais ampla de seu pensamento no Brasil, em especial a partir de meados da década de 1970 -  culminando com sua visita ao país em um seminário promovido pela UnB em 1980.

Aron é sempre citado como exemplo de potência e coerência intelectual. A maneira pela qual sustentou posições liberais num contexto de franco alinhamento político e ideológico dos mais importantes intelectuais de sua época com o marxismo em suas diversas expressões (em especial na França) acabaram por inverter, após a sua morte em 1983, a máxima segundo a qual seria “preferível errar com Sartre a acertar com Aron”.

Autor de diversos interesses, Aron não fez escola em nenhuma das áreas a que se dedicou intelectualmente: nem o filósofo promissor que publicava, já em 1938, o opus Introduction à la philosophie de l’histoire, nem o sociólogo e analista político autor de livros monumentais e tampouco o influente teórico das RI. O maior legado de Aron, para além do conjunto de uma obra a um só tempo fragmentária e erudita (de alguém que também escreveu por 35 anos na imprensa francesa), parece ter sido o engajamento de uma vida em nome de valores inegociáveis.

No Brasil, a influência de seu pensamento ainda não foi devidamente mensurada ou estudada. O clássico As etapas do pensamento sociológico (1967) é adotado como livro base na maior parte dos cursos de introdução à sociologia, ao passo que a sua trilogia sobre a sociedade industrial, conjunto de aulas proferidas na Sorbonne da década de 1950 que foram publicadas na década subsequente, já não aparece com a mesma regularidade de outrora à guisa de leitura obrigatória para os estudantes brasileiros de ciências sociais. Via de regra, Aron é menos associado às obras que escreveu que aos posicionamentos políticos que em vida assumiu.

O primeiro contato de Aron com o Brasil ocorre da década de 1930, quando Júlio de Mesquita Filho o procura em Paris aparentemente interessado no estudo dos filósofos alemães. Daí floresceria uma amizade que resultaria na colaboração com O Estado de S. Paulo por quase duas décadas (268 artigos no total entre 1960 e 1980). A primeira visita de Aron ao Brasil ocorre em 1962, entre os dias 12 a 28 de setembro. Amplamente noticiada por diversos jornais brasileiros, a visita parece estar relacionada ao contexto político internacional, mais especificamente ao encontro do então presidente Goulart com Kennedy, nos Estados Unidos - mediado por Roberto Campos, que servia à época na embaixada em Washington. Neste período, Aron gozava de um período sabático em Harvard, no qual se dedicava à escrita de Paz e Guerra entre as Nações. Bem relacionado com as autoridades norte americanas e amigo pessoal do assessor da presidência americana Henry Kissinger (que também visita o Brasil no mesmo ano), Aron desembarca no Rio de Janeiro e, recepcionado pelo diplomata Francisco Lima e Silva, realiza diversas palestras e conferências em universidades e em órgãos públicos. 

A palestra proferida no Itamaraty tem como assunto o Mercado Comum Europeu, mesma pauta da conversa de Kissinger com Celso Furtado na Sudene e também de Goulart com Kennedy. O programa Aliança para o Progresso, lançado por Kennedy em 1961 com o propósito de supostamente desenvolver o progresso econômico da américa latina e refrear o avanço do comunismo, representa o pano de fundo para todas as ações deste cenário.

A segunda visita de Aron ao Brasil ocorre em 1980 como principal convidado do evento patrocinado pela UnB sob o título de “Encontros Internacionais”. Esses encontros ocorreram entre 1976 e 1984 e contaram com a participação de mais de cinquenta intelectuais de diversos países, entre eles Karl Deutsch, Henry Kissinger, Ernest Gelner, F. A. Hayek, Laszek Kolakowski, Maurice Duverger, Robert Dahl, Giovanni Sartori, Hélio Jaguaribe, Celso Lafer, Norberto Bobbio, Afonso Arinos, Gilberto Freyre entre outros.  As conferências realizadas por Aron no encontro, assim como as entrevistas aos jornais e os textos dos intelectuais convidados como debatedores foram reunidos no livro Raymond Aron na UnB: Conferência e comentário de um simpósio internacional realizado de 22 a 26 de setembro em 1980, publicado no mesmo ano pela editora da UnB. Após o compromisso em Brasília, Aron viaja a São Paulo onde, recepcionado pelo neto de Júlio de Mesquita, o então jovem jornalista Fernão Lara Mesquita, proferiu palestras no jornal O Estado de S. Paulo

Aron teve algumas de suas principais obras publicadas no Brasil pela coleção “Pensamento Político”, editada pela Editora da UnB na década de 1980 – O ópio dos intelectuais (1980), Estudos Políticos (1985), Paz e guerra entre as nações (1986) e Pensar a guerra, Clausewitz (1986) – com prefácios, respectivamente, de intelectuais ligados a ele por laços de amizade ou admiração intelectual: Roberto Campos, José Guilherme Merquior e Antonio Paim – este tanto para Paz e Guerra como para Clausewitz.

Tendo em vista o panorama brevemente descrito, as relações intelectuais e políticas de Aron pensadores brasileiros, bem como a influência que exerceu como pensador liberal nesse período, propomos algumas questões que serão trabalhadas nas pesquisas em andamento sobre Aron e a influência de seu pensamento no Brasil.

 

2. Respostas de Paulo Roberto de Almeida às questões recebidas:

 

I.       Como se deu o seu primeiro contato com Raymond Aron ou com a sua obra? Em quais circunstâncias?

 

PRA: Meu primeiro contato com a obra e o pensamento de Raymond Aron se deu ainda em meados dos anos 1960, jovem adolescente frequentando o “colegial” (ou seja, a segunda etapa do secundário, ou curso médio, depois do ginasial, no então chamado “clássico”, em contraposição ao “científico”, preparatório ao terceiro ciclo de estudos), mas já leitor de obras típicas dos cursos universitários em humanidades. Estudando de noite e trabalhando de dia, eu comprava o jornal “reacionário” O Estado de S. Paulo todos os fins de semana, especialmente aos domingos, interessado nos suplementos culturais do sábado, e nos grandes artigos internacionais do domingo. Minha atenção para os temas internacionais tinha sido despertada pouco tempo antes por uma palestra do cientista político e editorialista do Estadão Oliveiros da Silva Ferreira, feita ainda no ginásio (em 1964 ou 1965), sobre a crise dos foguetes soviéticos em Cuba e o contexto geral da Guerra Fria. A partir desse momento, passei a comprar o Estadão nas bancas, todo fim de semana, e passava as tardes lendo e estudando os grandes artigos traduzidos de grandes intelectuais internacionais. Entre eles se encontrava obviamente Raymond Aron, e ao que me lembre eram artigos traduzidos do semanário L’Express ou de outros periódicos publicados na França. Nessa época, eram poucas as revistas brasileiras sobre temas internacionais, e eu ignorava obviamente a existência da Revista Brasileira de Política Internacional, publicada no Rio de Janeiro desde 1958, mas que não circulava nos circuitos comerciais de varejo. Foi nas páginas do Estadão de domingo, portanto, que eu tomei contato, pela primeira vez, com os artigos eruditos de Raymond Aron e de Roberto Campos, duas leituras obrigatórias, ainda que com grandes restrições de caráter ideológico, uma vez que eu me considerava um aderente precoce da doutrina marxista, e portanto “inimigo” do pensamento de “direita” representado pelos dois intelectuais. Este foi o meu primeiro contato com as ideias “direitistas” de Raymond Aron, intelectual que nunca deixei de ler, mesmo tentando me contrapor, como também era o caso em relação a Roberto Campos, aos seus argumentos enquadrados no pensamento geopolítico da Guerra Fria, durante a qual eu mantinha um posicionamento anticapitalista, mesmo sem necessariamente aderir ao comunismo de tipo soviético, que sempre desprezei. 

 

II.     Em sua opinião, qual a influência do pensamento de Aron tendo em vista as temáticas intelectuais às quais ele se dedicou?

 

PRA: Posso dizer que essa influência foi enorme, mesmo a contragosto, se ouso dizer, uma vez que, numa primeira fase, o marxismo juvenil, de certo modo ingênuo, me levava a considerar que o lado correto era o do intelectual esquerdista Jean-Paul Sartre, não o de Raymond Aron, classificado entre os partidários da “direita”. Pouco antes de sair do Brasil, no final de 1970, em direção à Europa, eu já considerava indispensável ler suas obras, que conhecia de nome, mas que ainda não havia lido nem em francês – língua que eu dominava mal – nem em eventuais traduções em português, que ignorava existir. Sabia de seus livros resultantes das aulas na Sorbonne desde meados dos anos 1950, mas não tinha tido ainda oportunidade de ler.

Estimo que sua influência foi apenas parcialmente importante, no conjunto da academia até o final dos anos 1960, ou até mais além, uma vez que as humanidades no Brasil sempre estiveram bem mais vinculadas ao pensamento marxista do que às teses e argumentos “atlantistas” ou “liberais” de intelectuais como Raymond Aron ou, no caso, brasileiro, Roberto Campos, Eugênio Gudin, ou outros. Ainda se achava basicamente correta a postura de “estar errado com Jean-Paul Sartre, em lugar de acertar com Raymond Aron”, e 1968 era considerado um passo na direção correta, a de recusar a sociedade burguesa e construir uma sociedade solidária; esta não estava alinhada com as posturas do comunismo tradicional, mas sim com a Escola de Frankfurt, com Herbert Marcuse, com Wilhelm Reich e outros teóricos libertários. 

Na época “áurea” da Guerra Fria, Raymond Aron estava estritamente alinhado com os esquemas atlantistas da OTAN e dos EUA, então envolvidos na guerra do Vietnã, e portanto condenados por toda a esquerda mundial, da qual, uma parte pelo menos apoiava a “revolução cultural” da China de Mao, considerada uma etapa superior de construção do comunismo, acima do burocratismo do sistema soviético. Nesse contexto, Aron era cultivado apenas num pequeno circulo de iniciados, uma vez que a maior parte dos acadêmicos se alinhava com as posições “progressistas” da esquerda ocidental. 

 

III.   Aron ainda pode ser considerado, em termos intelectuais, autor atual e influente?

 

PRA: Absolutamente: todas as suas obras, sejam as de filosofia da história, ou as de sociologia industrial, e ainda as de geopolítica no contexto das doutrinas realistas, são pertinentes e indispensáveis a um debate intelectual da mais alta qualidade sobre os problemas sociais, políticos e geopolíticos das sociedades contemporâneas, mesmo no pós-Guerra Fria, uma vez que as características e tendências fundamentais da geopolítica mundial, e das sociedades industriais permanecem válidas mesmo após o declínio irresistível dos projetos socialistas de cunho marxista-leninista. Aron preserva uma lucidez impressionante em relação ao simples debate entre liberais e socialistas de cunho reformista (lassalianos, fabianos, ou seja II Internacional), e mantém coerência em relação às escolhas fundamentais que devem ser feitas no plano interno (democracia de mercado) e no contexto internacional (defesa dos valores ocidentais, contra propostas autoritárias de ordenamento político e social). 

 

IV.    Quando aluno, Aron aparecia como bibliografia nos cursos de graduação e/ou pós-graduação que você frequentou? Como professor, você utiliza ou utilizou obras de Aron como bibliografia em cursos de graduação e/ou pós-graduação? Nos dois casos, quais obras?

 

PRA: Frequentando cursos de Ciências Sociais no Brasil (USP) e no exterior (ULB, em Bruxelas), não me lembro de ter sido recomendado expressamente a ler Raymond Aron, mas como ele era um referência indispensável nos debates políticos da época, fui levado a buscar voluntariamente seus livros sobre a sociedade industrial, e seus debates com os intelectuais marxistas. Nessa época, início dos anos 1970, ainda procurava me alinhar mais com os autores marxistas (sobretudo da Europa ocidental), mas nunca deixei de ler Raymond Aron, como o contraponto necessário aos argumentos dessa linha. Junto com Aron, lia Karl Popper e outros “liberais”, embora tendesse a aderir bem mais às teses anticapitalistas dos socialistas franceses e ingleses, tipo Nikos Poulantzas, Christopher Hill, Perry Anderson e outros. Aron era o antagonista preferido de toda essa tropa de marxistas acadêmicos, aos quais eu aderia residualmente, sem deixar de me referir a Aron (ou Alain Peyrefitte, por exemplo) em sua contestação às principais teses dos esquerdistas. Aos poucos, Aron deixou de ser o “inimigo ideológico” para se converter no “adversário político”, mais adiante convertido em “interlocutor indispensável”, nas reflexões sobre as vias abertas às sociedades do Ocidente e as do Terceiro Mundo.

 

V.      Durante sua segunda visita ao Brasil, em 1980, Aron foi a figura central do simpósio “Raymond Aron na UnB”. Em relação ao homenageado, em sua opinião e tendo em vista o contexto da época, quais as principais motivações para o convite? Em que medida, tais motivações teriam estado ligadas ao contexto político nacional (início do processo de redemocratização) e ao contexto internacional, ainda marcado pela tensão bipolar entre os EUA e a URSS - para além das questões propriamente intelectuais?

 

PRA: Nessa fase, início dos anos 1980, eu já tinha ingressado na carreira diplomática (desde 1977) e me encontrava em postos no exterior, de 1979 a 1984, entre Berna e Belgrado, e tinha retomado minha tese de doutoramento em sociologia política, iniciada em 1976, mas interrompida em 1977 na volta ao Brasil. Posso dizer que Aron foi decisivo no plano puramente bibliográfico, pois passei todos esses anos lendo uma enorme bibliografia em história e sociologia, para completar uma tese sobre as revoluções burguesas, mas num sentido totalmente contrário ao que tinha quando fiz o projeto e iniciei os trabalhos entre 1976 e 1977. Não só Aron, mas Weber, Fernand Braudel, Barrington Moore Jr., Albert Hirschman, os revisionistas históricos sobre as revoluções burguesas, influenciaram minha conversão do marxismo acadêmico a uma análise mais realista dos processos políticos e sociais que levaram as sociedades do Ocidente moderno a sistemas políticos pluralistas e abertos. Aron, entre vários outros, foi essencial nessa revisão interpretativa sobre a natureza do poder político e suas relações com a base social e econômica no processo de modernização contemporânea.

Não tomei conhecimento da vinda de Raymond Aron ao Brasil senão depois de 1985, ao retomar ao Brasil e começar a dar aulas na UnB e no Instituto Rio Branco (a academia diplomática do Itamaraty) de sociologia política, exatamente. Aron era, não preciso dizer, uma referência indispensável, junto com Weber, Marx e outros teóricos, na construção das aulas e nas reflexões sobre nossa transição democrática pós-regime militar. Foi nesse momento que abandonei completamente os esquemas marxistas de reflexão em favor de uma visão mais eclética, inevitavelmente influenciada por intelectuais como Raymond Aron.

 

VI.    Também à época de sua segunda visita, a Editora da UnB traduziu e publicou a principal obra de Aron dedicada ao tema das relações internacionais, Paz e Guerra entre as nações, além de diversos outros títulos de autores tidos como conservadores ou liberais. Em sua opinião, qual a importância deste esforço editorial tendo em vista o ambiente intelectual brasileiro da época?

 

PRA: O esforço empreendido no âmbito da UnB, sobretudo por um dos integrantes do Conselho Editorial da Editora da UnB, o diplomata Carlos Henrique Cardim, foi absolutamente magnífico, no sentido de trazer ao Brasil as mais importantes obras do pensamento político e de relações internacionais, até então inacessíveis ao público local, em especial os cientistas sociais brasileiros. Simplesmente não se tinha acesso a essas obras, a não ser trazidas do exterior pelos próprios acadêmicos que estudavam fora, mas os estudantes estavam praticamente excluídos desse universo. De repente, no espaço de poucos anos – primeira metade dos anos 1980 – todas essas obras ficaram disponíveis, com traduções de qualidade, feitas por diplomatas e professores. Se quisermos mensurar esse aporte em termos de PIB intelectual, pode-se dizer que a riqueza intelectual trazida por essas edições situou-se na faixa de 10 a 20% de acréscimos bibliográficos, senão mais. Mas não só as edições: a própria presença de eminentes intelectuais trazidos para debates pessoais com acadêmicos brasileiros representou um empreendimento intelectual até hoje inigualado nas proporções que essas iniciativas da UnB representaram à época e nos anos subsequentes. A série “[Fulano] na UnB” ofereceu uma apresentação sintética do pensamento de cada um dos intelectuais trazidos ao Brasil, que pode ser considerada inédita no plano mundial, uma vez que não existe depoimentos do gênero dos que foram feitos na UnB nas edições estrangeiras.

 

VII.  O livro ‘Paz e Guerra entre as nações’ foi adotado pelo MEC como leitura obrigatória nos cursos de graduação em relações internacionais a partir dos anos 2000. Como você avalia a influência desta obra em particular para o campo das RI? Aron pode ser considerado um autor original ou influente a partir das reflexões contidas no livro?

 

PRA: Os poucos geopolíticos existentes no Brasil, mas muitos outros professores de relações internacionais, são obrigados a recorrer ao pensamento de Aron, pois ele é incontornável no debate a respeito das grandes questões da guerra e da paz no plano mundial. A bibliografia necessariamente parte de Morgenthau e vai diretamente a Aron, como referência indispensável na discussão da temática geopolítica. O seu realismo “frio”, construído a partir de uma potência de primeiro plano, mas diminuída depois dos conflitos napoleônicos (clausewitzianos) e sobretudo com a ascensão da Alemanha, oferece um contraponto necessário à bipolaridade da era nuclear capitaneada pelos EUA e pela União Soviética. Nesse contexto bipolar, a França foi a nação que escolheu ter uma defesa própria, independente do campo ocidental, e com isso representa um tipo de soberanismo geopolítico talvez adequado a um país como o Brasil, também cioso de sua autonomia em relação aos blocos então existentes.

 

VIII.       Ainda no campo dos estudos das relações internacionais, Aron alinha-se à tradição dos pensadores realistas. Poderíamos vislumbrar afinidades eletivas entre o pensamento reinante no Itamaraty, cuja origem remete a Paulino Soares de Sousa, o Visconde de Uruguai - leitor sistemático de Tocqueville, e as posições liberais que Aron sustentou ao longo do século XX?

 

PRA: Aron era o que eu chamo de “realista flexível”, ou seja, consciente de que o equilíbrio entre grandes potências e potências médias, ainda que fortes (como a França), não poderia ser estudado e considerado apenas com base em premissas teóricas, mas sobretudo com base num itinerário específico no plano das experiências concretas. Essa era, também, a perspectiva de Tocqueville, que estudou os Estados Unidos em sua dimensão própria, ainda que contrapondo suas estruturas políticas e sociais às de sua França e Europa aristocráticas – ainda que transformadas, ambas, pelas grandes rupturas da revolução e da era napoleônica – e podia assim fazer uma análise original da formação política e social americana, apontando-a como o futuro da Europa igualmente (no que estava enganado). Aron tinha plena consciência do quantum de liberdade que os homens e as sociedades dispõem para determinar o seu futuro, e não alimentava nenhum determinismo fatalístico quanto a isso. Sua compreensão da doutrina marxista, e também da weberiana, o habilitava a distinguir os imponderáveis da história.

Nisso, ele foi totalmente distinto dos demais intelectuais franceses (ou de quaisquer outros países) de gabinete, pois temperava suas leituras dos clássicos e contemporâneos com uma reflexão original sobre os itinerários concretos das sociedades. Importante nessa originalidade teórico-prática foi a sua estada na Alemanha no início dos anos 1930, quando assistiu à ascensão do nazismo, constatando a deriva de algumas sociedades para o populismo, a demagogia, o autoritarismo e outras falácias e tragédias, o que o colocou à frente de todos os demais intelectuais puramente acadêmicos. Sua estada em Londres, durante a guerra, também foi importante ao dar uma dimensão eclética ao seu pensamento, absolutamente original no contexto francês. 

Não estou habilitado a avaliar, por não conhecer, essa influência de Tocqueville nas concepções do grande diplomata que foi Paulino Soares de Souza, certamente um dos maiores diplomatas do Império, junto com Miguel da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco. Todos eles foram realistas flexíveis, podendo ser considerados, nesse sentido, “aronianos avant la lettre”, como também o foi o filho do Visconde, o Barão do Rio Branco, menos doutrinário do que Rui Barbosa, por exemplo. Nenhum deles têm sucessores claros no século XX, a não ser parcialmente: Oswaldo Aranha, um realista sem qualquer elaboração doutrinal (a não ser um estrategista instintivo), San Tiago Dantas, um pensador original, infelizmente desaparecido precocemente, e talvez Roberto Campos, um realista da tecnocracia planejadora antes de se converter em um liberal pragmático; pode-se agregar o nome de José Guilherme Merquior, mas este bem mais no terreno teórico do que prático. Todos eles passaram a integrar plenamente minhas reflexões de natureza política, econômica e geopolítica, e meus escritos.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 18 de fevereiro de 2018

 

domingo, 6 de abril de 2014

A esquerda e o regime militar: mamando nas tetas do Estado - Olavo de Carvalho

Sem concordar com tudo o que diz este autor, acho que ele está certo no essencial.
O Brasil NUNCA teve um regime totalitário, ou ditatorial, no máximo autoritário, e isso apenas para certas coisas, e certamente não para todas.
Na academia, por exemplo, e eu sou um membro dela, nunca deixou de haver hegemonia intelectual absoluta da esquerda, especialmente nas chamadas humanidades, onde ela é praticamente total, até o ponto da mediocridade mais completa ser admitida, apenas porque é de esquerda, não por que seja competente ou que merece estar ali.
O Brasil é um país de esquerda no pensamento, e deve ser essa a razão do nosso atraso.
Paulo Roberto de Almeida

Relembrando o irrelembrável
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 14 de abril de 2008

O general e historiador comunista Nelson Werneck Sodré, descrevendo no seu livro A Fúria de Calibã os horrores apocalípticos da perseguição a intelectuais logo após o golpe de 1964, que ele não hesita em nivelar ao que sucedeu na Alemanha de Hitler, acaba se traindo ao relatar que, naquele mesmo período, publicou não sei quantos livros, teve não sei quantas críticas favoráveis, algumas entusiásticas, foi brindado com alguns prêmios literários e no fim ainda recebeu uma homenagem no Instituto Brasileiro de História Militar, em cerimônia realizada na presença... do presidente da República, marechal Humberto Castelo Branco.
Jamais um historiador consentiu em personificar tão escandalosamente um exemplum in contrarium da sua descrição geral dos fatos. É o esplendor da paralaxe cognitiva realçado por uma efusão de histrionismo macunaímico. Já imaginaram Fidel Castro prestando homenagem a um historiador anticomunista? Ou Hitler indo à Academia de Berlim para conceder honrarias universitárias a um cientista social anti-racista?
Nada mais ridículo do que a tentativa de pintar o regime de 1964 como uma ditadura totalitária, empenhada em sufocar o trabalho da inteligência em geral e o dos intelectuais esquerdistas em especial.
Na verdade, um breve exame dos anuários da Câmara Brasileira do Livro, como já apontou com mira certeira o embaixador J. O. de Meira Penna, basta para mostrar que nunca a indústria editorial esquerdista prosperou tanto como naquele tempo, tanto em volume de livros publicados quanto na absorção de generosas verbas governamentais distribuídas de maneira exemplarmente – ou ingenuamente -- apolítica. Pouco antes de morrer, o saudoso Ênio Silveira, dono da maior editora comunista do país, a Civilização Brasileira, me confessou que sua empresa jamais teria chegado ilesa ao fim da década de 80 sem os subsídios que ele próprio ia esmolar pessoalmente nas altas esferas de um governo federal alegadamente empenhado – segundo hoje se ensina em todas as escolas -- em esmagar no berço toda manifestação do pensamento esquerdista.
A demissão de umas dúzias de professores esquerdistas no começo do regime não os impediu de ensinar, nem de publicar livros, nem de escrever em jornais -- só os privou de receber dinheiro público para fazer propaganda comunista. Se isso lhes doeu tanto, não foi porque sua exclusão da universidade oficial trouxesse algum dano substantivo à cultura brasileira (sob esse aspecto ela trouxe até algum benefício): foi porque o dinheiro público é o alimento essencial da elite esquerdista, a qual, como se confirmou abundantemente depois da sua ascensão ao poder, se acha credenciada por uma espécie de direito natural a consumi-lo em quantidades ilimitadas, sem ter de prestar contas e, a exemplo do MST, sem precisar nem mesmo assinar recibo.
As vítimas dessa odiosa essa privação alimentar, que foram aliás pouquíssimas, sobretudo em comparação com o número de intelectuais cubanos exilados, não sofreram nenhum entrave sério ao exercício das atividades culturais na iniciativa privada, onde, ao contrário, os empreendimentos esquerdistas proliferaram como nunca, entre outras razões pela ajuda milionária que começaram a receber de fundações estrangeiras, também sem nunca ter de prestar contas. Foi também durante os governos militares que os intelectuais e artistas de esquerda, pondo em prática os ensinamentos de Antonio Gramsci, trataram de abocanhar todos os espaços nas universidades, nas instituições culturais e na indústria editorial, desalojando um a um os conservadores que, quando veio a redemocratização, já estavam tão marginalizados e isolados que a eleição de Roberto Campos para a Academia Brasileira, em 1999, surgiu como uma anomalia escandalosa e quase inacreditável.
No domínio do jornalismo, só forçando muito a realidade os esquerdistas se poderiam queixar de perseguição, de vez que o órgão mais visado pela censura foi justamente o mais conservador de todos, O Estado de S. Paulo , enquanto os semanários esquerdistas superlotavam as bancas e sofriam incomodidades, é certo, mas nem de longe comparáveis à pressão contínua que o governo impunha ao jornal dos Mesquita (não venham com conversa para cima de mim, porque eu trabalhava lá nessa época e vi tudo de perto). A simples contagem de cabeças basta para mostrar que o relativo pluralismo existente nas redações em 1964 foi cedendo lugar à hegemonia esquerdista mais descarada, até o ponto de que, dos anos 80 em diante, os grandes jornais fizeram questão de ter pelo menos um direitista no seu corpo de articulistas para atenuar a impressão de uniformidade ideológica que fluía de cada uma de suas páginas, do noticiário policial até as colunas sociais, mas sobretudo das seções de arte e cultura, onde uma hegemonia se somava a outra. Coube a Paulo Francis, a Roberto Campos e depois a mim representar o papel dessas exceções que confirmavam a regra. Nos regimes totalitários, a opinião da mídia, por definição e por uma questão de mera sobrevivência, vai se amoldando cada vez mais ao discurso oficial, até desaparecer toda possibilidade de oposição. A história do jornalismo brasileiro nos vinte anos de governo militar seguiu o curso simetricamente inverso, com a mídia em peso apoiando o golpe em 31 de março de 1964 e depois tornando-se cada vez mais esquerdista até que, no fim do governo Figueiredo, já não sobrava nos jornais e canais de TV um só jornalista que ousasse se opor ao consenso esquerdista e mencionar em voz alta, mesmo com restrições, os méritos mais óbvios de um regime que alcançara progressos econômicos jamais igualados antes ou depois (a expressão “nunca nêfte paíf...” é um salto anacronístico de trinta anos).
Seja nos órgãos de educação e cultura, seja no jornalismo, a esquerda, em vez de ser calada e marginalizada, foi indo cada vez mais para o topo e falando cada vez mais alto, até que já não se podia ouvir nenhuma outra voz senão a sua: se tagarelice esquerdista fosse alta cultura, o tempo dos militares teria sido o apogeu da nossa história intelectual até então (digo “até então” porque nada se compara ao brilho e à majestade da Era Lula). Mas, como é difícil fazer-se de intelectual excluído e ao mesmo tempo imperar sobre a cultura de um país ao ponto de poder decidir quem entra e quem sai, a intelligentzia esquerdista se atrapalha um pouco na narrativa daquele período, ora chamando-o de “anos de chumbo”, ora de “anos dourados”. Talvez não seja confusão, é claro, apenas uma natural alternância estilística, conforme essa coletividade de pessoas exemplares deseje acentuar como tudo em volta era feio ou como ela própria era bela. A língua pérfida de Daniel Más dizia que a segunda dessas expressões se referia, na verdade, aos pacotinhos dourados em que a cocaína era entregue, na pérgola do Copacabana Palace, às estrelas das letras e das artes que ali se dedicavam mais altos afazeres intelectuais de que se tem notícia. Caso esta versão seja fidedigna, ela não suprime a anterior, antes a reforça metonimicamente, designando pela cor da embalagem o efeito do estupefaciente que induzia aquelas criaturas a imaginar que brilhavam como ouro sob um céu de chumbo.
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Tive meus arranca-rabos com o general Andrade Nery e os teria de novo pelas mesmíssimas razões, mas não posso deixar de cumprimentá-lo por sua reação viril à tentativa de usar as Forças Armadas numa operação tão vexatória como a retirada dos agricultores brasileiros para dar lugar a uma “nação indígena”. Falando pelos companheiros de farda aos quais o código disciplinar impõe um mutismo indignado, o general disse o que todos os militares brasileiros gostariam de dizer: as Forças Armadas existem para defender o Brasil, não para destrui-lo sob pretextos politicamente corretos. Espero que a ocasião sirva para alertar o general quanto à verdadeira origem das pressões globalistas que ameaçam o futuro deste país, origem sobre a qual eu não poderia ser mais claro nem mais concludente do que fui nos meus antigos das últimas semanas.