por Gabriel Heller
O turbilhão de informações precariamente aprofundadas e analisadas que se despeja atualmente sobre os cidadãos obscurece a história da imprensa e parte de suas funções. Mais do que apenas transmitir as novidades oportunamente sob vestes de uma mal simulada imparcialidade, a imprensa teve, factual e idealmente, uma atribuição formativa, no sentido de fornecimento de subsídios para a construção de uma opinião pública consciente que não fosse apenas a versão das massas da opinião publicada.
Foi este o jornalismo praticado por Hipólito José da Costa no Correio Braziliense, periódico cuja duração acompanhou a do processo de independência brasileiro, que teve seu marco inicial em 1808, com a vinda da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, e seu termo formal em 1822, com a declaração de independência propriamente dita. Considerado o primeiro periódico brasileiro, publicado diretamente para os habitantes destas terras, foi integralmente editado por Hipólito em Londres, onde não sofreria com ataques à liberdade de imprensa.
Como deixou claro na primeira edição do Correio, o publisherpretendia tirar “das trevas, ou da ilusão, aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano”; mas não pretendia fazê-lo apenas jogando uma enxurrada de novidades – o que seria inútil, dada a distância e, consequentemente, o tempo que seu jornal levava para chegar ao Brasil: desejava “mostrar, com evidência, os acontecimentos do presente e desenvolver as sombras do futuro”, representar “os fatos do momento, as reflexões sobre o passado e as sólidas conjecturas sobre o futuro”.
Aqueles que se debruçaram sobre os volumes do Correio divergem sobre o momento em que Hipólito passou a advogar pela independência brasileira. De todo modo, a leitura de suas análises sobre a Revolução do Porto, entre 1820 1822, permite a conclusão de que o editor, até quando foi possível, rejeitou todo sinal de retorno do país ao status colonial e defendeu a manutenção da união entre Brasil e Portugal. Exatamente como prometeu em sua primeira edição, o Correio Braziliense abasteceu os brasileiros com os fatos que tinham lugar em Portugal, analisados com olhos no passado a partir da premissa de que seria “fácil prever as coisas do futuro pelo conhecimento da História e aplicar os mesmos remédios dos antigos, quando se achem expressos, ou inventar outros análogos às circunstâncias”.
Fugindo de Napoleão com escolta dos ingleses, a Coroa e sua corte chegaram ao Brasil em 1808, deixando os portugueses sob a tutela da Inglaterra e, a seguir, sob um governo marcado por privilégios, corrupção e descaso para com o povo. De grande Metrópole, Portugal passara em 1815 à condição de simples membro de um Reino Unido com Brasil e Algarves, sequer lhe cabendo a posição de sede da monarquia. Em 1820, em meio ao sopro liberal e constitucionalista que se espalhava pela Europa e pelas Américas, os lusitanos disseram “basta” a essa condição e exigiram, além da convocação de Cortes – corpo legislativo – para a elaboração de uma Constituição, o imediato retorno de Dom João VI a Lisboa.
Assistindo a tudo de Londres, mas escrevendo como se estivesse, ao mesmo tempo, também no Porto, em Lisboa e no Rio de Janeiro, Hipólito fornece a seus leitores narrativa precisa dos fatos, transcrição de documentos e análises que marcam sua posição sem desfaçatez ou mensagens implícitas. As edições do Correio que se seguem justificam a afirmação de Barbosa Lima Sobrinho de que o publisher se mostrava “um jornalista que é, acima de tudo, um político de extraordinária visão”. Nessa perspectiva, os comentários de Hipólito oferecem inúmeras lições de ciência política e administração pública.
A Revolução do Porto tinha como objetivo imediato a convocação das Cortes, que assumiriam as atribuições do que chamaríamos hoje de Assembleia Constituinte. Desde o princípio, assim, pairou a discussão acerca do espaço que teria o Brasil nesse colegiado, eis que a antiga colônia, então parte do Reino Unido, seria inevitavelmente afetada pelo desenlace da rebelião lusa. Ao tratar do tema logo após a eclosão da revolta, Hipólito destacava os problemas que adviriam da instituição de formas representativas de governo no Brasil, pela falta de “fundamentos” e de “instrução” de nosso povo; a exemplo da América Espanhola, a falta de homens capazes de formar governos organizados em terras nas quais todos se supunham políticos, mas desconheciam o funcionamento dos negócios públicos, só poderia gerar “confusão e calamidades”. Advogava, nesse sentido, pela adoção de “instituições constitucionais moderadas, adaptadas ao estado de civilização e instrução do país”.
Defensor da união entre Brasil e Portugal em nome da integridade da monarquia, o Correio passou meses a alertar que o estabelecimento de instituições distintas nos dois territórios e a tentativa de resgatar a sujeição da ex-colônia não poderiam ter outro resultado que não a cisão; a diversidade de instituições políticas, advertiu, induz a diversidade de caráter, de interesses e de máximas. Em várias edições, retomou-se a relação entre os costumes e as instituições, para destacar que governantes que não agem para adequar os sistemas políticos à realidade dos representados incorrem em omissão que, cedo ou tarde, levará a uma indesejável subversão da ordem.
Da mesma forma, as técnicas diversionistas e a recusa dos donos do poder em reconhecer os fatos, os costumes e os interesses dos indivíduos são vistas como fonte das rebeliões, porque levam a perder de vista as verdadeiras origens da insatisfação popular, e, se não se chega a um diagnóstico correto, de forma alguma se indicará o remédio apropriado. Aceitando que a Revolução do Porto tivesse sido necessária para estancar a sangria que o desgoverno gerava em Portugal, Hipólito confortava-se pela ausência de conflitos violentos. Inquietava-se, contudo, com a imprevisibilidade inexorável à sublevação, clamando a todo momento que “el-rei” tomasse para si a causa dos revoltosos e promovesse, institucional e ordeiramente, as reformas de que o país tanto carecia.
O Correio chamava a atenção também para o fato de que os deputados só seguiriam o caminho desejado pelos eleitores se as discussões fossem efetivamente públicas e se a imprensa fosse realmente livre. Nesse caminho, repreendeu a promulgação de uma lei sobre liberdade de imprensa que “se deveria denominar ‘lei para restringir a liberdade da imprensa’.” Quando as Cortes finalmente estabeleceram as Bases da Constituição, deveras analíticas para meras “bases”, o publisher ressaltou as dificuldades que adviriam pelo fato de se definir uma série de questões substantivas sem que se definissem a divisão de poderes e as garantias para proteger os princípios fundamentais que se estabeleciam. Antecipando uma preocupação que só seria bem equacionada com o desenvolvimento do controle judicial de constitucionalidade, Hipólito pondera a inutilidade de se declarar na Constituição a liberdade para fazer tudo o que a lei não proíbe, se essa mesma Constituição não trouxer “coisa alguma que se destine a coarctar o Poder Legislativo”, isto é, para impedir a edição de normas contrárias à Lei Fundamental.
A evolução dos trabalhos das Cortes demonstrou o acerto dos temores de Hipólito da Costa, uma vez que a postura dos constituintes portugueses não pôde dissimular a desconsideração pelas necessidades e pelos anseios do Brasil e de seus habitantes, que, àquela altura, não aceitariam rebaixamento na condição de “reino irmão”. Já em 1822, o jornalista sucumbiu aos fatos e reconheceu: “enganamo-nos em nossas esperanças: as Cortes precipitaram o Brasil, rompendo com ele sem necessidade”.
Consciente ou inconscientemente, o próprio Hipólito participou decisivamente da separação que por anos renegou: abastecendo os brasileiros com informações e análises claras, precisas e lúcidas sobre o que se passava em Portugal e o que pretendiam os portugueses em relação ao Brasil, o Correio Braziliense inspirou e forneceu ânimo e fundamentos para a independência que não tardaria. Na feliz construção de Barbosa Lima Sobrinho, resume-se a contribuição do Correio – e, inadvertidamente, o que se deveria esperar de qualquer meio de imprensa: “a lealdade com que discute os assuntos, menos para confundir do que para cooperar, como se fosse o dono de uma balsa a oferecer os seus serviços para a travessia dos rios caudalosos, sem outro interesse do que o de proporcionar a travessia”.
Bibliografia em ordem de citação
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COSTA, Hipólito José da. Fim do Primeiro Ato na Revolução Portuguesa. Correio Braziliense, Londres, vol. XXVI, maio de 1821. In: PAULA, Sergio Goes de (org.). Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 194.
LIMA SOBRINHO, Barbosa. Antologia do Correio Braziliense. Rio de Janeiro: Cátedra, 1977.
COSTA, Hipólito José da. Revolução do Porto. Correio Braziliense, Londres, vol. XXV, setembro de 1820. In: PAULA, Sergio Goes de (org.). Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 65.
COSTA, Hipólito José da. Procedimentos das Cortes em Portugal. Correio Braziliense, Londres, vol. XXVI, abril de 1821. In: PAULA, Sergio Goes de (org.). Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 184/185.
COSTA, Hipólito José da. Procedimentos do Brasil (Em Portugal não se deseja a união do Brasil, mas só a sua abjeta sujeição). Correio Braziliense, Londres, vol. XXIX, julho de 1822. In: LIMA SOBRINHO, Barbosa (org.). Antologia do Correio Braziliense. Rio de Janeiro: Cátedra, 1977, p. 495.
LIMA SOBRINHO, Barbosa. Antologia do Correio Braziliense. Rio de Janeiro: Cátedra, 1977.