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domingo, 18 de setembro de 2022

Relação de trabalhos sobre diplomacia e independência do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

 Relação de trabalhos sobre diplomacia e independência do Brasil

Paulo Roberto de Almeida

  

A partir de agosto de 2021 até setembro de 2022 

 

3954. “Hipólito da Costa, a censura e a independência do Brasil”, Brasília, 1 agosto 2021, 16 p. Introdução ao livro de José Theodoro Mascarenhas Menck: Hipólito José da Costa, o Correio Braziliense e as Cortes de Lisboa de 1821: a Imprensa no processo de independência do Brasil; Obra Comemorativa dos Duzentos Anos da Imprensa Brasileira e sua Contribuição ao Processo da Independência do Brasil na coleção do Bicentenário da CD. Publicado in: José Theodoro Mascarenhas Menck: A imprensa no processo de Independência do Brasil (Brasília: Câmara dos Deputados, 2022, 228 p.; p. 19-41; ISBNs: Papel: 978-65-87317-75-5; E-book: 978-65-87317-76-2; Prefácio: Helena Chagas; Introdução: Paulo Roberto de Almeida; Posfácio: Enrico Misasi. Relação de Publicados n. 1433.

 

3963. “A revolução liberal de 1820 como precursora da independência do Brasil: o papel do Correio Braziliense de Hipólito da Costa”, Brasília, 26 agosto 2021, 15 p. Paper apresentado como colaboração ao Congresso Internacional sobre a Revolução de 1820. Painel temático: As revoluções na América do Sul; disponível no blog Diplomatizzando(13/10/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/10/a-revolucao-liberal-de-1820-como.html) e na plataforma Academia.edu (links: https://www.academia.edu/57571213/Revol_Porto_Independ_Brasil e https://www.academia.edu/57571213/3963_A_revolução_liberal_de_1820_como_precursora_da_independência_do_Brasil_o_papel_do_Correio_Braziliense_de_Hipólito_da_Costa_2021_).

 

4000. “Mini-macro história sobre o país que um dia foi do futuro”, Brasília, 19 outubro 2021, 2 p. Comentários, em estilo de clássico revisitado, sobre nossos fracassos ao longo de 200 anos de independência. Divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/10/mini-macro-historia-sobre-o-pais-que-um.html).

 

4018. “A diplomacia brasileira da independência: heranças e permanências”, Brasília, 15 novembro 2021, 26 p. Ensaio preparado especialmente para Aula Magna na Universidade Federal Fluminense (dia 29/11, de 9 a 11h), a convite do Prof. Danilo Sorato. Anunciado antecipadamente no blog Diplomatizzando (16/11/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/11/a-diplomacia-brasileira-da.html). Preparada apresentação em Power Point, em 24/11/2021, sob n. 4023. Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/62641768/4018_A_diplomacia_brasileira_da_independencia_heranças_e_permanencias_2021_), anunciado no blog Diplomatizzando (28/11/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/11/a-diplomacia-brasileira-da_28.html). Disponibilizado também para o webinar do IHG-DF, com Carlos Henrique Cardim e José Theodoro Menck, dia 17/12/2021, 16hs.

 

4023. A diplomacia brasileira da independência: Apresentação”, Brasília, 24 novembro 2021, 30 slides. Apresentação em formato de PowerPoint, seguindo de forma flexível o trabalho n. 4018, preparada para Aula Magna na Universidade Federal Fluminense (dia 29/11, de 9 a 11h), a convite do Prof. Danilo Sorato. Divulgados, texto e apresentação, na plataforma Academia.edu (links: https://www.academia.edu/62641768/4018_A_diplomacia_brasileira_da_independencia_heranças_e_permanencias_2021_https://www.academia.edu/62644789/4023_A_diplomacia_brasileira_da_independencia_Apresentacao_2021_) e divulgado no blog Diplomatizzando (28/11/2021, link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/11/a-diplomacia-brasileira-da_28.html). 

 

4081. “Trabalhos de Paulo Roberto de Almeida sobre a independência do Brasil e a evolução histórica da nação brasileira”, Brasília, 14 fevereiro 2022, 11 p. Lista de todos os meus trabalhos que guardam conexão com a história da independência do Brasil, feita com base na lista geral de trabalhos, em ordem cronológica inversa, ou seja, mais recentes na frente. Para aproveitamento de trabalhos inéditos e preparação de um livro sobre a história do Brasil, especificamente sobre a independência e os 200 anos de história que se seguiram. Feita versão reduzida, sem links, para divulgação. Disponibilizado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/71427797/Trabalhos_sobre_a_independencia_do_Brasil_e_a_evolucao_historica_da_nacao_brasileira_2022_).

 

4228. “Bicentenário da Independência: os fundadores do Estado”, Brasília, 3 setembro 2022, 3 p. Notas para palestra em seminário do IAB, em 5/09/2022, 10:30hs. Para assistir, canal do IAB no YouTube (link: www.youtube.com/user/tviab); texto disponível no blog Diplomatizzando (5/09/2022; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/09/bicentenario-da-independencia-os.html).

 

4229. “Os fundadores do Estado: Bicentenário da Independência”, Brasília, 3 setembro 2022, 12 slides. Apresentação em PP para o seminário do IAB, em 5/09/2022, 10:30hs. Apresentado no canal do IAB no YouTube (link: www.youtube.com/user/tviab).

 

4233. “A Independência do Brasil e a formação da diplomacia brasileira”, Brasília, 8 setembro 2022, 10 p. Notas para evento da Confraria Conservadora, coordenado por Alex Catharino, com a participação de Guilherme Diniz, do curso Ubique; dia 14/09, 20:00hs. Via Instagram. Postado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/09/a-independencia-do-brasil-e-formacao-da.html). Divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/86550759/4233_A_independencia_do_Brasil_e_a_formacao_da_diplomacia_brasileira_2022_).

 

4234. “Historiografia da independência: síntese bibliográfica comentada”, Brasília, 9 setembro 2022, 19 p. Seleção de obras sobre o processo da independência, para número especial dos Cadernos do CHDD.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 18 de setembro de 2022

 

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

A independência do Brasil e a formação da diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida

 Um dos meus trabalhos mais recentes (mas eu já estou no trabalho 4238), para uma conversa que vou ter com meu amigo Alex Catharino, na companhia do professor Guilherme Diniz. 

4233. “A Independência do Brasil e a formação da diplomacia brasileira”, Brasília, 8 setembro 2022, 10 p. Notas para evento da Confraria Conservadora, coordenado por Alex Catharino, com a participação de Guilherme Diniz, do curso Ubique (@BrasilBrasil); dia 14/09, 20:00hs. 

Trata-se de uma versão resumida de trabalho mais amplo – mas totalmente diferente na forma e na finalidade – que elaborei para os Cadernos di CHDD, Centro de História e Documentação Diplomática, este aqui: 4234. “Historiografia da independência: síntese bibliográfica comentada”, Brasília, 9 setembro 2022, 19 p. Seleção de obras sobre o processo da independência, para os Cadernos do CHDD. Encaminhado ao embaixador Gelson Fonseca.

 Não vou ler este trabalho no evento de quarta-feira, mas ele pode servir de subsídios aos que se interessam pelo tema: 


A independência do Brasil e a formação da diplomacia brasileira 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para evento da Confraria Conservadora, coordenado por Alex Catharino, com a participação de Guilherme Diniz; dia 14/09, 20:00hs. 

 

1. Historiografia da Independência

O que a independência do Brasil tem a ver com a formação da diplomacia brasileira? A resposta é óbvia: tudo! Assim como domínio sobre um território definido, o monopólio sobre o uso da força, a emissão de uma moeda e o controle sobre entrada e saída de estrangeiros e sobre o comércio exterior são domínios reservados de um Estado constituído, o estabelecimento e o funcionamento de relações exteriores são os atributos necessários de um Estado soberano. Logicamente, o Brasil necessita ter uma diplomacia que seja brasileira, sem qualquer subordinação a Estados estrangeiros. Mas nem sempre foi assim, pelo menos na fase inicial do Império brasileiro, sob o primeiro Reinado.

A independência não é um evento singular, e sim um processo, no caso do Brasil bastante gradual, muito diferente, aliás, dos processos revolucionários ocorridos nas demais colônias hispano-americanas, geralmente ao cabo de guerras contra as forças espanholas, no contexto das guerras napoleônicas na Europa. Permito-me recomendar, a propósito, o livro do colega diplomata Marcelo Raffaelli, que discorreu magistralmente sobre os diversos processos de independência na América Latina nesta obra: Guerras Europeias, Revoluções Americanas: Europa, Estados Unidos e a independência do Brasil e da América Espanhola (São Paulo: Três Estrelas, 2018; capítulos “Espanha e suas colônias; Portugal e o Brasil, de 1808 a 1828,” e “A independência do Brasil – 1”, páginas, 100-102, 196-203 e 219-222). Uma outra obra indispensável para situar a independência do Brasil no contexto regional é o volume III, da História da América Latina, organizada pelo historiador Leslie Bethell, para a Cambridge History of Latin America, cujo título é justamente Da Independência até 1870 (São Paulo: Imprensa Oficial, Edusp; Brasília: Funag, 2001), sendo que o capítulo 4, sobre a independência do Brasil (p. 187-229), é de autoria do próprio Leslie Bethell. O capítulo seguinte, de autoria de D. A. G. Waddell, trata da política internacional e a independência da América Latina (p. 231-265). 

Essas obras pertencem à historiografia mais recente sobre a história do Brasil, que se beneficiariam dos testemunhos dos contemporâneos dos eventos, inclusive de visitantes estrangeiros. Entre estes estão Robert Southey, mas que se limita à história colonial até a chegada dos Braganças e se conclui em 1820, seguida pela obra de John Armitage, que se beneficiou do relacionamento com alguns dos protagonistas do processo da independência, em obra que publicou no final da década, traduzida pela primeira vez em português em 1835 e reeditada no início do século XX. Entre os brasileiros, encontra-se o suspeitíssimo José da Silva Lisboa, que fez um relato dos eventos dos primeiros anos do Império do ponto de vista do próprio imperador, que lhe agraciou com uma cadeira no primeiro senado e com os títulos nobiliárquicos de barão, depois visconde de Cairu. Um relato mais profissional foi feito pelo patrono da historiografia brasileira, Adolfo Varnhagen, em seus três volumes de História Geral do Brasil, publicados em meados do século XIX, com um claro viés cortesão. Mas o volume da independência, justamente, só foi publicado postumamente, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com notas do Barão do Rio Branco e outros, em 1916.

No caso do Brasil, mais do que uma verdadeira independência, tratou-se talvez de uma secessão, ou separação, entre dois Estados, evento que já estava na prática consumado desde, talvez, 1808, quando o Brasil se torna sede do Império multicontinental lusitano, e mais seguramente desde 1815, quando nos tornamos um Reino, embora unido ao de Portugal e Algarves. Resulta, portanto, que já tínhamos um governo e seus respectivos ministérios, ou secretarias, sendo que a dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, em Portugal, já tinha sido criada desde 1736 por D. João V, o que consolidou uma tradição de relações com potências estrangeiras desde muito antes. A divisão entre as duas pastas só ocorre em 1822, quando também, pela primeira vez, um brasileiro, no caso José Bonifácio, integra o gabinete do Príncipe Regente. Ele também será o primeiro chanceler do Império, ainda que por pouco tempo. Mas, para nos referirmos apenas ao seu trabalho de condutor das relações exteriores do Brasil, cabe recordar que foi ele quem redigiu as instruções aos representantes de São Paulo às Cortes de Lisboa, em 1821, sendo também o principal redator do manifesto às nações amigas de agosto de 1822, que pode ser considerado o primeiro documento de diplomacia nacional da história do Brasil. 

 

2. A independência e a política externa numa primeira fase

No imediato seguimento da independência do Brasil, o novo Império tinha dois problemas herdados da fase portuguesa de relações exteriores, mas que também expressavam o caráter do antigo Vice-Reino e sua estrutura social. Esses problemas eram: (a) a situação nas fronteiras do sul, guerrilha dos independentistas uruguaios e guerra contra Buenos Aires em torno do Uruguai; (b) a questão do tráfico e da escravidão, que se arrastava desde o Congresso de Viena em 1815 e que vai se prolongar por mais de três décadas, até 1850. Se a primeira questão foi resolvida, a segunda representou uma permanência estrutural que projetou seus efeitos sobre a sociedade durante todo o século XIX. A partir de 1826, com a morte de D. João VI em Portugal, um terceiro problema se acrescenta aos dois primeiros: a sucessão no reino de Portugal, cujo legítimo herdeiro era o próprio imperador do Brasil, que transfere seu domínio para sua filha Maria da Glória, ainda menor, ato que foi imediatamente contestado por seu irmão D. Miguel, vinculado aos absolutistas da Santa Aliança. Resulta que a política externa do Brasil, numa primeira fase, esteve particularmente imbricada em problemas de Portugal, ou criados e mantidos pela antiga política exterior portuguesa, embora, na questão do tráfico e da escravidão, submetida a poderosos interesses brasileiros. 

Um historiador do Primeiro Reinado, Luiz Francisco da Veiga, citado por Ricupero a partir de Sérgio Buarque de Holanda, resume todo o sentido do desastre que foi a guerra da Cisplatina, encerrada pelo armistício entre o Brasil e as Províncias Unidas, patrocinado pela potência hegemônica da época, a Inglaterra:

A revolta da província Cisplatina contra o jugo prepotente do Brasil, representado na pessoa do primeiro imperador, foi não só justa, mas até uma necessidade imperiosa [...]. Foi uma guerra santa, como a brasileira de 1822. A província da Cisplatina era tratada pelo Império como Portugal ou as Cortes portuguesas queriam tratar o Brasil em 1821 e 1822. As mesmas causas produziram os mesmos efeitos; mas na questão do Império com a Cisplatina o antagonismo era maior, por causa da diferença de raça, de língua e de tradição, maior era a razão oriental e, portanto, maior sem a razão brasileira, ou antes imperial. (Sérgio Buarque de Holanda, História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1962, II, p. 17-18, nota 1; apud Rubens Ricupero, A Diplomacia na Construção do Brasil. Rio de Janeiro: Versal, 2017, p. 139).

 

A guerra da Cisplatina foi um erro, português, em seguida “brasileiro”, o que tisnou a imagem do novo Império do Brasil, uma designação que já denotava sombrias veleidades expansionistas, o que foi ainda aprofundado, anos depois, pelas contínuas intervenções nas constantes lutas entre blancos e colorados uruguaios, levando a um primeiro confronto com o ditador argentino Rosas, desembocando, mais adiante, na “maldita guerra” provocada pelo ditador paraguaio Solano Lopez contra um gigante pouco preparado para o conflito.

Já a questão do tráfico escravo ocupou as primeiras décadas de construção do instrumento diplomático brasileiro de forma intensa, o que se explica por razões de economia doméstica e internacional. O tráfico escravo mobilizava enormes capitais, conjugando os interesses de traficantes, em grande medida transportadores portugueses, e comerciantes e fazendeiros brasileiros. No plano interno, a prática da escravidão era uma instituição extremamente lucrativa, servindo-se dos poderes públicos, e mesmo de sua capacidade de projeção internacional, para promover ganhos privados.

Finalmente, o envolvimento do imperador com a sucessão no reino de Portugal terminou por irritar os brasileiros, que acabaram por praticamente expulsá-lo do Brasil em 1831. Vários historiadores consideram que 1831 foi a verdadeira independência e o início formal de políticas, interna, externa e institucional, exclusivamente brasileiras. 

 

3. A primeira diplomacia brasileira

Como observou o embaixador Rubens Ricupero, “de agosto de 1822 a julho de 1823, ... José Bonifácio de Andrada e Silva foi o poderoso ministro da Guerra e dos Estrangeiros e, mais do que isso, o virtual primeiro-ministro e chefe do governo” (in: A Diplomacia na Construção do Brasil. Rio de Janeiro: Versal, 2017, p. 121). Seu Manifesto aos Governos e Nações Amigas, de 6 de agosto de 1822, um mês antes da proclamação da Independência, “pode ser considerado como uma espécie de ata de fundação da diplomacia brasileira” (idem). Como também relata o diplomata historiador João Alfredo dos Anjos, “após as primeiras medidas de política interna, José Bonifácio inicia pelo Prata a ação externa do Brasil independente, ainda em maio de 1822, convocando Antônio Manuel Corrêa da Câmara para representar o país em Buenos Aires” (José Bonifácio, primeiro Chanceler do Brasil. Brasília: Funag, 2007, p. 102-103), ou seja, o que era então um efêmero “Reino do Brasil”, que não tardou muito em se desfazer. 

José Bonifácio não logrou obter o reconhecimento de Buenos Aires, inclusive porque tropas portuguesas tinham ocupado o que seria o Uruguai – e que os argentinos consideravam que fazia parte do antigo vice-reinado do Rio da Prata, e que lhes pertencia, portanto, assim como ao parte do sul da Bolívia e o Paraguai – e porque havia muita desconfiança em relação aos vínculos europeus desse Reino unido ao de Portugal, dadas as veleidades da Espanha e de outras monarquias europeias, inclusive a própria Grã-Bretanha, sobre os novos Estados da região.

Em todo caso, José Bonifácio instruiu Corrêa da Câmara a convencer os dirigentes de Buenos Aires sobre a utilidade de uma “Confederação ou Tratado ofensivo e defensivo com o Brasil, para se oporem, com os outros governos da América espanhola, aos cerebrinos manejos da Política Europeia” (Ricupero, 2017, p. 123, citando Anjos, 2007, p. 106-107). O diplomata historiador João Alfredo dos Anjos, autor da biografia do primeiro chanceler, registra que tal proposta antecipa em um ano e meio o discurso de Monroe ao Congresso americano, delineando assim a possibilidade de uma ação conjunta na América do Sul. Enquanto José Bonifacio esteve à frente da diplomacia brasileira, ele se ocupou de promover o que chamava de “Sistema Americano”, ou seja, uma política externa decididamente americana, mas que só retornaria novamente a partir das Regências, depois da abdicação do primeiro imperador. Premido pela reação dos autocratas portugueses contra o novo sistema de monarquia constitucional, o Imperador se ocupou bem mais dos assuntos portugueses do que dos assuntos domésticos ou os da diplomacia brasileira. Entre aqueles estavam: o golpe autocrático do irmão Miguel e a reconquista reacionária do poder real, a morte de D. João VI, o que fazia dele o legítimo herdeiro, sua renúncia em favor da filha, que enfrentou dificuldades para a assunção ao trono, hostilizada novamente pelo tio, sua abdicação e o retorno a Portugal, mas não como Pedro IV e sim como defensor da filha, a retomada das lutas em Portugal, enfim, a morte.

As iniciativas que tinham sido anteriormente tomadas por José Bonifácio para criar uma primeira possível aliança com os argentinos se chocavam, desde o início da presença da família real no Brasil, com a ocupação da província oriental, primeiro por tropas portuguesas, depois brasileiras; as planícies uruguaias permaneceram durante anos agitada pela guerrilha autonomista do primeiro líder independentista, José Gervasio Artigas, o herói (embora fracassado) da autonomia uruguaia. Em 1825, Buenos Aires apoia o desembarque de orientales que passam a lutar contra as forças do Imperador, sob o comando de Juan Antonio Lavalleja. “A guerra correu mal para o Império, cujas forças foram derrotadas na batalha de Passo do Rosário (nome brasileiro) ou Ituzaingó (denominação argentina)”, segundo escreveu Ricupero (2017, p. 138). Depois de várias escaramuças terrestres e navais entre as forças dos dois grandes vizinhos do Rio da Prata – inclusive com bloqueio de Buenos Aires por barcos da Marinha imperial –, decidiu-se, com a mediação inglesa, pela criação de um novo país independente, a República Oriental do Uruguai, em agosto de 1828, garantindo-se, a partir daí, a liberdade de navegação no Rio da Prata, “constante preocupação diplomática e militar dos brasileiros” (Hélio Vianna, História do Brasil. 4ª ed.; São Paulo: Melhoramento, 1966, 3º. vol., p. 32).

A despeito das frustrações e desacertos enfrentados nos dois grandes temas da primeira agenda externa do Brasil no momento da independência e nos anos seguintes – os conflitos com as Províncias Unidas na questão da Cisplatina e os com a Grã-Bretanha, na vergonhosa defesa do tráfico e da escravidão –, a diplomacia profissional brasileira representou, desde o período inicial da construção do Estado, um dos setores mais bem preparados e um dos mais eficientes e constantes na burocracia pública, cujos traços e características essenciais, nessa fase inicial do século XIX, eram, bem mais “patrimoniais” do que propriamente “racionais-legais”. Ao assegurar, nessa etapa formadora da nação, a representatividade internacional do Estado brasileiro, a classe diplomática brasileira contribuiu para a sua construção e fortalecimento. De fato, ao trabalhar, basicamente, no Estado, pelo Estado e para o Estado, ela ajudou a construir, com sua parcela de esforços, a própria identidade brasileira, embora bem mais voltada para a construção da Ordem política do que, propriamente, para a consolidação do progresso social. Mas, a diplomacia, em si, não poderia evitar os traços patrimonialistas e oligárquicos do novo Estado: ela também era uma de suas expressões mais acabadas, como eram, aliás, todas as demais diplomacias do mundo de Estados organizados então existentes. 

A despeito de não existir, formalmente, antes da conquista da autonomia nacional, ela começa a aprender de certa forma por osmose, uma vez que as relações internacionais do Brasil passaram a estar inseridas no quadro do primeiro grande arranjo “multilateral” do início do século XIX. No Congresso de Viena, em 1815, estiveram representadas apenas oito nações “cristãs”, o Brasil no contexto do “Reino Unido” ao de Portugal, em virtude da relação privilegiada da Coroa lusitana com a Grã-Bretanha e basicamente no contexto de seu envolvimento, embora involuntário, com o grande “drama napoleônico” que agitou a Europa na sequência da Revolução francesa. As relações de força e de poder desenhadas naquela primeira grande conferência diplomática da era contemporânea continuaram a dominar os desenvolvimentos diplomáticos (e militares) durante a maior parte do século XIX, tendo o Brasil se inserido desde o início no contexto regional, o que compreendeu igualmente a “doutrina Monroe”. Nessa primeira fase, caracterizada pelo “realismo cru” do início do século XIX, navios de guerra das nações “civilizadas” se achavam no direito de violar impunemente, em nome de um conceito peculiar de “justiça”, as águas territoriais de países periféricos e, como ocorreu em algumas ocasiões, até mesmo os portos brasileiros.

Pelas características que exibia o serviço diplomático brasileiro naquela primeira fase – com um corpo diplomático vivendo no exterior, mas separado do corpo consular, e dispondo apenas de poucos servidores na Secretaria de Estado no Rio de Janeiro –, a diplomacia profissional contribuiu bem mais para a consolidação do Estado do que propriamente para a construção da nação, como afirma, não sem certa razão, o embaixador Rubens Ricupero, em sua obra já clássica de história diplomática (2017). Pode-se, no entanto, concordar com sua avaliação geral dos serviços prestados à nação pela diplomacia profissional, julgamento que também pode servir de conclusão a este ensaio: 

A diplomacia em geral fez sua parte e até não se saiu mal em comparação a alguns outros setores. Chegou-se, porém, ao ponto extremo em que não mais é possível que um setor possa continuar a construir, se outros elementos mais poderosos, como o sistema político, comprazem-se em demolir. A partir de agora, mais ainda que no passado, a construção do Brasil terá de ser integral, e a contribuição da diplomacia na edificação dependerá da regeneração do todo. (Ricupero, 2017, p. 739)

 

A diplomacia brasileira da independência pagou um alto preço na sua imagem externa em virtude das heranças recebidas do período português. A continuidade do tráfico e a da escravidão, no período brasileiro, a partir das Regências, não ajudou muito na construção de uma imagem melhor. Sua reconstrução viria aos poucos, de maneira muito lenta, talvez, para padrões civilizatórios mais aceitáveis no plano global. Esta é uma das características estruturais do Brasil, que não pode ser superada unicamente pela sua diplomacia.

 

4. A formação da diplomacia brasileira

A diplomacia da jovem nação independente, no alvorecer da independência nacional, era toda ela portuguesa, com a notável exceção, justamente, do primeiro chanceler, o já maduro José Bonifácio de Andrada e Silva, que foi também o primeiro brasileiro a integrar um gabinete português, na regência do príncipe Dom Pedro. Os que se agregaram, de modo improvisado, às primeiras missões de representação no exterior também eram portugueses naturalizados brasileiros, ou brasileiros saídos de Coimbra e de algumas outras faculdades no exterior. Os ingressados por simples designação, ou por alguns raros concursos nas etapas subsequentes, possuíam a sua própria formação, ou então, foram se tornando experientes no exercício das funções que lhes eram atribuídas a partir das Regências e do Segundo Império. 

Como referido anteriormente, A política externa do Estado do Brasil independente começou antes de o Brasil se tornar independente, e pela metodologia fundamental que faz parte da formação de todo diplomata: a redação de instruções e o despacho de enviados ao exterior para defender os interesses da nação (no caso, ainda não existente). O personagem principal dessa aventura foi obviamente José Bonifácio de Andrada e Silva, virtual primeiro-ministro do príncipe D. Pedro logo após o famoso Fico, em 9 de janeiro de 1822. Já em 24 de maio desse ano ele despachou um representante a Buenos Aires, a pretexto de assuntos consulares e de comércio, e logo depois fez o mesmo para as principais capitais europeias. Como escreveu Jorge Caldeira, “Iriam todos tratar dos interesses brasileiros como algo próprio – e buscar apoio para esse comportamento independente” (José Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: Editora 34, p. 30). 

Na verdade, José Bonifácio já “expedia instruções” desde antes de ser nomeado para gabinete português de D. Pedro, quando ainda ocupava o cargo de vice-presidente da Junta Provisória de São Paulo, em outubro de 1821, ao redigir “apontamentos” para os deputados dessa província que deveriam ir às Cortes de Lisboa: neles, Bonifácio consignou que esses representantes deveriam tratar dos negócios da União – isto é, do império luso-brasileiro que ele imaginava que deveria se conservar unificado –, dos negócio de Reino do Brasil, que deveria ser em tudo autônomo,– salvo nos assuntos de paz e guerra, comércio exterior e de um tesouro geral dos dois reinos, de onde sairiam os recursos para as despesas em caso de guerra –, inclusive na criação de uma universidade e de uma capital no interior do país, e, finalmente, dos assuntos próprios da província de São Paulo, em favor da qual os deputados saberiam defender tudo de bom para sua terra.

As instruções que Bonifácio escreveu para Corrêa da Câmara, em maio de 1822, enviado a Buenos Aires, assim como a Caldeira Brant, Gameiro Pessoa e Jorge Schaeffer, em agosto seguinte, respectivamente como encarregados de negócios do Brasil junto às cortes de Londres, Paris e Viena, surpreendem o leitor pela abundância de considerações sobre as relações de Brasil e Portugal com esses países, sobre o contexto regional e internacional no qual eles se movimentavam, assim como pelo extremo detalhamento de posturas, dizeres e atitudes que esses representantes deveriam, publicamente ou secretamente, com um ou outro dos interlocutores já por ele designados, em relação às medidas e conexões que eles deveriam ter no tratamento dos legisladores e da imprensa locais, e sobre cada um desses pontos, uma explicação precisa e minuciosa sobre como eles deveriam defender os interesses do Brasil, num momento de visível tensão em face das disposições eu estavam sendo tomadas em Lisboa (onde as Cortes tinham D. João VI virtualmente como “prisioneiro político”). Um dos parágrafos, reproduzido de forma praticamente similar nessas instruções separadas, reza claramente o que o já chanceler do gabinete regencial queria obter dos seus enviados: 

Procurará, portanto, obter desse governo o reconhecimento da independência política deste Reino do Brasil, e da absoluta Regência de s.a.r. [Sua Alteza Real] enquanto sua majestade se achar no afrontoso estado de cativeiro, a que o reduziu o partido faccioso das Cortes de Lisboa. (Caldeira, 2002, p. 151)

 

Mas, tudo isso é pura política externa, e mais de Bonifácio do que propriamente do príncipe regente, e não corresponde, exatamente, ao que se costuma chamar de diplomacia, no sentido da existência de uma instituição própria, estabelecida com esse propósito no Brasil pré-independência. Em todo caso, todas as atitudes tomadas por Bonifácio, naquela fase crucial da evolução do Brasil Reino Unido para o seu novo formato de Império do Brasil, ainda largamente indefinido – pois que tanto ele, quando D. Pedro almejavam, de fato, a unidade do grande império dos Braganças – autorizaram plenamente que o historiador diplomático Oliveira Lima considerasse que Bonifácio foi o responsável pelo “momento fundador da história das relações diplomáticas do Brasil” (in: Carlos Guilherme Mota, “Oliveira Lima e Nossa Formação”, História e Contra História: Perfis e Contrapontos. São Paulo: Globo, 2010, p. 83-110, cf. p. 89). 

Em outros termos, o Brasil já nasceu tendo política externa, autônoma e própria, mas não tinha ainda diplomacia, porque simplesmente não tinha diplomatas. Todos os enviados por Bonifácio, e depois pelos sucessivos chanceleres, eram personalidades da vida pública portuguesa naturalizada – como Duarte da Ponte Ribeiro – ou já brasileira, como a maioria a partir das Regências, que não passaram pela Bildung de alguma instituição, uma vez que ela tinha uma existência muito precária naqueles primeiros anos do Estado independente. Mas, desde 1808, já se tinha política externa, ainda que portuguesa, a partir do Rio de Janeiro. Com efeito, desde março de 1808, o príncipe regente D. João designou D. Rodrigo de Souza Coutinho, depois conde de Linhares, para se exercer como ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, uma secretaria de Estado que já existia desde meados do século anterior em Portugal. Ao se despedir do Brasil, em abril de 1821, o mesmo D. João, já rei coroado, designou por decreto o Conde dos Arcos como ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino do Brasil e Negócios Estrangeiros. Mas, decreto de maio seguinte, rubricado pelo príncipe regente D. Pedro e referendado por José Bonifácio, mandava separar a “antiga Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, subordinando a primeira à dos Negócios do Reino”, que depois da independência passou a ser chamada de Negócios do Império (Marcos Romero, História da organização administrativa da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e das Relações Exteriores (1808-1951). Brasília: Funag, 2019, p. 10). 

Mas, Secretaria “diplomática” de verdade não existia, tanto é que, numa das reuniões da Assembleia Constituinte de setembro de 1823, José Bonifácio, preocupado com a organização das repartições públicas, apresentou uma proposta para que se efetivasse um projeto de lei determinando a estrutura das secretarias de Estado, “o número de empregados efetivos, seus ordenados e emolumentos” (Romero, 2019, p. 10). Mas até 1828, pelo menos, nada se fez, tanto é que todas as secretarias trabalhavam com um reduzido número de oficiais. Em 1826, um projeto de lei remetido pela Assembleia ao Senado estabelecia o funcionamento da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, mas ele não foi aprovado. Esse projeto de lei natimorto tampouco se ocupava de requisitos para o recrutamento ou o treinamento do pessoal da Secretaria, mas ele pelo menos prometia um controle sobre o seu trabalho, como estabelecido no seu artigo 10º (idem, p. 12):

A vigilância sobre o modo por que tais empregados cumprem suas obrigações, suspendendo temporariamente os omissos e inábeis, de que trata o § 8º. [nomeação e remuneração de todos os empregados que servem por diploma imperial], e propondo a sua demissão no caso de a merecerem, podendo em caso de mau serviço demitir aqueles de que trata o § 9º. [amanuenses, praticantes, contínuos, guardas e correios]. 

 

Em setembro de 1828, o Marquês de Aracaty distribuiu em portaria as atribuições dos seis oficiais, os cinco primeiros encarregados das relações com cerca de duas dúzias de Estados reconhecidos, o último dos “decretos, certidões e cartas aos príncipes” (Romero, 2019, p. 13). Em outras palavras, passou-se a ter uma organização administrativa, com pessoal designado, mas não se pode dizer que havia qualquer preocupação com a formação dos funcionários da Secretaria de Estado, e menos ainda com a dos diversos enviados ao Exterior, uma carreira completamente distinta da primeira, cuja designação obedecia ao critério pessoal do imperador ou dos regentes, depois de 1831. 

Foi apenas em 1833 que o Secretário de Estado Aureliano de Souza Coutinho solicitou que a Regência, em nome do imperador, designasse uma comissão composta de oficiais maiores de diversas repartições para estabelecer um regimento regulando o trabalho dos funcionários da Secretaria, seu “número, graduação e mais vantagens dos empregados”, mas ela “não ofereceu os resultados que eram de se desejar” (idem, p. 15). No relatório de 1838, se propunha uma divisão das diversas seções com base nas quais se deveria organizar a Secretaria, com as “necessárias diferenças entre a gestão dos Negócios diplomáticos e Consulares”, assim como a “determinação das condições necessárias para a administração do pessoal, com respeito às habilitações literárias, à aptidão experimental, à natureza do serviço e outras circunstâncias atendíveis para o regular andamento da Repartição”, tudo isso subordinado a um Oficial-Maior respondendo diretamente ao ministro (idem, p. 16). Mas, como informa o mesmo estudioso: “Passaram-se anos sem que providência alguma desse forma às letras de Leis ou Relatórios” (idem, p. 17).

Quem, na verdade, começou a colocar em ordem o ambiente relativamente canhestro da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e os fundamentos conceituais da própria diplomacia, assim como um conjunto de diretrizes básicas para a política externa do Império, e do próprio Brasil, foi Paulino José Soares de Sousa, ainda antes de ser agraciado com o título de Visconde do Uruguai. Foi ele quem uniu “ideias” e “diplomacia”, como está brilhantemente descrito no livro de Paulo Fernando Pinheiro Machado: Ideias e diplomacia: O Visconde do Uruguai e o nascimento da política externa brasileira– 1849-1853 (Lisboa: Lisbon International, 2022).

 

5. A consolidação de uma diplomacia nacional: obra de Paulino Soares de Sousa

A organização do corpo diplomático brasileiro e a do próprio funcionamento da diplomacia do Império estava, naquela época, compartimentada em pelo menos três “carreiras” (o termo não se aplica inteiramente) distintas e separadas: os diplomatas propriamente ditos, que passavam a vida circulando entre os postos no exterior, as legações do Império na Europa, nas Américas e algumas na Ásia, os poucos funcionários da Secretaria de Estado no Rio de Janeiro, e os encarregados dos serviços consulares, geralmente dotados de menor consideração hierárquica e política, pois que se ocupando daqueles assuntos que eram desdenhosamente chamados de “secos e molhados”, ou seja, estampilhas cartoriais, vistos e rudimentos da promoção comercial. Foi Paulino que reformou o primeiro Regulamento da Secretaria de Estado – dado por Aureliano de Souza, em 1842 – e que produziu, de sua própria mão, uma sucessão de documentos que fundamentaram, organicamente, o funcionamento do antigo Ministério dos Negócios Estrangeiros, de uma forma que nunca tinha sido feita até então. A importância dessa obra administrativa, mais do que relevante, efetuada em sua segunda gestão como chanceler, merece que esses documentos de organização sejam mencionados por inteiro: 

1) a primeira organização do corpo diplomático brasileiro (Lei n. 614, de 22/08/1851);

2) o segundo regimento do corpo diplomático (Decreto n. 940, de 20/03/1852);

3) o decreto que fixou o número e as categorias das missões diplomáticas (1852);

4) o decreto que determinou uma inédita tabela de remuneração no exterior (1852).

 

Como explicitou o diplomata Flávio Castro, esses quatro diplomas legais “vieram consolidar, em textos próprios, uma série de medidas administrativas, de disposições orgânicas e funcionais do Serviço Diplomático já capituladas, esparsamente, em administrações anteriores” (Flávio Mendes de Oliveira Castro: Itamaraty: dois séculos de história. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, vol. I, p. 93). Mas Paulino fez muito mais: ele se preocupou com a qualidade do capital humano com o qual deveria passar a trabalhar, doravante, a diplomacia brasileira. Como ainda relata Flávio Castro: 

Anexas ao Regulamento Paulino de Souza vieram à luz as

Instruções para o exame dos candidatos ao lugar de Adido de Legação, às quais se refere o Regulamento n. 940, de 20 de março de 1852

que acreditamos ser o primeiro programa oficial exigido para o ingresso na carreira diplomática. A Comissão Examinadora seria composta de três membros, presidida pelo Ministro de Estado. O exame deveria ser prestado publicamente, em sala da Secretaria de Estado, com a duração de duas horas, sendo 20 minutos dedicados a cada uma das seguintes matérias: 

1º. – Conhecimento das línguas modernas, especialmente da inglesa e francesa, devendo o candidato traduzir, escrever e falar esta última.

2º. – História Geral e Geografia Política, História Nacional, e notícia dos Tratados feitos entre o Brasil e as Potências estrangeiras.

3º. – Princípios gerais do Direito das Gentes, e do Direito Público nacional e das principais nações estrangeiras. 

4º. – Princípios gerais de economia política, e do sistema comercial dos principais Estados, e da produção, indústria, importação e exportação do Brasil.

5º. – A parte do Direito Civil relativa às pessoas e princípios fundamentais em matéria de sucessão.

6º. – Estilo diplomático, redação de despachos, notas, relatórios, etc.

O escalonamento da carreira foi assegurado pelo artigo 4º do Regulamento Paulino de Souza, que determinava o processo de ascensão ao cume da hierarquia. O funcionário progrediria ao cargo imediatamente superior, não dando mais margem às interpolações de adventícios. (...)

Os adventícios no Serviço Diplomático de então eram os Embaixadores de fora da carreira..., Chefes e Empregados de Missões Especiais, que poderiam ser também estranhos à carreira. Tais funcionários, se continuassem servindo ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, não teriam os benefícios e vantagens da estabilidade remunerada ou da aposentadoria...

No Regulamento Paulino de Souza não foram estabelecidas normas precisas sobre critérios a seguir para promoções. Há, porém, a referência de que o serviço em Legações de países americanos ou o exercício das funções de Secretário ou de Adido na Legação de Londres, além de outros, seriam motivos de preferências nas promoções... Segundo instruções especiais..., haveria uma revisão da lista de Adidos de 1ª. e 2ª. Classes, ‘a fim de serem eliminados aqueles que houverem dado provas de pouca capacidade, ou tiverem procedimento menos regular’. (Castro, 2009, p. 98-100; ênfases no original)

 

As reformas introduzidas por Paulino constituíram, sem dúvida alguma, a mais importante reforma estrutural jamais efetuada na carreira e no serviço diplomático até então, sendo que um novo Regulamento de organização só seria introduzido em 1859 pelo ministro José Maria da Silva Paranhos. Mas o Visconde do Rio Branco o fez sem tocar, por exemplo, nos requerimentos de seleção de adidos de 1ª. classe, porta obrigatória de ingresso na carreira, o que confirma que Paulino estabeleceu um padrão de qualidade no recrutamento dos servidores do quadro diplomático que seria invariavelmente seguindo, com as pequenas adaptações pertinentes, até os nossos dias. De fato, a aura de excelência do Itamaraty atual deita raízes nas reformas e nos estatutos concebidos, escritos e implementados por Paulino, antes até que ele recebesse a honra de ser elevado ao título de Visconde do Uruguai. 

Se examinarmos, por exemplo, a lista acima das matérias exigidas para a admissão de novos servidores constata-se que esse imenso conhecimento das mais diversas disciplinas continuou a ser exigido dos candidatos à carreira nos 170 anos seguintes, depois que Paulino traçou, pela primeira vez, essa amplitude de domínio de matérias afetas ao trabalho diplomático (e consular também, com variações apropriadas) que o aspirante precisaria ter antes de passar a integrar o reduzido, mas capacitado corpo diplomático brasileiro, uma obra magnífica de Paulino. Com efeito, no seu decreto 941, de 1852, ele também fixou o número e a categoria dos funcionários que caberia manter nas 21 missões diplomáticas que o Império passou a manter no exterior, integradas por 15 a 19 adidos, 7 secretários, 12 encarregados de negócios – no Paraguai, no Chile, conjuntamente na Venezuela, Nova Granada (Colômbia) e Equador, e em nove monarquias europeias –, 2 ministros residentes – na Bolívia e na Prússia e cidades hanseáticas – e 7 Enviados Extraordinários e Ministros Plenipotenciários (que são chamados atualmente de embaixadores), estes nas Américas (Estados Unidos, Confederação Argentina, Uruguai e Peru) e na Europa (Grã-Bretanha, França e Portugal). 

Em outros termos, como amplamente demonstrado por Paulo Fernando Pinheiro Machado, Paulino conduziu, com maestria, não só a política externa do Império, como evidenciado em seu livro. Paulino, o estadista do Regresso, possuindo total domínio de cada um dos assuntos substantivos, soube organizar, nos mínimos detalhes, toda a organização, o funcionamento e a seleção do pessoal diplomático. Ele estabeleceu um padrão de qualidade que, se foi modificado ao sabor da evolução natural da política regional e internacional do Brasil, jamais deixou de se pautar pelo espírito das normas e requerimentos exigentes que Paulino traçou em matéria de desempenho funcional e de rigor intelectual dos diplomatas recrutados para serviço exterior do país. 

Ao lado de outros grandes nomes vindos da Regência, liberais ou conservadores, como Bernardo de Vasconcelos, Honório Hermeto, Eusébio de Queirós Mattoso, Alves Branco e Paranhos, o Visconde do Uruguai foi um dos grandes estadistas e agentes políticos do Império, atuando tanto na esfera política, constitucional, administrativa, quando, principalmente, no nascimento e na consolidação de uma política externa propriamente brasileira, e não mais “portuguesa”, como ele ainda encontrou ao assumir pela primeira vez a chancelaria (em 1843). De 1849 a 1853, ele foi o mestre absoluto do todos os atos na frente externa, mesmo numa agenda tão pouco favorável à imagem do Brasil no exterior, como era a infeliz defesa do tráfico. Paranhos, que o seguiu mais adiante, também teve de se ocupar do dossiê da escravidão, o que ele fez pela Lei do Ventre Livre, em 1871. 

Em meados do século XIX, a diplomacia brasileira estava consolidada. O que foi feito depois, por Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco, foi um desenvolvimento da diplomacia construída pelos diplomatas do Império: seus grandes princípios continuaram a reverberar no trabalho do Itamaraty durante praticamente todo o século XX.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4233: 8 setembro 2022, 13 p.





quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Encyclopedia of South American History: to be published in 2024 - contributions by Paulo R. Almeida

 Em 2021, recebi um convite e me ofereci para contribuir para uma enciclopédia sobre  a história da América do Sul. Escolhi apenas cinco verbetes, o que me dará, ao que parece, direito a receber um exemplar impresso dessa publicação, o que só ocorrerá no distante ano de 2024. Será que as contribuições envelhecerão até lá? Por vezes a história anda tão rápido, mesmo a história passada...

Paulo Roberto de Almeida

Encyclopedia of South American History: contributions by Paulo R. Almeida

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Relação e textos das contribuições preparadas para a Encyclopedia of South American History, com publicação prevista para 2024, Blomsbury Publisher; Editor: Professor Micheal Tarver.

 

 

Relação das contribuições preparadas em 2021 para o projeto coordenado pelo Prof. Micheal Tarver, para uma Enciclopédia de história da América do Sul, originalmente a cargo da editora ABC-CLIO, adquirida em 2021 pelo grupo Bloombury. 

 

Contribuições de Paulo Roberto de Almeida:

 

1)    3970. “Tordesillas, Treaty of (1494)”, Brasília, 8 Sept 2021, 3 p.; 1.189 words. Contribution to a project of ABC-Clio, “South America: From European Contact to Independence”; 

2)    3974. “Bandeiras”, Brasília, 12 Sept 2021, 3 p.; 1.074 words. Contribution to a project of ABC-Clio, “South America: From European Contact to Independence”;

3)    3976. “Bandeirantes”, Brasília, 12Sept 2021, 3 p., 1235 word. Contribution to a project of ABC-Clio, “South America: From European Contact to Independence”.

4)    3979. “Andrada e Silva, José Bonifácio de”, Brasília, 18 Sept 2021, 3 p.; 1.071 words. Contribution to theEncyclopedia of South American History; Prof. Micheal Tarver.

5)    3980. “Brazil, Independence Movement”, Brasília, 19 Sept 2021, 5 p. Contribution to the Encyclopedia of South American History; Prof. Micheal Tarver.


quarta-feira, 15 de junho de 2022

As singularidades da Independência do Brasil: livro da Funag e do Instituto Camões

 

No contexto das comemorações do Bicentenário da Independência, a Fundação Alexandre de Gusmão e o Instituto Camões publicam a obra As singularidades da Independência do Brasil, a qual reúne ensaios inéditos de especialistas dos dois lados do Atlântico acerca do complexo período que culminou na emancipação brasileira como Estado independente. Trata-se de exercício de história comparada, no qual cada contribuição agrega à coletânea uma perspectiva única e enriquecedora, envolvendo o Brasil e Portugal durante a crise do Antigo Regime, em um multifacetado mosaico de vertentes: institucional, diplomática, política, econômica, cultural, portuguesa e brasileira.

Seu público‑alvo são estudantes, docentes, pesquisadores e todos aqueles que se interessarem em conhecer mais sobre uma longa e intrincada evolução que a memória coletiva condensa em um dia no século XIX, o 7 de setembro de 1822, mas cujos desdobramentos contribuem para formar o Brasil atual e o dos próximos anos, bem como para alicerçar o sólido edifício que continua sendo construído pelas duas nações irmãs.

A obra está disponível gratuitamente na biblioteca digital da FUNAG

https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-1186

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

A Independência: uma história em construção: próxima live do IHG-DF, sexta-feira, dia 11/02/2022, 17hs

Nosso próximo encontro: o Prof. João Paulo Pimenta acaba de publicar o livro “Independência do Brasil” (Contexto): 

Neste link: https://youtu.be/auW7jlgKHPE



Playlist da série História do Brasil em Perspectiva, promovido pelo IHG-DF, em seus vários episódios já realizados sobre a temática do Bicentenário da Independência:

https://www.youtube.com/playlist?list=PLVBII2sTxDqlPxl8j-06O-0jKcYt2snYg

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

André Heráclio do Rego, diplomata e historiador lança dois livros de e sobre o historiador diplomata Manuel de Oliveira Lima: CCBB, Brasília, dia 2/12, 19s

 Meu amigo e colega de carreira André Heráclio do Rêgo tem a satisfação de convidar-nos para o lançamento presencial, no CCBB Brasília, no próximo dia 2 de dezembro, às 19 horas, de dois livros que ele organizou em torno da obra do grande diplomata e historiador Manuel de Oliveira Lima. 

Um dos livros é Oliveira Lima e a longa história da Independência, que ele organizou com a colaboração de Lucia Maria Bastos P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães, e que conta com um capítulo meu: “Um “imenso Portugal”? A hipótese de um império luso-brasileiro no contexto internacional do início do século XIX”. 

A segunda obra, O descobrimento do Brasil e outros ensaios, reúne diversos ensaios sobre a visão de Oliveira Lima sobre a História do Brasil e traz à luz textos pouco conhecidos, alguns deles somente agora republicados. O evento insere-se no contexto das comemorações do Bicentenário da Independência. 



quarta-feira, 13 de outubro de 2021

A revolução liberal de 1820 como precursora da independência do Brasil: o papel do Correio Braziliense de Hipólito da Costa - Paulo Roberto de Almeida

 A revolução liberal de 1820 como precursora da independência do Brasil: o papel do Correio Braziliense de Hipólito da Costa

The 1820 liberal revolution as a forerunner of Brazilian Independence: the role of Hipolito da Costa’s Correio Braziliense

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, Ministério das Relações Exteriores; professor no Ibmec-Brasília (pralmeida@me.com)

Colaboração ao Congresso Internacional sobre a Revolução de 1820;

Painel temático: As revoluções na América do Sul.

Apresentado em sessão online, coordenada pela Prof. Lúcia Maria Bastos Neves, em 13/10/2021; disponível no blog Diplomatizzando e na plataforma Academia.edu.

 

 

Resumo: Identificação e contextualização dos principais relatos e comentários feitos pelo jornalista brasileiro Hipólito da Costa em seu periódico londrino Correio Braziliense, a respeito da Revolução do Porto, em 1820, e seu impacto no Brasil, nos dois anos seguintes, durante o funcionamento das Cortes constitucionais de Lisboa, tal como repercutidos minuciosamente nas páginas do jornal. Hipólito da Costa foi mais do que um repórter dedicado a informação objetiva sobre os eventos, pois que, pelo seu conteúdo analítico e opinativo, ele praticamente moldou a opinião das elites portuguesas e brasileiras acerca da necessária evolução do regime político para uma monarquia constitucional, que ele desejava permanecer como o governo de um império, a partir da manutenção do Reino Unido de Portugal e Brasil. Em seu trabalho de seguimento crítico das diversas etapas da revolução e do processo de elaboração constitucional, Hipólito poupou sistematicamente o rei d. João e criticou seus ministros, recomendando uma mudança completa das autoridades do governo português; defendeu ademais a liberdade de imprensa e a completa equiparação de direitos e deveres entre brasileiros e portugueses; considerava que a sede do Império luso-brasileiro deveria ser no Rio de Janeiro ou numa nova capital no interior do Brasil. Só depois das medidas recolonizadoras das Cortes, que ele analisou detidamente nos diversos números do Correio em 1821 e 1822, é que ele se dispõe a apoiar a separação e a independência do Brasil, o que se dá apenas em setembro de 1822.

Palavras-chave: Hipólito da Costa. Correio Braziliense. Portugal. Brasil. Revolução do Porto. Independência do Brasil.

 

AbstractIdentification and contextualization of the main reports and comments made by the Brazilian journalist Hipólito da Costa in his London periodical Correio Braziliense, regarding the 1820 Oporto Revolution, and its impact in Brazil, in the following two years, during the functioning of the Constitutional Courts (Cortes) of Lisbon, as minutely reflected in the pages of his newspaper. Hipólito da Costa was more than a reporter dedicated to an objective information about the events, since, by the analytical and opinionated content of the journal, he practically shaped the opinion of Portuguese and Brazilian elites about the necessary evolution of the political regime towards a constitutional monarchy. He fought for the maintenance of the United Kingdom of Portugal and Brazil, in order to keep a single Empire, under the same King. Hipólito follows, in a very critical way, the various stages of the Revolution and the process of constitutional elaboration of a new Chart by the Lisbon Cortes, systematically protecting King d. João and criticizing his ministers, recommending a complete change of Portuguese governmental authorities; he also defended complete freedom of the press and the total equalization of rights and duties between Brazilians and Portuguese; Hipolito considered that the seat of the Portuguese-Brazilian Empire should be in Rio de Janeiro or in a new capital, in the heartlands of Brazil. It was only after the attempts, by the Cortes, at the recolonization of Brazil, that he decided to support the separation of the two Kingdoms and the independence of Brazil, which only took place in September 1822.

Keywords: Hipólito da Costa. Correio Braziliense. Portugal. Brazil. Oporto Revolution. Independence of Brazil.

 

 

 

A Revolução liberal do Porto recebeu de Hipólito da Costa perfeita atenção e a devida repercussão nas páginas do Correio Braziliense: o período final da existência do seu “armazém literário”, de meados de 1820 ao final de 1822, foi dedicado ao processo constitucional aberto por ela e às suas repercussões no Brasil, que resultaram, finalmente, na própria independência do Brasil. De imediato o Correio se colocou ao lado dos constitucionalistas, contra os aristocratas e principalmente contra o partido espanhol, que defendia a união com a Espanha (Goes de Paula 2001, 29).

A partir de setembro de 1820, quando ele primeiro repercute a notícia, até dezembro desse ano, Hipólito vai dedicar quatro grandes artigos à revolução e transcrever 27 documentos (proclamações, portarias, cartas e ofícios) que revoltosos e autoridades de Lisboa farão circular nesses meses febris, antecedendo à convocação das Cortes, que ele passa a tratar a partir de janeiro de 1821. Mas ele não se ocupava apenas dos eventos imediatos em Portugal, e sim pensava no futuro da sua terra, como revela a primeira matéria, no n. 148 do Correio (vol. XXV), ou seja, tão cedo quanto setembro de 1820: 

Seja-nos agora permitido fazer alguma observação sobre a influência que terá no Brasil a medida dos governadores de Portugal de convocarem as Cortes daquele Reino, com a precipitação que fizeram, sem plano premeditado pelo governo e sem vistas do interesse geral da monarquia. 

Se nas Cortes de Portugal não entram procuradores do Brasil, el-rei será o soberano de ambos os reinos, mas eles serão os reinos desunidos de Portugal e do Brasil; porquanto, uma vez que as medidas políticas em Portugal dimanem de suas Cortes, e no Brasil só d’el-rei, é impossível que haja a unidade do sistema, sem a qual os dois reinos só serão unidos de nome. 

Além disso, os brasilienses não poderão ver com olhos tranquilos e sem natural ciúme que seus co-vassalos em Portugal tenham Cortes, e não as haja no Brasil. (...) 

Estas considerações são da mais transcendente importância para a tranquilidade do Brasil. O exemplo de Portugal e as ideias do nosso século a favor das formas representativas de governo devem necessariamente mover os espíritos no Brasil, que não tendo, como fica dito, assaz fundamentos, caso adquiram o poder de obrar, só produzirão confusão e calamidades. 

Parece-nos, logo, que o remédio deveria ser a adoção de medidas tais que, satisfazendo de algum modo a opinião geral, dessem aos povos instituições constitucionais moderadas, adaptadas ao estado de civilização e instrução do país, deixando a sua desenvolução para o diante, seguindo os progressos da instrução do povo. (in: Goes de Paula 2001, 64-65)

 

Hipólito, em fino observador das estruturas econômicas mais prometedoras a partir desta parte americana do Reino, antecipa na exata sequência a sua noção de que não é o Brasil que necessitava de Portugal, e sim o contrário, mas expressando sua firme convicção de que o melhor, para ambos os reinos, era a preservação de sua união: 

Quando, porém, assim falamos sobre as medidas convenientes para conservar unidos os reinos de Portugal e Brasil, temos em vista o interesse de Portugal e do soberano, que o é de ambos aqueles Estados; porque quanto ao Brasil, e não mais, nem tanto, necessita de Portugal, do que os Estados Unidos precisam da Inglaterra.

Portanto o Correio Braziliense deve ser propriamente entendido em seus desejos patrióticos, que não são decerto guiados por prejuízos locais. Se o Brasil nada precisa de Portugal, contudo é em sua honra que seu rei continue a sê-lo também de Portugal; assim, desejáramos que, uma vez que os governadores de Portugal se portaram como se têm portado, e são convocadas as Cortes, tais instituições se adotassem que fossem favoráveis à verdadeira, e não nominal, união dos dois reinos, e que não causassem ciúmes de uma parte ou doutra, para que assim a união fosse permanente. (...)

Quanto mais instituições diversas se estabelecerem em ambos os Estados, quanto menor será a sua união; a diversidade de instituições políticas, principalmente as essenciais, não pode deixar de ocasionar diversidade de caráter, de interesse e de máximas; e dois povos, ainda que sujeitos ao mesmo soberano, colocados em tais circunstâncias, é impossível que continuem unidos por mais longo tempo. (in: Goes de Paula 2001, 65)

 

Assim termina a primeira matéria de Hipólito sobre a Revolução do Porto e suas consequências para o Brasil, um notável exercício de análise política, e de antecipação sobre os desafios, sobre as duras realidades que precisariam enfrentar os dirigentes políticos, assim como os representantes dos dois reinos, antes mesmo que houvesse qualquer decisão sobre o funcionamento das Cortes de Lisboa, e sobre como haveriam de proceder os constituintes no momento de debater e decidir quais seriam as diretrizes a serem estabelecidas para as diferentes partes do Reino Unido, não considerando, naquele momento, as demais dependências do grande império marítimo português. Ele continuaria, nos números de outubro a dezembro, a tratar das consequências da revolução do Porto, antes de mergulhar, a partir de 1821, nos trabalhos das Cortes. 

No n. 149 do Correio, em outubro de 1820, Hipólito demonstra, mais uma vez, que sua principal preocupação nos eventos de Portugal sempre esteve com as “coisas” do Brasil: 

Que culpa tem o Brasil de que os governadores de Portugal desatendessem as urgentes necessidades do Reino? Porventura veio algum filho do Brasil governar Portugal, para que pelos atos desse indivíduo fosse acusado todo o seu país? Nem um só. Portugueses dos quatro costados foram sempre todos os governadores do Reino, e todos os seus secretários e conselheiros. Se quiserem levar a queixa mais longe, e atribuírem os males todos de Portugal ao gabinete do Rio de janeiro, outra vez lhes retorquimos que não há nesse gabinete um só ministro do Brasil; e o primeiro-ministro até no nome é Portugal [Hipólito se referia aqui a Tomás Antonio de Vila-Nova Portugal].

Com que justiça, pois, se acusa o Brasil dos males de Portugal? Se a queixa fosse contra o sistema de governo, contra os indivíduos que o compõem, na Europa ou na América, o argumento seria sensato; mas uma acusação contra o Brasil é tão sobremaneira injusta que só pode ter por fim provocar a retorsão, excitar os ódios e criar divisões só úteis ao partido da dominação estrangeira... (in Goes de Paula 2001, 80)

 

Hipólito deu prosseguimento, no n. 150 do Correio, de novembro de 1820, à sua minuciosa análise política do processo de mudanças que andava ocorrendo em Portugal, sem se ocupar especialmente do Brasil, uma vez que não dispunha, ainda, de notícias suficientes sobre as repercussões do outro lado do Atlântico. O historiador Varnhagen, confirmando a dificuldade das comunicações nessa época, chamava a atenção para as “duas mil léguas de distância” entre as duas partes do Reino Unido, “em cuja viagem redonda, em navios de vela, únicos que então nela se empregavam, se não gastava menos de quatro a cinco meses” (2010, 18).

O último número do Correio de 1820, n. 151 (dezembro), situa a revolução do Porto no contexto de demais revoluções europeias, que também se colocavam no âmbito dos movimentos liberais e constitucionalistas, que começavam a reagir contra as tendências conservadoras, até reacionárias, que tinham emergido no Congresso de Viena e que tinham impulsionado, via Santa Aliança – Prússia, Áustria, Rússia, a França da Restauração e a Espanha do retorno ao mesmo despotismo dos Bourbons –, a restauração do absolutismo em vários reinos do continente. Todas elas, a rigor, se inspiravam no mesmo texto constitucional liberal, a Carta de Cádiz, cujo breve renascimento, ao início de 1820, também tinha inspirado a ação do Sinédrio.

Findamos com este número o segundo volume do nosso periódico neste ano, deixando nele registradas três revoluções importantes que obraram todas no mesmo sentido, a saber: a da Espanha, a de Nápoles e a de Portugal; argumento irrespondível de que as formas de governo até aqui existentes na Europa não concordam já com as ideias do século, e que acomodar-se a elas é o mais prudente partido que podem adotar os governos, se desejarem evitar as concussões de revoluções operadas pela força do povo, de cujo êxito ninguém pode responder. (Goes de Paula 2001, 93)

 

Ao comentar as diferentes formas de se estabelecer o método de eleger os constituintes às Cortes, Hipólito não deixa em nenhum momento de se preocupar com o Brasil, ao registrar que nas deliberações “nem se admite a existência de domínios ultramarinos”, acrescentando então: “Esta omissão nos parece um passo decisivo para a separação de Portugal do Brasil, o que na verdade sentimos que venha a ser um dos efeitos dessa revolução” (idem, 100).

No primeiro número de 1821, o 152, em janeiro, Hipólito se pronuncia sobre a convocação das cortes em Portugal, retroagindo então ao que tinha conseguido apreender a partir das repercussões da Revolução do Porto no Brasil: 

Depois de escrito o que fica acima [basicamente as lutas entre os “partidos” portugueses em torno da questão da seleção dos representantes às Cortes], recebemos notícias do Rio de Janeiro até 22 de novembro, quando já se sabia ali dos sucessos de Lisboa em setembro passado. 

Não temos tempo de dizer nada mais sobre este assunto, senão que apesar do conhecimento daqueles sucessos, não se tinha posto a menor interrupção à comunicação com Portugal; pelo contrário, continuavam a despachar-se navios, na forma usual, para o Porto e para Lisboa. (p. 151)

 

Hipólito se espantava com a inoperância e os embates confusos dos dirigentes e dos políticos portugueses, divididos entre diferentes “partidos”: o inglês, o francês e o espanhol. Aparentemente, o único a defender o “partido português”, isto é, o rei d. João e os interesses do país, como um todo, era ele mesmo. Ele julgava, não sem razão, que, entregue a si mesmo, sem o respaldo econômico do mais importante Reino da Coroa, Portugal não teria grandes chances de manter sua autonomia, numa Europa entregue a lutas entre as grandes potências. De fato, no decurso do século XIX, Portugal conheceu recaídas autoritárias, emendou diversas vezes a sua Constituição – por sinal reescrita por D. Pedro I, com base na que ele havia encomendando em 1824 para o Brasil – e se tornou praticamente inadimplente em diversos empréstimos externos ao longo do século, só escapando da humilhação imposta à Grécia e ao Egito, que passaram a ter representantes dos banqueiros controlando suas finanças e suas alfândegas, ou seja, as fontes de receitas (usadas para recolher os juros devidos). 

No segundo número do Correio de 1821, o de n. 153, datado de fevereiro, Hipólito aprofunda suas reflexões – sem dispor ainda das reações nas províncias aos acontecimentos passados na antiga metrópole – sobre a influência da revolução de Portugal no Brasil. O que ele escreve em seu principal artigo nessa área denota uma compreensão realista sobre o que se passava em sua terra e em Portugal, mesmo estando longe do Brasil desde 1793, e “ausente” de Portugal desde 1805: 

Dissemos repetidas vezes que lamentávamos a circunstância de não ter o Ministério do Brasil [sic; ou seja, o gabinete de d. João no Rio de Janeiro] começado as reformas políticas em Portugal que eram necessárias, antes que o povo as empreendesse por si mesmo; entre outras razões, porque tendo a revolução começado pelo povo e não pelo governo, era impossível prever seu êxito. Isto já não tem remédio em Portugal, ou mui fraco remédio terá, visto que somos entrados na revolução, que sempre desejamos se já evitasse; mas, como ela ainda não se manifestou no Brasil, o que a respeito dele se disser pode ainda ser ouvido a tempo, se ouvidos se prestarem enquanto isso pode servir.

Ninguém poderá duvidar que todos os passos da revolução de Portugal hão de ser sabidos e conhecidos no Brasil, e é impossível que as ideias revolucionárias de Portugal não façam ali [no Brasil] a mais profunda impressão. (Goes de Paula 2001, 152)

 

Hipólito continua a tecer considerações gerais sobre a responsabilidade das Cortes sobre as “formas constitucionais” que elas haveriam de decidir para Portugal e sobre o significado disso para o rei, e pergunta quais as consequências para o “Ministério do Brasil”, na impossibilidade de “impedir o curso natural das coisas, de passarem ao Brasil as ideias revolucionárias de Portugal” (p. 153). Sem ainda dispor de informações precisas quanto ao que estaria se passando no Brasil, Hipólito arrisca ainda assim especular sobre o que poderia se passar em sua terra, criticando mais uma vez os ministros d’el-rei e lembrando os processos de independência no entorno do Brasil: 

Porém, se ajuizamos acertados nossos conceitos, se a revolução de Portugal deve necessariamente passar ao Brasil, e se uma revolução popular naquele país pode ser acompanhada de resultados os mais desastrosos, quão culpados não devem ser os ministros que não adotarem medidas próprias para prevenir esses males? (...)

Não nos escusaremos de repetir o que tantas vezes temos dito, que forma de administração no Brasil hoje que ele é populoso, rico, comercial e polido com o trato do estrangeiro, é a mesma que existia há 300 anos, quando suas povoações constavam de mesquinhos presídios. No tempo antigo ninguém tinha ideia de outro governo que não fosse o absoluto; hoje em dia, até os rapazes falam em constituições políticas. (...)

Independente dos sucessos de Portugal, o Brasil está cercado por uma tremenda revolução na América Espanhola; sejam ou não sejam fantásticas essas ideias, estejam ou não estejam os povos do Brasil preparados para terem formas constitucionais, esse prurido deve obrar; e quanto menos preparados estiverem os povos, mais perigosos serão os seus desejos, e o meio de atalhar a explosão total é mostrar sinceridade de satisfazer a opinião pública, em tanto quanto for compatível com a prática: uma vez estabelecida a opinião dessa sinceridade do governo, metade das dificuldades estão vencidas. (...)

Sem que o povo acredite que o governo lhe prepara planos de melhoramento no sistema de administração, serão ineficazes todos os meios que se possam inventar para impedir os progressos de uma revolução popular, que já é manifesta em Portugal e labora para a explosão no Brasil; e parece-nos sumamente improvável que o povo acredite ou espere reforma alguma a seu modo, continuando a governar os mesmos homens que até aqui foram, ou se suspeitam que fossem, os apoios do sistema antigo. (idem, 153-4)

 

Foi o próprio Hipólito, aliás, que já havia afirmado, desde abril de 1820, que “todo o sistema de administração está hoje arranjado por tal maneira que Portugal e Brasil são dois Estados diversos, mas sujeitos ao mesmo rei” (Varnhagen 2010, 30). As províncias do Reino do Brasil foram se aquilatando das notícias de Portugal em tempos diversos, sendo que o Pará, por estar mais próximo, e a Bahia, tomaram posição mais cedo do que as demais partes do Brasil em prol da revolução e da convocação das Cortes em Portugal. Mas, como ainda indica Varnhagen, “a maior distância do Pará [com respeito ao Rio de Janeiro, e as dificuldades de ventos e correntes marítimas para se passar do Norte ao Sul do Brasil] fez com que primeiro chegasse ao Rio de Janeiro, no dia 17 de fevereiro [de 1821] a notícia da proclamação constitucional na Bahia” (2010, 40). Finalmente, a 7 de março, “havia sido recebido um ofício das Cortes de 15 de janeiro, pedindo a el-rei que regressasse a Lisboa, e manifestando vivo dissabor de não verem também no seu seio os representantes do Brasil” (idem, 53). Foi então que d. João resolveu retornar a Portugal, 

ficando o príncipe [seu filho Pedro] como regente do Brasil todo: terceira grande resolução em favor da futura unidade nacional. Na mesma data era decretada a convocação, por todo o Brasil, dos deputados às Corte de Lisboa, adotando-se para a marcha das eleições vários artigos da Constituição espanhola, que já haviam sido adotados para as eleições em Portugal. No Conselho de Estado, a respeito da partida de el-rei, fora Silvestre Pinheiro o único que votara contra, do que resultou dirigir-se no fim el-rei para o mesmo conselheiro, dizendo-lhe: – ‘Que remédio, Silvestre Pinheiro! Fomos vencidos.’ (Varnhagen, 2010, 53)

 

No n. 154 do Correio, correspondendo ao mês de março, Hipólito, finalmente, dá conta das repercussões da revolução do Porto no Brasil: 

No dia 1º de janeiro o povo do Pará, de concerto com a tropa, executou uma revolução com êxito tão pacífico como a de Portugal. Nomeou-se um governo provisional, proclamou-se a adoção de um governo constitucional, alegando-se com o exemplo de Portugal.

Pode alguém duvidar que a mesma cena se represente em outras capitanias do Brasil? Pode haver dúvida eu o único partido da Corte é entrar ela mesma na revolução, para lhe dar uma direção que seja a menos perniciosa possível no Brasil? 

Já em novembro passado houve um levantamento do povo no lugar de Bonito, na capitania de Pernambuco: acomodaram o motim as tropas que contra os revoltados mandou o general, mas este se fortificou no palácio da capital, depois de mandar prender várias pessoas de consideração como suspeitas de desafeição, entre as quais se acham alguns oficiais militares; e o general continua fortificado no seu palácio, rodeado de tropas, e até com artilharia assestada, para se defender em caso de ser atacado. Ora, não é esta a posição em que se devia ver um governador paternal no meio de uma população contente e satisfeita. (...)

Os procedimentos em Portugal, pelo que respeita o Brasil, têm até aqui levado a uma direção mui errada e até contraditória, e tal que nos parece tendente a causar a separação daqueles dois estados, se el-rei lhe não der o único remédio que lhe há próprio. 

Primeiramente, quando se promulgou em Portugal o regulamento para a eleição dos deputados de Cortes, copiado da Constituição espanhola, excluíram-se todos os artigos que diziam respeito aos domínios ultramarinos, dizendo-se que não tinham aplicação.

Por que não tinha aplicação? Se a revolução em Portugal era tendente a melhorar o estado da monarquia, sem dúvida que a primeira consideração devia ser a preservação de toda a mesma monarquia, e conservação de sua integridade; e o tentar fazer uma Constituição para toda ela por meio de deputados de uma só parte, é lançar os fundamentos à mais justificada desunião: e se o povo de Portugal assenta que como povo tem o direito de escolher para si a constituição que quiser, e não a outrem lhe imponha, seguramente deve convir que não tem direito de ir impor essa constituição que fazer ao povo do Brasil, que nela não teve parte. 

E que maior causa de divisão e discórdia se pode apresentar a duas porções de uma monarquia do que tentar uma delas ditar leis constitucionais sem primeiro buscar de ouvir o voto da outra? (Goes de Paula 2001, 160-1)

 

Nos meses seguintes, Hipólito continuou a dar, nos números sucessivos do Correio, “as mais amplas notícias dos debates na Cortes que eram compatíveis com o nosso periódico”, isto é, consoante seu desejo de “darmos a nossos leitores do Brasil amplos conhecimentos do que tanto lhes convém saber” (Correio, n. 154, vol. XXVI, março de 1821, 346). Não obstante, falando da volta d’el-rei a Portugal no n. 155 (abril), Hipólito se declarava favorável a continuidade da “integridade da monarquia, que tanto desejamos; mas que essa integridade se não preservará, se el-rei, quer numa, quer noutra hipótese [ou seja, partir ele a Lisboa ou “ficar por ora no Brasil”],

se servir de um ministério impopular, que não tendo a seu favor a confiança da nação, antes sendo suspeito de querer favorecer as classes privilegiadas contra os interesses da massa do povo, não poderá obrar causa alguma, ainda que boa seja, pela qual consiga inspirar a concórdia e união entre as diversas partes da monarquia. (Goes de Paula 2001, 183)

 

Foi apenas no n. 156 do Correio, correspondendo ao mês de maio, que Hipólito reporta que o povo do Rio de Janeiro, aos 26 de fevereiro, “cansado de esperar pelo que faria o governo a seu favor, seguiu o exemplo do resto da monarquia”, ou seja, “declarou-se pela Constituição” (idem, 191). Hipólito envereda pelo resto do artigo numa diatribe contra os ministros corruptos do rei, sem nomear a todos individualmente, mas expressando reservas quanto ao conde de Palmela, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, dando a impressão de que ele seria um dos que faziam parte da corrupção geral, traindo o rei, dizendo-lhe falsidades, ocultando a verdade. Ele também continua a seguir cada um dos movimentos políticos em curso, dentro e fora de Portugal, no Brasil e na Europa. Mais adiante, acusou, por exemplo, o mesmo conde de Palmela, ministro de D. João VI na Europa, de tramar a contrarrevolução, por meio de um conciliábulo de diplomatas reunidos em Paris. De fato, a Santa Aliança estava preocupada com o que ocorria na Espanha, em Portugal e em Nápoles.

Pelo resto desse ano de 1821, Hipólito Hipólito da Costa permanece atento aos trabalhos das Cortes, e transcreve, no volume XXVI do Correio, praticamente todas as sessões realizadas pelas Cortes, notadamente os princípios estabelecidos para elaboração da futura Constituição, as “Bases”, que a Regência no Brasil, a cargo de príncipe D. Pedro, deveria jurar. As Cortes só se decidiram a convocar deputados do Brasil depois que as revoltas também se manifestam no reino americano, por meio de um decreto da Regência de 24 de abril (Correio, n. 157, junho 1821, 595-597). Hipólito considerou que esse decreto vinha “mui fora de tempo” e que também era limitativo, uma vez que só admitia deputados que representassem as cidades “onde houvesse Juízes de Fora, como se os povos dos lugares onde não há juízes letrados não tivessem igual direito que os outros a serem representados” (Idem, ibidem, p. 671). 

Nas Cortes de Lisboa, o Brasil tinha direito a 72 deputados, mas só 46 compareceram, e muito atrasados, o que os deixou em minoria em face dos portugueses, que tinham 100 deputados. Com raras exceções, os deputados do Pará, do Maranhão, do Piauí e da Bahia, as províncias mais ligadas a Lisboa por laços de comércio e diversos outros vínculos, alinhavam-se com os portugueses e “votaram sistematicamente contra as propostas brasileiras das demais regiões.” O padre Feijó, representante paulista, reconheceu a realidade: “Não somos deputados do Brasil, porque cada província se governa hoje independentemente” (Gomes 2010, 63).

Numa primeira etapa, os representantes brasileiros naquelas Cortes pretendiam manter a unidade dos dois reinos, em pé de igualdade, como ainda proclamava quatro meses antes do Grito do Ipiranga o próprio irmão de José Bonifácio, o deputado paulista Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, que estava “plenamente convencido de que Portugal ganha com a união do Brasil e o Brasil com a de Portugal” (Gomes 2010, 84). A questão da unidade do Brasil com Portugal teimava em alimentar os argumentos de Hipólito ao início do ano seguinte, a despeito de sinais precursores de que algo não andava bem. Escrevendo em fevereiro de 1822, Hipólito considerava essa união 

... de suma utilidade para ambos os países [...] na suposição de que sendo o Brasil tão superior a Portugal em recursos de toda a natureza, a objeção para a continuação desta união provinha de algumas pessoas inconsideradas no Brasil que desejavam a separação dos dois países antes que ela devesse ter lugar pela ordem ordinária das coisas. 

Nessa suposição, recomendando a união, temos sempre dirigido nossos argumentos aos brasilienses [que para Hipólito eram os naturais do Brasil, em contraposição ao “brasileiro”, que seria “o português europeu ou o estrangeiro que vai lá negociar ou estabelecer-se”], não nos ocorrendo sequer a possibilidade que nos portugueses europeus pudessem existir essas ideias de desunião; porque a utilidade deles, na união dos dois países, era de primeira evidência.

Mas infelizmente achamos que as coisas vão muito pelo contrário, e que é entre os portugueses e alguns brasileiros, e não entre os brasilienses, que se fomentam e se adotam medidas para essa separação, que temos julgado imprudente por ser intempestiva, e que temos combativo na suposição de que os portugueses europeus nos ajudariam [aos brasilienses] em nossos esforços para impedir, ao menos por algum tempo, essa cisão. (Correio Braziliense, vol. XXVIII, n. 165, fevereiro de 1822, 165-6.) 

 

Em julho de 1822, Hipólito assumiu novo posicionamento em relação à independência do Brasil. Sua mudança de atitude se deu no quadro dos debates nas Cortes portuguesas, quando estavam sendo discutidas diversas medidas no sentido de “recolonizar” o Brasil. De fato, além de discutir os artigos da nova Constituição, as Cortes dedicavam-se igualmente a legislar sobre os assuntos imediatos. O historiador do século XIX Handelman refletiu em sua História do Brasil, algumas dessas disposições específicas ao Reino Unido do Brasil, a partir de então muito menos unido:

As Cortes, depois de romperem pelo decreto de 24 de abril a unidade política e a organização política autônoma do Brasil, depois de haverem por um segundo decreto, de 28 de julho, incorporado as tropas nacionais brasileiras ao exército português, agora, com uma série de novas resoluções, acabavam de destruir todas aquelas instituições que ainda faziam lembrar que o Brasil havia sido durante algum tempo um reino independente e equiparado a Portugal, como país irmão, com os mesmos direitos.

Um decreto provisório, de 29 de setembro, aniquilava todo o aparelhamento do poder central do Brasil; as altas autoridades administrativas, o Supremo Tribunal, etc., que desde 1808 funcionavam no Rio, finalmente a regência que o rei havia deixado à sua partida, tudo foi suprimido. Como já havia acontecido nas restantes províncias, era agora estabelecida também no Rio de Janeiro, para a administração dessa província, uma junta, e todos esses governos provinciais deviam de novo, como antes, entender-se diretamente com o gabinete de Lisboa; igualmente as coisas da justiça, os processos das instâncias deviam passar ao Supremo Tribunal português. Segundo decreto da mesma data dispensava, consequentemente, o príncipe regente das obrigações do seu cargo e o convidava a, dentro de determinado prazo, voltar para Portugal, via Inglaterra, França e Espanha. (Handelman 1931, 765-766) 

 

No mês de setembro seguinte, Hipólito, a despeito de sua discordância com várias medidas cogitadas nas Cortes, ainda proclamava sua confiança na manutenção da unidade, manifestando que essa era uma condição de manter a liberdade lá e no Brasil:

Que a maioridade do Brasil deseja continuar em sua união com Portugal é o que se manifesta pelas declarações de todas as cidades capitais de províncias, que sucessivamente foram reconhecendo o sistema constitucional; e contudo, pode muito bem haver, e sabemos que há, algumas pessoas que julgam ser chegado o tempo do Brasil se separar da sua antiga metrópole. Este partido, porém, o julgamos por ora pequeno; e os que desse partido forem sinceros facilmente se convencerão que vão errados: os outros que obrarem assim por motivos menos honrosos do que a persuasão de que obram a favor de sua pátria não merecem que se argumente com eles. [...]

A nossa decidida opinião vai exatamente de acordo com a desta maioridade do Brasil; porque se o Brasil tem de ser um dia independente da Europa, nada lhe pode ser mais conveniente do que ir de acordo e em união com Portugal, até que ambos tenham conseguido estabelecer as suas formas constitucionais de governo; porque se antes disso se desunirem, seja por que pretexto for, o partido despótico [ou seja, os conservadores que desejavam a continuidade de uma monarquia absoluta] achará fácil meio nessa desunião de os vencer a ambos separadamente e calcar aos pés a liberdade nascente. (Correio Braziliense, XXVII, n. 160, setembro de 1821, 234-35.)

 

Nesse mesmo mês de setembro, a Constituição Política da Nação Portuguesa, aprovada ao final de 1822, estipulava, em seus artigos 128 a 131 – capítulo II, “Da delegação do Poder Executivo no Brasil”, do Título IV (Do Poder Executivo ou do rei) –, o seguinte:

128 – Haverá no reino do Brasil uma delegação do Poder Executivo, encarregada a uma Regência, que residirá no lugar mais conveniente que a lei designar. Dela poderão ficar independentes algumas províncias e sujeitas imediatamente ao Governo de Portugal.

129 – A Regência do Brasil se comporá de cinco membros, um dos quais será o presidente, e de três secretários, nomeados uns e outros pelo rei, ouvido o Conselho de Estado. Os príncipes e infantes (art. 133) não poderão ser membros da Regência.

130 – Um dos secretários tratará dos negócios do reino e fazenda; outro dos de justiça e eclesiásticos; outro dos de guerra e marinha. (...)

131 – Assim os membros da Regência, como os secretários, serão responsáveis ao rei. 

 

A conformação tentativa de uma nova modalidade de pacto colonial em muito acelerou o processo de independência no Brasil. Com efeito, o projeto de regulamentação das relações comerciais Brasil-Portugal, tomado no âmbito da Constituinte lusitana, “foi a última resolução de caráter econômico tomada pela antiga metrópole em relação ao Brasil colonial” (Brito 1980, 405) Segundo esse projeto, os produtos estrangeiros que entrassem no Brasil passariam a pagar direitos de 55% ad valorem, ao passo que os impostos de exportação aplicados a produtos brasileiros vendidos a terceiros países passariam a pagar 12% (Idem, p. 403). Quando ele foi aprovado, contudo, o Brasil já tinha declarado sua independência. 

Ao conformar-se a independência do Brasil, Hipólito estava dando por encerrada sua missão de informador crítico e de defensor da liberdade de imprensa no Brasil. No último número do Correio, em dezembro de 1822, Hipólito teceu considerações sobre a “Constituição do Brasil”, alertando que ela seria “obra do tempo e da experiência”, e que se deveria evitar “abranger casos particulares”, pois dessa forma seria “menos perfeita”: 

E tanto melhores serão as leis de um Estado, quanto mais se limitarem às regras gerais, claras e compreensivas.

Se considerarmos as partes mais belas da Constituição inglesa, as que são mais dignas de imitar-se e suscetíveis de serem adotadas em todos os governos constitucionais, acharemos, pela lição da história, que essas sábias instituições inglesas não foram arranjadas por uma vez, nem apareceram repentinamente à voz do legislador, como o decreto do onipotente fiat lux produziu em um momento o efeito que o criador se propunha. Foi a experiência, foram os repetidos ensaios, foram os melhoramentos sucessivos, foi enfim, a prudência dos legisladores em aproveitar os momentos, em adaptar suas medidas às circunstâncias em que se iam achando os povos na série dos acontecimentos políticos, que fez chegar essas partes da Constituição inglesa, a que aludimos, ao grau de perfeição em que as vemos agora. [...]

Por outra parte, nos Estados Unidos da América setentrional, tomando-se por base que os costumes daqueles povos eram análogos aos dos ingleses, adotou-se a Constituição da Inglaterra, só com aquelas modificações que a natureza das circunstâncias exigia; essa Constituição dura, e durará, porque foi fundada na experiência, e só estabeleceu regras gerais; as ocorrências vão mostrando a maneira de a pôr em prática e essa mesma prática estabelece uma Constituição de costume, que é a mais duradoura que uma nação pode ter. [...]

A Constituição de qualquer Estado, bem como as demais leis não podem durar eternamente; porque é sempre mutável a situação dos homens e quando as circunstâncias variam, forçoso é que variem também as leis. (Correio Braziliense, XXIX, n. 175, dezembro de 1822, 604-6)

 

 

 

 


 

Bibliografia:

 

Brito, José Gabriel de Lemos, 1980. Pontos de partida para a história econômica do Brasil, 3ª ed.; São Paulo: Companhia Editora Nacional/INL-MEC.

 

Costa, Hipólito José da, 2002-2003Correio Braziliense, ou, Armazém Literário. reedição fac-similar; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Correio Braziliense; coordenação de Alberto Dines e Isabel Lustosa (disponível Biblioteca Mindlin-USP: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm-ext/1303; acesso: 10 mar. 2021).

 

Goes de Paula, Sergio (org., introdução) (2001). Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34; coleção Formadores do Brasil.

Gomes, Laurentino, 2010. 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil, um país que tinha tudo para dar errado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Handelman, Henrique, 1931. História do Brasil (1861). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Revista do Instituto Histórico Brasileiro, tomo 108, vol. 162, 2º de 1930; tradução de Lucia Furquin Lahmeyer; 2 vols.

 

Varnhagen, Francisco Adolfo, 2010. História da Independência do Brasil. Brasília: Senado Federal.