Apogeu e queda da família Andrada e Silva
Correio do Brasil 7/5/2015 15:00
Por Adelto Gonçalves, de Amparo
As conspirações políticas pré e pós nossa Independência de Portugal acabaram custando o exílio para os irmãos Andradas
Considerado o personagem mais influente da História do Brasil no começo do século XIX, José Bonifácio de Andrada e Silva
(1763-1838) foi figura-chave nas tratativas políticas que levaram à
separação do Brasil de Portugal em 1822, a ponto de hoje ser mais
conhecido como o Patriarca da Independência. Filho de uma família
oligarca estabelecida na vila de Santos, teve educação esmerada e
alcançou em Portugal postos que poucas pessoas nascidas no Reino
alcançaram, antes de retornar ao Brasil disposto a gozar de uma merecida
aposentadoria, plano que teve de adiar depois de engolfado pelos
acontecimentos que se sucediam à grande velocidade, primeiro na
capitania de São Paulo, e depois na Corte, no Rio de Janeiro.
É essa brilhante trajetória que a professora Miriam Dolhnikoff
reconstrói em José Bonifácio, 12º livro da Coleção Perfis Brasileiros da
Companhia das Letras, depois de consulta às principais obras impressas
que reúnem não só os discursos e papéis soltos do influente brasileiro
como aquelas que mais recentemente serviram para jorrar mais à luz ao
contexto histórico em que se deu a independência brasileira. Embora
tenha sido membro da Academia das Ciências de Lisboa, José Bonifácio
escreveu poucos livros, um de poesia, quando no exílio, e obras
técnicas.
Mas, ao contrário dos políticos brasileiros de hoje – em boa parte,
iletrados e até mesmo apedeutas –, preparou-se a vida inteira para
ocupar postos importantes no reino luso-brasileiro. Mineralogista, foi
um homem de seu tempo, ou seja, um cientista que, como era habitual na
época, transitava pelos vários ramos do saber. Por isso, além de estudar
as matérias de sua especialidade, lia vorazmente autores clássicos e
contemporâneos de filosofia, história, política e economia, como
assinala a sua biógrafa.
II
Depois de enviado pela família para estudar em Coimbra, José
Bonifácio construiria sua carreira no Reino, só retornando ao Brasil na
idade madura. Em 1804, aos 41 anos, já se considerava desiludido com os
rumos de Portugal e do Brasil, sem poder colocar em prática os
conhecimentos que obtivera em viagens de estudos pela Europa pagas pelo
próprio governo, por causa das redes burocráticas da monarquia
absolutista que impediam qualquer tentativa de modernização. Como
destaca Miriam Dolhnikoff, para ele, o problema não estava apenas no
governo, mas também no povo nos dois lados do Atlântico, que reputava
vil e ignorante. Foi o que deixou escrito. Também o anticlericalismo foi
um aspecto marcante em seu pensamento. Para ele, a Igreja era sinônimo
de obscurantismo, dogmatismo e atraso cultural. Sem contar que havia
sido sempre um ponto de apoio para aqueles que defendiam o regime da
escravidão, sistema que considerava responsável pelo atraso da colônia.
Parece que a ideia de se dedicar ao seu sítio nos Outeirinhos, em
Santos, era apenas um discurso para o público externo, pois há
documentos em que ele pleiteia do governo a indicação para
capitão-general e governador, primeiro, de Santa Catarina e, depois de
São Paulo, propósitos que nunca alcançou. Mas o melhor do livro,
obviamente, é a parte reservada a sua participação na separação. De
início, a historiadora lembra que, como pesquisas mais recentes já têm
adiantado, a proclamação da Independência não pode mais ser atribuída a
uma possível intenção das Cortes de recolonizar o Brasil. O que estava
em jogo era o perfil que teria a nova monarquia constitucional. De um
lado, os americanos queriam autonomia para defender seus interesses
específicos, enquanto, de outro, os portugueses queriam uma monarquia
centralizada em Lisboa. Até porque estavam cansados de viver como
colônia da antiga colônia, como se lê no manifesto dos rebeldes do Porto
de fevereiro de 1821, exigindo o retorno de d. João a Portugal.
A autora mostra muito bem como José Bonifácio, três anos depois de
fazer uma eloquente defesa da monarquia absolutista, soube aderir à
monarquia constitucional e preconizar, ao mesmo tempo, um governo forte,
a uma época em que a América portuguesa podia seguir o caminho dos
vizinhos espanhóis, cindindo-se em várias nações sob governos
republicanos. Em outras palavras: defendia poderes suficientes nas mãos
de D. Pedro I para “centralizar a União e prevenir desordens”.
Naturalmente, esses poderes acabariam por cair também em suas mãos, já
que seria o principal ministro do novo imperador. E deles se utilizou ao
dirigir um processo que privilegiava a mudança com ordem.
No poder, para construir a nova nação, teria muito trabalho com a
oposição política, até mesmo por causa da personalidade dúbia de D.
Pedro I. Contaria com o apoio de seus irmãos, Antônio Carlos e Martim
Francisco, e outros amigos leais. Finalmente, D. Pedro I cederia à
oposição, inconformada com os poderes excessivos do ministro,
estimulando a saída de José Bonifácio do governo. José Bonifácio deixou
escrito que sua queda teria sido articulada pelo próprio imperador.
Os acontecimentos iriam se agravar até que vieram o fechamento da
Assembleia Constituinte e a decretação da pena de deportação para alguns
deputados, entre eles os irmãos Andradas. Em novembro de 1823, José
Bonifácio, Martim Francisco e Antônio Carlos foram presos e condenados
ao exílio.
III
Se algo se pode acrescentar – o que não significa qualquer reparo à
obra –, é para ressaltar que a força política da família Andrada vinha
desde o começo da segunda metade do século XVIII e alcançou o seu auge,
obviamente, às vésperas de 1822, indo até 1823. Um exemplo é a atuação
de Antônio Carlos, irmão de José Bonifácio, que, como rebento da
oligarquia, escapou de punições severas de que, fosse ele filho de uma
família mais humilde, nunca teria escapado.
É de lembrar que Antônio Carlos e seu irmão Martim Francisco,
enquanto José Bonifácio permanecia em Lisboa, andaram às turras com o
governador da capitania de São Paulo, Franca e Horta. Em outubro de
1806, sendo Antônio Carlos juiz de fora da vila de Santos, sua mãe Maria
Bárbara pediu explicitamente ao príncipe regente o afastamento do
governador, acusando-o de ter prejudicado os negócios de sua família.
Depois, em 1811, quando já estava afastado do cargo de juiz de fora,
Antônio Carlos seria acusado de mandante do assassinato do comerciante
José Joaquim da Cunha. Quem fez a acusação foi a viúva, D. Bárbara
Emília, que assistira, em sua própria morada, em Santos, à morte do
marido por embuçados armados.
A devassa aberta nada apurou contra Antônio Carlos, que a essa altura
já estava nomeado ouvidor da capitania de São Paulo. Mulher de posses,
D. Bárbara mudou-se para o Rio de Janeiro e pediu ao príncipe regente a
abertura de nova devassa, argumentando que a primeira havia sido um jogo
de cartas marcadas. Afinal, o novo juiz de fora, João Carlos Leal,
responsável pelas investigações, seria amigo de Antônio Carlos, tendo
inclusive sido hóspede na casa do antecessor. Já o ouvidor da capitania,
Miguel Antônio de Azevedo Veiga, não quis, a princípio, fazer a
devassa, dando-se por suspeito porque iria julgar o seu sucessor e só o
fez depois que recebeu ordem régia. Haja esprit de corps…
Já Antônio Carlos preferiu homiziar-se na freguesia de São Gonçalo da
Praia Grande de Niterói, valendo-se de suas ligações com os meios
maçônicos. Nada ficaria provado contra si, mas Antônio Carlos não
assumiria o cargo de ouvidor. Ainda assim, acabaria por ser indicado
para auditor de guerra em São Paulo. Em 1815, depois de injunções da
família, seria nomeado ouvidor da comarca de Olinda, na capitania de
Pernambuco.
Dois anos depois, no cargo, iria aderir a uma rebelião contra o
governador e capitão-general Caetano Pinto de Miranda Montenegro. Os
revoltosos implantaram um governo provisório, proclamando uma república
de inspiração maçônica. No entanto, 74 dias depois, o governo
revolucionário entraria em crise e cairia, depois do bloqueio do Recife
por tropas enviadas do Rio de Janeiro. Antônio Carlos foi preso e
encaminhado para a Bahia. No cárcere, sofreria torturas. Como defesa,
alegaria que havia sido constrangido a aderir à sedição. Parece que
assim evitou o pior: os demais acusados seriam enforcados e teriam mãos e
cabeças decepadas.
Ficaria preso na Bahia até 1821, quando foi libertado pelo governo
imperial, provavelmente por influência de José Bonifácio, que havia
retornado de Portugal ao final de 1819. E, em fevereiro de 1822, Antônio
Carlos chegaria a Lisboa como representante da província de São Paulo
às Cortes. Como explicar tamanha reviravolta na vida de um acusado de
sedição? Só mesmo o poder e a influência de sua família e, mais
especificamente, de seu irmão poderiam oferecer uma explicação
plausível, já que para os rebentos da oligarquia tudo – ou quase tudo –
seria permitido. Ou pelo menos para alguns desses rebentos. Guardadas as
devidas distâncias e circunstâncias, ainda hoje é assim.
Infelizmente, o perfil de José Bonifácio traçado por Miriam
Dolhnikoff pouco acrescenta a esse episódio. Por isso, fica aqui a
sugestão para algum pesquisador que esteja disposto a vasculhar os
documentos da época e aprofundar a questão. As informações que este
articulista colocou aqui neste tópico foram tiradas de documentos
manuscritos da capitania de São Paulo do Arquivo Histórico Ultramarino
(AHU), de Lisboa, que também podem ser encontrados em microfilmes e
CD-Rom no Arquivo do Estado de São Paulo (AESP).
IV
Miriam Dolhnikoff , formada em Direito e História pela Pontifícia
Universidade Católica (PUC), de São Paulo, é mestre e doutora em
História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP), onde é
professora. Pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(Cebrap), é autora de O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil
(São Paulo, Editora Globo, 2005) e organizadora dos textos de José
Bonifácio de
Andrada e Silva reunidos em Projetos para o Brasil (1998), publicado pela Companhia das Letras.
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JOSÉ BONIFÁCIO, de Miriam Dolhnikoff. São Paulo: Companhia das
Letras, 360 págs., R$ 44,50, 2012. Site: www.companhiadasletras.com.br