Moeda Única no Mercosul: uma agenda para os debates
Paulo Roberto de Almeida
Circulado na lista Mercosul
(mercosul@yahoogrupos.com.br)
em 16/02/2002
(ver mensagem inicial do debate, in fine]
Meu caro Letácio [Jansen, colega de lista e amigo pessoal] e demais colegas interessados na moeda única do Mercosul,
“Que fazer?”, era o título de um panfleto de Lênin, num momento (1902) em que o partido social democrata russo enfrentava graves impasses em seu programa político e em sua atividade pratica, e ele pretendeu dar uma nova orientação ao movimento. Conseguiu, mas à custa da divisão dos socialdemocratas em bolcheviques e mencheviques, sendo que estes últimos seriam depois massacrados pelos primeiros, quando conseguiram tomar o poder em 1917. O resto é história...
A moeda única do Mercosul pode ter outra história, mas não podemos ser profetas, nem fazer construções utópicas. A pergunta é pertinente, desde que saibamos os limites de nossa atuação e os demais limites que nos impõem a realidade...
As recentes decisões tendentes a favorecer a agenda da moeda única no Mercosul são, sem dúvida, encorajantes, mas não nos deixemos iludir pelas circunstâncias. Todo esse palavreado atual sobre a moeda única tem objetivo algo encantatórios, como se se tratasse de afastar maus espíritos e ameaças de catástrofe, como ocorre atualmente com a Argentina e a crise do Mercosul (criada, alias, pelas malcriações do ex-ministro Cavallo).
Falar de IMM, agora, serve para criar um certo clima de confiança, sinalizar que os países membros continuam a avançar no caminho da integração, enfim exibir um certo otimismo de fachada, quando sabemos que os problemas reais permanecem intocados.
O objetivo é louvável, mas, sem querer tocar no velho refrão do carro na frente dos bois, sejamos realistas: não é o fato de falar da (ou tentar implementar, contra ventos e marés, a) moeda única que vai resolver os graves problemas de instabilidade econômica na Argentina e dar uma nova impulsão ao Mercado Comum.
Uma moeda comum, nas circunstâncias de um processo de integração (isto é, eliminando-se a adoção negociada, como Bélgica e Luxemburgo, incorporação estatal, renúncia unilateral de soberania, etc.), significa, nada mais, nada menos, do que a concretização plena de um mercado comum: ela é a consequência logica e, por vezes incontornável, dessa unificação do espaço econômico, de maneira tão completa que sua adoção se torna quase natural. Foi um pouco o que ocorreu na Europa, depois de realizado o Ato Único de 1986 e implementadas as medidas constantes do processo de unificação completa dos mercados em 1993.
Convenhamos que o Mercosul está longe, muito longe, longíssimo mesmo dessas etapas necessárias e incontornáveis. Mais ainda: não existem, estruturalmente, as mesmas condições “naturais” de integração completa dos mercados como na Europa, e, no plano monetário, a situação é totalmente diferente (para o negativo), requerendo ainda muitos anos de completa estabilidade macroeconômica e de avanços reais no processo de integração para podermos realmente colocar o tema da moeda na agenda.
Mas, admitamos por um momento que chegou o momento de falar da moeda única. Que fazer então? Criar um IMM vai servir para alguma coisa? Não creio, sinceramente, mas para não parecer totalmente negativo, admitamos que ele possa servir para fazer avançar um pouco mais o DEBATE (não ainda as medidas reais) em torno da futura, eventual, hipotética, possível moeda comum (vocês estão vendo que, se eu estou disposto a me sacrificar pelo Mercosul, não morreria pela moeda única, por razoes que já expus aqui).
Mas, como tudo no Mercosul é político, e não exatamente econômico, temos de considerar a criação do IMM como uma espécie de fait accompli e partir daí para avançar um pouco mais. Ele pode servir para muita coisa, entre outras introduzir um pouco mais de constrangimentos racionais (e realistas) ao arbítrio econômico dos dirigentes nacionais. Sempre considerei o Mercosul um pouco como essa tia severa que não deixa seus sobrinhos irresponsáveis sair por aí fazendo bobagens (tarifárias, fiscais, setoriais, orçamentárias etc.). Se o IMM e a ideia de moeda única também servirem para disciplinar nossos países na linha dos good fundamentals, excelente, esta poderia ser sua missão histórica.
Dito isto, volto ao Que fazer?
Não creio, com perdão do Letácio, que devamos comparar os estatutos do IMM (inexistente ao que saiba e aparentemente uma mera construção no papel, quando não uma simples decisão, sem qualquer coisa de concreto atrás) com os do antigo IME, que se converteu em BCE seis meses antes da fixação irrevocável das taxas de cambio nos países candidatos a UEM europeia, ou seja, em junho de 1998. Não se pode comparar o incomparável ou o físico com o diáfano, inclusive porque, mesmo existindo essa obra de ficção cientifica que se dá o nome de IMM, ele teria funções completamente distintas do finado IME, que era o BCE in pectore.
Não creio tampouco que se deva discutir agora a questão da supranacionalidade no (ou do) Mercosul, não porque me oponha a discussões teóricas (quem sou para proibir qualquer coisa?), mas porque simplesmente ela não está na agenda e não vai nos levar a nada.
Sou, sim, a favor de se comecar a estudar as etapas e condições concretas que permitiram o surgimento, em última instancia, do euro. Isto implica em retomar o caminho não só da integração, na Europa e no Mercosul, mas também examinar as condições peculiares sob as quais foram dados os avanços monetários e de coordenação de políticas macroeconômicas naquele continente, e em circunstâncias adversas nos nossos próprios países.
Não quero parecer ambicioso demais, nem traçar um grande projeto de estudos jurídicos ou econômicos, mas a História sempre é boa conselheira (desde que não nos deixemos amarrar por ela, nem mistifiquemos seus itinerários, sempre únicos e originais).
Eu começaria, por exemplo, na própria União de Pagamentos Europeia, um sistema de clearing administrado pelo BIS nos anos 50, com dinheiro americano, que precedeu a decretação da conversibilidade das moedas europeias (1958) e o levantamento das restrições aos pagamentos correntes. Precisaríamos examinar depois os códigos da OCDE de liberalização de movimento de capitais e de transações correntes, ao lado das disposições do convênio constitutivo do FMI e o funcionamento do G-10 e do GAB. Podemos analisar também as diferentes fases da coordenação monetária europeia pós-Bretton Woods, os mecanismos de intervenção dos bancos centrais, o ERM e o SME, as bandas internas entre certas moedas europeias (sobretudo o bloco do deutsche mark) e as primeiras tentativas de unificação monetária (relatório Werner, por exemplo).
Fundamental, no entanto, será examinar as disposições relativas a UEM em Maastricht e o processo que se seguiu em três etapas desde 1993: independência dos bancos centrais e constituição do IME, decretação das paridades fixas das moedas candidatas, em janeiro de 1999 e, finalmente, agora em janeiro, a introdução do euro. O mais importante será examinar os critérios de Maastricht e seus pré-requisitos, para ver até que ponto os países do Mercosul estão prontos ou dispostos a caminhar nessa direção (pois tudo é uma questão não apenas de vontade, mas de disciplina, o poder fazer seguido do agir).
Tudo isso obviamente sem prejulgar que o Mercosul deva necessariamente ter moeda comum, pois se você começa um processo com uma meta preestabelecida, independentemente das condições reais, isso não é união monetária, isto é fundamentalismo monetário.
Resumo o Que Fazer?: analisar o itinerário monetário europeu em todas as suas facetas, e estudar ao mesmo tempo nossas próprias particularidades, para ver se temos condições de seguir avançando na direção dessa “ideia”. Entendo que o IMM servirá de “think tank” para tudo isso. Nós somos apenas livres atiradores, mas podemos ainda assim dar nossa contribuição ao debate, atuando como cidadãos e como estudiosos voluntários.
Tenho apenas uma condicionalidade nesse processo: para mim, Mercosul, moeda única e outros instrumentos integracionistas não são fim em si mesmos, mas apenas meios, mecanismos para realizar um fim desejável: o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Não me lanço nesse tipo de empreendimento por alguma bela ideia estética do Mercosul, mas por acreditar que ele possa contribuir para essa (esta sim) ideia fixa: o desenvolvimento do Brasil (não falo dos outros países, pois minha atuação refere-se apenas às minhas obrigações e consciência como cidadão brasileiro, e acho que cada um deve cuidar do seu país primeiro). Se a moeda única ajudar nessa meta, excelente, mas como disse não sou fundamentalista.
Bons estudos a todos…
Paulo R. Almeida
pralmeida@mac.com
www.brasilemb.org
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From: "Letácio Jansen" letaciojansen@yahoo.com
Reply-To: mercosul@yahoogrupos.com.br
Date: Sat, 16 Feb 2002 17:35:56 –0800
To: mercosul@yahoogrupos.com.br
Subject: [mercosul] Que fazer ?
Prezados companheiros da Lista:
Diante da constituição do INSTITUTO MONETÁRIO DO MERCOSUL, sinalizando a institucionalização da moeda única regional no cone Sul, o debate que vinha sendo travado há cerca de dois anos sobre o tema na nossa Lista de Discussão, mudou de nível, "saindo do nosso controle", por assim dizer, e aumentando a nossa responsabilidade.
Embora a nossa Lista não tenha meios eficazes de ação, ainda assim levamos uma certa vantagem, já que em nenhum outro âmbito discutiu-se tanto o assunto como aqui.
Devemos preservar o método que temos adotado até agora, que é o debate livre, que permitiu com que o assunto ficasse em pauta e despertasse o interesse das pessoas durante tanto tempo.
A nossa força está em que somos uma Lista ... de discussão, e é a discussão, portanto, que deve ser estimulada.
Já temos o que fazer de imediato. O Instituto Monetário do Mercosul deve ter-se inspirado e seguido o modelo do Instituto Monetário Europeu. Poderíamos começar comparando as normas das duas entidades, para ver até que ponto os patrocinadores do IMM decidiram avançar.
Devemos debater, também, desde logo, a questão da supranacionalidade no Mercosul. Será viável manter-se a "estrutura deliberadamente anêmica” do Mercosul, de que sempre fala o Paulo Roberto? Penso que não.
Não vai ser fácil administrar a tecnoburocracia dos Bancos Centrais e dos Ministérios da Economia da região. A nossa cultura ibérica - e católica - reage contra a moeda, como se ela fosse uma faceta do demônio. Precisamos reverter essa falsa ideia: uma moeda bem estruturada é uma excelente forma de disciplinar a conduta das pessoas na sociedade, melhor do que o Direito tradicional.
Continuemos, pois, a debater livremente. O fato de não termos um público leitor muito grande não nos deve intimidar. Se a nossa discussão continuar a ser criativa, mais cedo ou mais tarde os membros do Instituto Monetário do Mercosul gostarão de saber o que estamos pensando.
Abraços do Letácio Jansen
Direito Internacional Privado & Mercosul Website
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