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quarta-feira, 13 de outubro de 2021

A revolução liberal de 1820 como precursora da independência do Brasil: o papel do Correio Braziliense de Hipólito da Costa - Paulo Roberto de Almeida

 A revolução liberal de 1820 como precursora da independência do Brasil: o papel do Correio Braziliense de Hipólito da Costa

The 1820 liberal revolution as a forerunner of Brazilian Independence: the role of Hipolito da Costa’s Correio Braziliense

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, Ministério das Relações Exteriores; professor no Ibmec-Brasília (pralmeida@me.com)

Colaboração ao Congresso Internacional sobre a Revolução de 1820;

Painel temático: As revoluções na América do Sul.

Apresentado em sessão online, coordenada pela Prof. Lúcia Maria Bastos Neves, em 13/10/2021; disponível no blog Diplomatizzando e na plataforma Academia.edu.

 

 

Resumo: Identificação e contextualização dos principais relatos e comentários feitos pelo jornalista brasileiro Hipólito da Costa em seu periódico londrino Correio Braziliense, a respeito da Revolução do Porto, em 1820, e seu impacto no Brasil, nos dois anos seguintes, durante o funcionamento das Cortes constitucionais de Lisboa, tal como repercutidos minuciosamente nas páginas do jornal. Hipólito da Costa foi mais do que um repórter dedicado a informação objetiva sobre os eventos, pois que, pelo seu conteúdo analítico e opinativo, ele praticamente moldou a opinião das elites portuguesas e brasileiras acerca da necessária evolução do regime político para uma monarquia constitucional, que ele desejava permanecer como o governo de um império, a partir da manutenção do Reino Unido de Portugal e Brasil. Em seu trabalho de seguimento crítico das diversas etapas da revolução e do processo de elaboração constitucional, Hipólito poupou sistematicamente o rei d. João e criticou seus ministros, recomendando uma mudança completa das autoridades do governo português; defendeu ademais a liberdade de imprensa e a completa equiparação de direitos e deveres entre brasileiros e portugueses; considerava que a sede do Império luso-brasileiro deveria ser no Rio de Janeiro ou numa nova capital no interior do Brasil. Só depois das medidas recolonizadoras das Cortes, que ele analisou detidamente nos diversos números do Correio em 1821 e 1822, é que ele se dispõe a apoiar a separação e a independência do Brasil, o que se dá apenas em setembro de 1822.

Palavras-chave: Hipólito da Costa. Correio Braziliense. Portugal. Brasil. Revolução do Porto. Independência do Brasil.

 

AbstractIdentification and contextualization of the main reports and comments made by the Brazilian journalist Hipólito da Costa in his London periodical Correio Braziliense, regarding the 1820 Oporto Revolution, and its impact in Brazil, in the following two years, during the functioning of the Constitutional Courts (Cortes) of Lisbon, as minutely reflected in the pages of his newspaper. Hipólito da Costa was more than a reporter dedicated to an objective information about the events, since, by the analytical and opinionated content of the journal, he practically shaped the opinion of Portuguese and Brazilian elites about the necessary evolution of the political regime towards a constitutional monarchy. He fought for the maintenance of the United Kingdom of Portugal and Brazil, in order to keep a single Empire, under the same King. Hipólito follows, in a very critical way, the various stages of the Revolution and the process of constitutional elaboration of a new Chart by the Lisbon Cortes, systematically protecting King d. João and criticizing his ministers, recommending a complete change of Portuguese governmental authorities; he also defended complete freedom of the press and the total equalization of rights and duties between Brazilians and Portuguese; Hipolito considered that the seat of the Portuguese-Brazilian Empire should be in Rio de Janeiro or in a new capital, in the heartlands of Brazil. It was only after the attempts, by the Cortes, at the recolonization of Brazil, that he decided to support the separation of the two Kingdoms and the independence of Brazil, which only took place in September 1822.

Keywords: Hipólito da Costa. Correio Braziliense. Portugal. Brazil. Oporto Revolution. Independence of Brazil.

 

 

 

A Revolução liberal do Porto recebeu de Hipólito da Costa perfeita atenção e a devida repercussão nas páginas do Correio Braziliense: o período final da existência do seu “armazém literário”, de meados de 1820 ao final de 1822, foi dedicado ao processo constitucional aberto por ela e às suas repercussões no Brasil, que resultaram, finalmente, na própria independência do Brasil. De imediato o Correio se colocou ao lado dos constitucionalistas, contra os aristocratas e principalmente contra o partido espanhol, que defendia a união com a Espanha (Goes de Paula 2001, 29).

A partir de setembro de 1820, quando ele primeiro repercute a notícia, até dezembro desse ano, Hipólito vai dedicar quatro grandes artigos à revolução e transcrever 27 documentos (proclamações, portarias, cartas e ofícios) que revoltosos e autoridades de Lisboa farão circular nesses meses febris, antecedendo à convocação das Cortes, que ele passa a tratar a partir de janeiro de 1821. Mas ele não se ocupava apenas dos eventos imediatos em Portugal, e sim pensava no futuro da sua terra, como revela a primeira matéria, no n. 148 do Correio (vol. XXV), ou seja, tão cedo quanto setembro de 1820: 

Seja-nos agora permitido fazer alguma observação sobre a influência que terá no Brasil a medida dos governadores de Portugal de convocarem as Cortes daquele Reino, com a precipitação que fizeram, sem plano premeditado pelo governo e sem vistas do interesse geral da monarquia. 

Se nas Cortes de Portugal não entram procuradores do Brasil, el-rei será o soberano de ambos os reinos, mas eles serão os reinos desunidos de Portugal e do Brasil; porquanto, uma vez que as medidas políticas em Portugal dimanem de suas Cortes, e no Brasil só d’el-rei, é impossível que haja a unidade do sistema, sem a qual os dois reinos só serão unidos de nome. 

Além disso, os brasilienses não poderão ver com olhos tranquilos e sem natural ciúme que seus co-vassalos em Portugal tenham Cortes, e não as haja no Brasil. (...) 

Estas considerações são da mais transcendente importância para a tranquilidade do Brasil. O exemplo de Portugal e as ideias do nosso século a favor das formas representativas de governo devem necessariamente mover os espíritos no Brasil, que não tendo, como fica dito, assaz fundamentos, caso adquiram o poder de obrar, só produzirão confusão e calamidades. 

Parece-nos, logo, que o remédio deveria ser a adoção de medidas tais que, satisfazendo de algum modo a opinião geral, dessem aos povos instituições constitucionais moderadas, adaptadas ao estado de civilização e instrução do país, deixando a sua desenvolução para o diante, seguindo os progressos da instrução do povo. (in: Goes de Paula 2001, 64-65)

 

Hipólito, em fino observador das estruturas econômicas mais prometedoras a partir desta parte americana do Reino, antecipa na exata sequência a sua noção de que não é o Brasil que necessitava de Portugal, e sim o contrário, mas expressando sua firme convicção de que o melhor, para ambos os reinos, era a preservação de sua união: 

Quando, porém, assim falamos sobre as medidas convenientes para conservar unidos os reinos de Portugal e Brasil, temos em vista o interesse de Portugal e do soberano, que o é de ambos aqueles Estados; porque quanto ao Brasil, e não mais, nem tanto, necessita de Portugal, do que os Estados Unidos precisam da Inglaterra.

Portanto o Correio Braziliense deve ser propriamente entendido em seus desejos patrióticos, que não são decerto guiados por prejuízos locais. Se o Brasil nada precisa de Portugal, contudo é em sua honra que seu rei continue a sê-lo também de Portugal; assim, desejáramos que, uma vez que os governadores de Portugal se portaram como se têm portado, e são convocadas as Cortes, tais instituições se adotassem que fossem favoráveis à verdadeira, e não nominal, união dos dois reinos, e que não causassem ciúmes de uma parte ou doutra, para que assim a união fosse permanente. (...)

Quanto mais instituições diversas se estabelecerem em ambos os Estados, quanto menor será a sua união; a diversidade de instituições políticas, principalmente as essenciais, não pode deixar de ocasionar diversidade de caráter, de interesse e de máximas; e dois povos, ainda que sujeitos ao mesmo soberano, colocados em tais circunstâncias, é impossível que continuem unidos por mais longo tempo. (in: Goes de Paula 2001, 65)

 

Assim termina a primeira matéria de Hipólito sobre a Revolução do Porto e suas consequências para o Brasil, um notável exercício de análise política, e de antecipação sobre os desafios, sobre as duras realidades que precisariam enfrentar os dirigentes políticos, assim como os representantes dos dois reinos, antes mesmo que houvesse qualquer decisão sobre o funcionamento das Cortes de Lisboa, e sobre como haveriam de proceder os constituintes no momento de debater e decidir quais seriam as diretrizes a serem estabelecidas para as diferentes partes do Reino Unido, não considerando, naquele momento, as demais dependências do grande império marítimo português. Ele continuaria, nos números de outubro a dezembro, a tratar das consequências da revolução do Porto, antes de mergulhar, a partir de 1821, nos trabalhos das Cortes. 

No n. 149 do Correio, em outubro de 1820, Hipólito demonstra, mais uma vez, que sua principal preocupação nos eventos de Portugal sempre esteve com as “coisas” do Brasil: 

Que culpa tem o Brasil de que os governadores de Portugal desatendessem as urgentes necessidades do Reino? Porventura veio algum filho do Brasil governar Portugal, para que pelos atos desse indivíduo fosse acusado todo o seu país? Nem um só. Portugueses dos quatro costados foram sempre todos os governadores do Reino, e todos os seus secretários e conselheiros. Se quiserem levar a queixa mais longe, e atribuírem os males todos de Portugal ao gabinete do Rio de janeiro, outra vez lhes retorquimos que não há nesse gabinete um só ministro do Brasil; e o primeiro-ministro até no nome é Portugal [Hipólito se referia aqui a Tomás Antonio de Vila-Nova Portugal].

Com que justiça, pois, se acusa o Brasil dos males de Portugal? Se a queixa fosse contra o sistema de governo, contra os indivíduos que o compõem, na Europa ou na América, o argumento seria sensato; mas uma acusação contra o Brasil é tão sobremaneira injusta que só pode ter por fim provocar a retorsão, excitar os ódios e criar divisões só úteis ao partido da dominação estrangeira... (in Goes de Paula 2001, 80)

 

Hipólito deu prosseguimento, no n. 150 do Correio, de novembro de 1820, à sua minuciosa análise política do processo de mudanças que andava ocorrendo em Portugal, sem se ocupar especialmente do Brasil, uma vez que não dispunha, ainda, de notícias suficientes sobre as repercussões do outro lado do Atlântico. O historiador Varnhagen, confirmando a dificuldade das comunicações nessa época, chamava a atenção para as “duas mil léguas de distância” entre as duas partes do Reino Unido, “em cuja viagem redonda, em navios de vela, únicos que então nela se empregavam, se não gastava menos de quatro a cinco meses” (2010, 18).

O último número do Correio de 1820, n. 151 (dezembro), situa a revolução do Porto no contexto de demais revoluções europeias, que também se colocavam no âmbito dos movimentos liberais e constitucionalistas, que começavam a reagir contra as tendências conservadoras, até reacionárias, que tinham emergido no Congresso de Viena e que tinham impulsionado, via Santa Aliança – Prússia, Áustria, Rússia, a França da Restauração e a Espanha do retorno ao mesmo despotismo dos Bourbons –, a restauração do absolutismo em vários reinos do continente. Todas elas, a rigor, se inspiravam no mesmo texto constitucional liberal, a Carta de Cádiz, cujo breve renascimento, ao início de 1820, também tinha inspirado a ação do Sinédrio.

Findamos com este número o segundo volume do nosso periódico neste ano, deixando nele registradas três revoluções importantes que obraram todas no mesmo sentido, a saber: a da Espanha, a de Nápoles e a de Portugal; argumento irrespondível de que as formas de governo até aqui existentes na Europa não concordam já com as ideias do século, e que acomodar-se a elas é o mais prudente partido que podem adotar os governos, se desejarem evitar as concussões de revoluções operadas pela força do povo, de cujo êxito ninguém pode responder. (Goes de Paula 2001, 93)

 

Ao comentar as diferentes formas de se estabelecer o método de eleger os constituintes às Cortes, Hipólito não deixa em nenhum momento de se preocupar com o Brasil, ao registrar que nas deliberações “nem se admite a existência de domínios ultramarinos”, acrescentando então: “Esta omissão nos parece um passo decisivo para a separação de Portugal do Brasil, o que na verdade sentimos que venha a ser um dos efeitos dessa revolução” (idem, 100).

No primeiro número de 1821, o 152, em janeiro, Hipólito se pronuncia sobre a convocação das cortes em Portugal, retroagindo então ao que tinha conseguido apreender a partir das repercussões da Revolução do Porto no Brasil: 

Depois de escrito o que fica acima [basicamente as lutas entre os “partidos” portugueses em torno da questão da seleção dos representantes às Cortes], recebemos notícias do Rio de Janeiro até 22 de novembro, quando já se sabia ali dos sucessos de Lisboa em setembro passado. 

Não temos tempo de dizer nada mais sobre este assunto, senão que apesar do conhecimento daqueles sucessos, não se tinha posto a menor interrupção à comunicação com Portugal; pelo contrário, continuavam a despachar-se navios, na forma usual, para o Porto e para Lisboa. (p. 151)

 

Hipólito se espantava com a inoperância e os embates confusos dos dirigentes e dos políticos portugueses, divididos entre diferentes “partidos”: o inglês, o francês e o espanhol. Aparentemente, o único a defender o “partido português”, isto é, o rei d. João e os interesses do país, como um todo, era ele mesmo. Ele julgava, não sem razão, que, entregue a si mesmo, sem o respaldo econômico do mais importante Reino da Coroa, Portugal não teria grandes chances de manter sua autonomia, numa Europa entregue a lutas entre as grandes potências. De fato, no decurso do século XIX, Portugal conheceu recaídas autoritárias, emendou diversas vezes a sua Constituição – por sinal reescrita por D. Pedro I, com base na que ele havia encomendando em 1824 para o Brasil – e se tornou praticamente inadimplente em diversos empréstimos externos ao longo do século, só escapando da humilhação imposta à Grécia e ao Egito, que passaram a ter representantes dos banqueiros controlando suas finanças e suas alfândegas, ou seja, as fontes de receitas (usadas para recolher os juros devidos). 

No segundo número do Correio de 1821, o de n. 153, datado de fevereiro, Hipólito aprofunda suas reflexões – sem dispor ainda das reações nas províncias aos acontecimentos passados na antiga metrópole – sobre a influência da revolução de Portugal no Brasil. O que ele escreve em seu principal artigo nessa área denota uma compreensão realista sobre o que se passava em sua terra e em Portugal, mesmo estando longe do Brasil desde 1793, e “ausente” de Portugal desde 1805: 

Dissemos repetidas vezes que lamentávamos a circunstância de não ter o Ministério do Brasil [sic; ou seja, o gabinete de d. João no Rio de Janeiro] começado as reformas políticas em Portugal que eram necessárias, antes que o povo as empreendesse por si mesmo; entre outras razões, porque tendo a revolução começado pelo povo e não pelo governo, era impossível prever seu êxito. Isto já não tem remédio em Portugal, ou mui fraco remédio terá, visto que somos entrados na revolução, que sempre desejamos se já evitasse; mas, como ela ainda não se manifestou no Brasil, o que a respeito dele se disser pode ainda ser ouvido a tempo, se ouvidos se prestarem enquanto isso pode servir.

Ninguém poderá duvidar que todos os passos da revolução de Portugal hão de ser sabidos e conhecidos no Brasil, e é impossível que as ideias revolucionárias de Portugal não façam ali [no Brasil] a mais profunda impressão. (Goes de Paula 2001, 152)

 

Hipólito continua a tecer considerações gerais sobre a responsabilidade das Cortes sobre as “formas constitucionais” que elas haveriam de decidir para Portugal e sobre o significado disso para o rei, e pergunta quais as consequências para o “Ministério do Brasil”, na impossibilidade de “impedir o curso natural das coisas, de passarem ao Brasil as ideias revolucionárias de Portugal” (p. 153). Sem ainda dispor de informações precisas quanto ao que estaria se passando no Brasil, Hipólito arrisca ainda assim especular sobre o que poderia se passar em sua terra, criticando mais uma vez os ministros d’el-rei e lembrando os processos de independência no entorno do Brasil: 

Porém, se ajuizamos acertados nossos conceitos, se a revolução de Portugal deve necessariamente passar ao Brasil, e se uma revolução popular naquele país pode ser acompanhada de resultados os mais desastrosos, quão culpados não devem ser os ministros que não adotarem medidas próprias para prevenir esses males? (...)

Não nos escusaremos de repetir o que tantas vezes temos dito, que forma de administração no Brasil hoje que ele é populoso, rico, comercial e polido com o trato do estrangeiro, é a mesma que existia há 300 anos, quando suas povoações constavam de mesquinhos presídios. No tempo antigo ninguém tinha ideia de outro governo que não fosse o absoluto; hoje em dia, até os rapazes falam em constituições políticas. (...)

Independente dos sucessos de Portugal, o Brasil está cercado por uma tremenda revolução na América Espanhola; sejam ou não sejam fantásticas essas ideias, estejam ou não estejam os povos do Brasil preparados para terem formas constitucionais, esse prurido deve obrar; e quanto menos preparados estiverem os povos, mais perigosos serão os seus desejos, e o meio de atalhar a explosão total é mostrar sinceridade de satisfazer a opinião pública, em tanto quanto for compatível com a prática: uma vez estabelecida a opinião dessa sinceridade do governo, metade das dificuldades estão vencidas. (...)

Sem que o povo acredite que o governo lhe prepara planos de melhoramento no sistema de administração, serão ineficazes todos os meios que se possam inventar para impedir os progressos de uma revolução popular, que já é manifesta em Portugal e labora para a explosão no Brasil; e parece-nos sumamente improvável que o povo acredite ou espere reforma alguma a seu modo, continuando a governar os mesmos homens que até aqui foram, ou se suspeitam que fossem, os apoios do sistema antigo. (idem, 153-4)

 

Foi o próprio Hipólito, aliás, que já havia afirmado, desde abril de 1820, que “todo o sistema de administração está hoje arranjado por tal maneira que Portugal e Brasil são dois Estados diversos, mas sujeitos ao mesmo rei” (Varnhagen 2010, 30). As províncias do Reino do Brasil foram se aquilatando das notícias de Portugal em tempos diversos, sendo que o Pará, por estar mais próximo, e a Bahia, tomaram posição mais cedo do que as demais partes do Brasil em prol da revolução e da convocação das Cortes em Portugal. Mas, como ainda indica Varnhagen, “a maior distância do Pará [com respeito ao Rio de Janeiro, e as dificuldades de ventos e correntes marítimas para se passar do Norte ao Sul do Brasil] fez com que primeiro chegasse ao Rio de Janeiro, no dia 17 de fevereiro [de 1821] a notícia da proclamação constitucional na Bahia” (2010, 40). Finalmente, a 7 de março, “havia sido recebido um ofício das Cortes de 15 de janeiro, pedindo a el-rei que regressasse a Lisboa, e manifestando vivo dissabor de não verem também no seu seio os representantes do Brasil” (idem, 53). Foi então que d. João resolveu retornar a Portugal, 

ficando o príncipe [seu filho Pedro] como regente do Brasil todo: terceira grande resolução em favor da futura unidade nacional. Na mesma data era decretada a convocação, por todo o Brasil, dos deputados às Corte de Lisboa, adotando-se para a marcha das eleições vários artigos da Constituição espanhola, que já haviam sido adotados para as eleições em Portugal. No Conselho de Estado, a respeito da partida de el-rei, fora Silvestre Pinheiro o único que votara contra, do que resultou dirigir-se no fim el-rei para o mesmo conselheiro, dizendo-lhe: – ‘Que remédio, Silvestre Pinheiro! Fomos vencidos.’ (Varnhagen, 2010, 53)

 

No n. 154 do Correio, correspondendo ao mês de março, Hipólito, finalmente, dá conta das repercussões da revolução do Porto no Brasil: 

No dia 1º de janeiro o povo do Pará, de concerto com a tropa, executou uma revolução com êxito tão pacífico como a de Portugal. Nomeou-se um governo provisional, proclamou-se a adoção de um governo constitucional, alegando-se com o exemplo de Portugal.

Pode alguém duvidar que a mesma cena se represente em outras capitanias do Brasil? Pode haver dúvida eu o único partido da Corte é entrar ela mesma na revolução, para lhe dar uma direção que seja a menos perniciosa possível no Brasil? 

Já em novembro passado houve um levantamento do povo no lugar de Bonito, na capitania de Pernambuco: acomodaram o motim as tropas que contra os revoltados mandou o general, mas este se fortificou no palácio da capital, depois de mandar prender várias pessoas de consideração como suspeitas de desafeição, entre as quais se acham alguns oficiais militares; e o general continua fortificado no seu palácio, rodeado de tropas, e até com artilharia assestada, para se defender em caso de ser atacado. Ora, não é esta a posição em que se devia ver um governador paternal no meio de uma população contente e satisfeita. (...)

Os procedimentos em Portugal, pelo que respeita o Brasil, têm até aqui levado a uma direção mui errada e até contraditória, e tal que nos parece tendente a causar a separação daqueles dois estados, se el-rei lhe não der o único remédio que lhe há próprio. 

Primeiramente, quando se promulgou em Portugal o regulamento para a eleição dos deputados de Cortes, copiado da Constituição espanhola, excluíram-se todos os artigos que diziam respeito aos domínios ultramarinos, dizendo-se que não tinham aplicação.

Por que não tinha aplicação? Se a revolução em Portugal era tendente a melhorar o estado da monarquia, sem dúvida que a primeira consideração devia ser a preservação de toda a mesma monarquia, e conservação de sua integridade; e o tentar fazer uma Constituição para toda ela por meio de deputados de uma só parte, é lançar os fundamentos à mais justificada desunião: e se o povo de Portugal assenta que como povo tem o direito de escolher para si a constituição que quiser, e não a outrem lhe imponha, seguramente deve convir que não tem direito de ir impor essa constituição que fazer ao povo do Brasil, que nela não teve parte. 

E que maior causa de divisão e discórdia se pode apresentar a duas porções de uma monarquia do que tentar uma delas ditar leis constitucionais sem primeiro buscar de ouvir o voto da outra? (Goes de Paula 2001, 160-1)

 

Nos meses seguintes, Hipólito continuou a dar, nos números sucessivos do Correio, “as mais amplas notícias dos debates na Cortes que eram compatíveis com o nosso periódico”, isto é, consoante seu desejo de “darmos a nossos leitores do Brasil amplos conhecimentos do que tanto lhes convém saber” (Correio, n. 154, vol. XXVI, março de 1821, 346). Não obstante, falando da volta d’el-rei a Portugal no n. 155 (abril), Hipólito se declarava favorável a continuidade da “integridade da monarquia, que tanto desejamos; mas que essa integridade se não preservará, se el-rei, quer numa, quer noutra hipótese [ou seja, partir ele a Lisboa ou “ficar por ora no Brasil”],

se servir de um ministério impopular, que não tendo a seu favor a confiança da nação, antes sendo suspeito de querer favorecer as classes privilegiadas contra os interesses da massa do povo, não poderá obrar causa alguma, ainda que boa seja, pela qual consiga inspirar a concórdia e união entre as diversas partes da monarquia. (Goes de Paula 2001, 183)

 

Foi apenas no n. 156 do Correio, correspondendo ao mês de maio, que Hipólito reporta que o povo do Rio de Janeiro, aos 26 de fevereiro, “cansado de esperar pelo que faria o governo a seu favor, seguiu o exemplo do resto da monarquia”, ou seja, “declarou-se pela Constituição” (idem, 191). Hipólito envereda pelo resto do artigo numa diatribe contra os ministros corruptos do rei, sem nomear a todos individualmente, mas expressando reservas quanto ao conde de Palmela, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, dando a impressão de que ele seria um dos que faziam parte da corrupção geral, traindo o rei, dizendo-lhe falsidades, ocultando a verdade. Ele também continua a seguir cada um dos movimentos políticos em curso, dentro e fora de Portugal, no Brasil e na Europa. Mais adiante, acusou, por exemplo, o mesmo conde de Palmela, ministro de D. João VI na Europa, de tramar a contrarrevolução, por meio de um conciliábulo de diplomatas reunidos em Paris. De fato, a Santa Aliança estava preocupada com o que ocorria na Espanha, em Portugal e em Nápoles.

Pelo resto desse ano de 1821, Hipólito Hipólito da Costa permanece atento aos trabalhos das Cortes, e transcreve, no volume XXVI do Correio, praticamente todas as sessões realizadas pelas Cortes, notadamente os princípios estabelecidos para elaboração da futura Constituição, as “Bases”, que a Regência no Brasil, a cargo de príncipe D. Pedro, deveria jurar. As Cortes só se decidiram a convocar deputados do Brasil depois que as revoltas também se manifestam no reino americano, por meio de um decreto da Regência de 24 de abril (Correio, n. 157, junho 1821, 595-597). Hipólito considerou que esse decreto vinha “mui fora de tempo” e que também era limitativo, uma vez que só admitia deputados que representassem as cidades “onde houvesse Juízes de Fora, como se os povos dos lugares onde não há juízes letrados não tivessem igual direito que os outros a serem representados” (Idem, ibidem, p. 671). 

Nas Cortes de Lisboa, o Brasil tinha direito a 72 deputados, mas só 46 compareceram, e muito atrasados, o que os deixou em minoria em face dos portugueses, que tinham 100 deputados. Com raras exceções, os deputados do Pará, do Maranhão, do Piauí e da Bahia, as províncias mais ligadas a Lisboa por laços de comércio e diversos outros vínculos, alinhavam-se com os portugueses e “votaram sistematicamente contra as propostas brasileiras das demais regiões.” O padre Feijó, representante paulista, reconheceu a realidade: “Não somos deputados do Brasil, porque cada província se governa hoje independentemente” (Gomes 2010, 63).

Numa primeira etapa, os representantes brasileiros naquelas Cortes pretendiam manter a unidade dos dois reinos, em pé de igualdade, como ainda proclamava quatro meses antes do Grito do Ipiranga o próprio irmão de José Bonifácio, o deputado paulista Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, que estava “plenamente convencido de que Portugal ganha com a união do Brasil e o Brasil com a de Portugal” (Gomes 2010, 84). A questão da unidade do Brasil com Portugal teimava em alimentar os argumentos de Hipólito ao início do ano seguinte, a despeito de sinais precursores de que algo não andava bem. Escrevendo em fevereiro de 1822, Hipólito considerava essa união 

... de suma utilidade para ambos os países [...] na suposição de que sendo o Brasil tão superior a Portugal em recursos de toda a natureza, a objeção para a continuação desta união provinha de algumas pessoas inconsideradas no Brasil que desejavam a separação dos dois países antes que ela devesse ter lugar pela ordem ordinária das coisas. 

Nessa suposição, recomendando a união, temos sempre dirigido nossos argumentos aos brasilienses [que para Hipólito eram os naturais do Brasil, em contraposição ao “brasileiro”, que seria “o português europeu ou o estrangeiro que vai lá negociar ou estabelecer-se”], não nos ocorrendo sequer a possibilidade que nos portugueses europeus pudessem existir essas ideias de desunião; porque a utilidade deles, na união dos dois países, era de primeira evidência.

Mas infelizmente achamos que as coisas vão muito pelo contrário, e que é entre os portugueses e alguns brasileiros, e não entre os brasilienses, que se fomentam e se adotam medidas para essa separação, que temos julgado imprudente por ser intempestiva, e que temos combativo na suposição de que os portugueses europeus nos ajudariam [aos brasilienses] em nossos esforços para impedir, ao menos por algum tempo, essa cisão. (Correio Braziliense, vol. XXVIII, n. 165, fevereiro de 1822, 165-6.) 

 

Em julho de 1822, Hipólito assumiu novo posicionamento em relação à independência do Brasil. Sua mudança de atitude se deu no quadro dos debates nas Cortes portuguesas, quando estavam sendo discutidas diversas medidas no sentido de “recolonizar” o Brasil. De fato, além de discutir os artigos da nova Constituição, as Cortes dedicavam-se igualmente a legislar sobre os assuntos imediatos. O historiador do século XIX Handelman refletiu em sua História do Brasil, algumas dessas disposições específicas ao Reino Unido do Brasil, a partir de então muito menos unido:

As Cortes, depois de romperem pelo decreto de 24 de abril a unidade política e a organização política autônoma do Brasil, depois de haverem por um segundo decreto, de 28 de julho, incorporado as tropas nacionais brasileiras ao exército português, agora, com uma série de novas resoluções, acabavam de destruir todas aquelas instituições que ainda faziam lembrar que o Brasil havia sido durante algum tempo um reino independente e equiparado a Portugal, como país irmão, com os mesmos direitos.

Um decreto provisório, de 29 de setembro, aniquilava todo o aparelhamento do poder central do Brasil; as altas autoridades administrativas, o Supremo Tribunal, etc., que desde 1808 funcionavam no Rio, finalmente a regência que o rei havia deixado à sua partida, tudo foi suprimido. Como já havia acontecido nas restantes províncias, era agora estabelecida também no Rio de Janeiro, para a administração dessa província, uma junta, e todos esses governos provinciais deviam de novo, como antes, entender-se diretamente com o gabinete de Lisboa; igualmente as coisas da justiça, os processos das instâncias deviam passar ao Supremo Tribunal português. Segundo decreto da mesma data dispensava, consequentemente, o príncipe regente das obrigações do seu cargo e o convidava a, dentro de determinado prazo, voltar para Portugal, via Inglaterra, França e Espanha. (Handelman 1931, 765-766) 

 

No mês de setembro seguinte, Hipólito, a despeito de sua discordância com várias medidas cogitadas nas Cortes, ainda proclamava sua confiança na manutenção da unidade, manifestando que essa era uma condição de manter a liberdade lá e no Brasil:

Que a maioridade do Brasil deseja continuar em sua união com Portugal é o que se manifesta pelas declarações de todas as cidades capitais de províncias, que sucessivamente foram reconhecendo o sistema constitucional; e contudo, pode muito bem haver, e sabemos que há, algumas pessoas que julgam ser chegado o tempo do Brasil se separar da sua antiga metrópole. Este partido, porém, o julgamos por ora pequeno; e os que desse partido forem sinceros facilmente se convencerão que vão errados: os outros que obrarem assim por motivos menos honrosos do que a persuasão de que obram a favor de sua pátria não merecem que se argumente com eles. [...]

A nossa decidida opinião vai exatamente de acordo com a desta maioridade do Brasil; porque se o Brasil tem de ser um dia independente da Europa, nada lhe pode ser mais conveniente do que ir de acordo e em união com Portugal, até que ambos tenham conseguido estabelecer as suas formas constitucionais de governo; porque se antes disso se desunirem, seja por que pretexto for, o partido despótico [ou seja, os conservadores que desejavam a continuidade de uma monarquia absoluta] achará fácil meio nessa desunião de os vencer a ambos separadamente e calcar aos pés a liberdade nascente. (Correio Braziliense, XXVII, n. 160, setembro de 1821, 234-35.)

 

Nesse mesmo mês de setembro, a Constituição Política da Nação Portuguesa, aprovada ao final de 1822, estipulava, em seus artigos 128 a 131 – capítulo II, “Da delegação do Poder Executivo no Brasil”, do Título IV (Do Poder Executivo ou do rei) –, o seguinte:

128 – Haverá no reino do Brasil uma delegação do Poder Executivo, encarregada a uma Regência, que residirá no lugar mais conveniente que a lei designar. Dela poderão ficar independentes algumas províncias e sujeitas imediatamente ao Governo de Portugal.

129 – A Regência do Brasil se comporá de cinco membros, um dos quais será o presidente, e de três secretários, nomeados uns e outros pelo rei, ouvido o Conselho de Estado. Os príncipes e infantes (art. 133) não poderão ser membros da Regência.

130 – Um dos secretários tratará dos negócios do reino e fazenda; outro dos de justiça e eclesiásticos; outro dos de guerra e marinha. (...)

131 – Assim os membros da Regência, como os secretários, serão responsáveis ao rei. 

 

A conformação tentativa de uma nova modalidade de pacto colonial em muito acelerou o processo de independência no Brasil. Com efeito, o projeto de regulamentação das relações comerciais Brasil-Portugal, tomado no âmbito da Constituinte lusitana, “foi a última resolução de caráter econômico tomada pela antiga metrópole em relação ao Brasil colonial” (Brito 1980, 405) Segundo esse projeto, os produtos estrangeiros que entrassem no Brasil passariam a pagar direitos de 55% ad valorem, ao passo que os impostos de exportação aplicados a produtos brasileiros vendidos a terceiros países passariam a pagar 12% (Idem, p. 403). Quando ele foi aprovado, contudo, o Brasil já tinha declarado sua independência. 

Ao conformar-se a independência do Brasil, Hipólito estava dando por encerrada sua missão de informador crítico e de defensor da liberdade de imprensa no Brasil. No último número do Correio, em dezembro de 1822, Hipólito teceu considerações sobre a “Constituição do Brasil”, alertando que ela seria “obra do tempo e da experiência”, e que se deveria evitar “abranger casos particulares”, pois dessa forma seria “menos perfeita”: 

E tanto melhores serão as leis de um Estado, quanto mais se limitarem às regras gerais, claras e compreensivas.

Se considerarmos as partes mais belas da Constituição inglesa, as que são mais dignas de imitar-se e suscetíveis de serem adotadas em todos os governos constitucionais, acharemos, pela lição da história, que essas sábias instituições inglesas não foram arranjadas por uma vez, nem apareceram repentinamente à voz do legislador, como o decreto do onipotente fiat lux produziu em um momento o efeito que o criador se propunha. Foi a experiência, foram os repetidos ensaios, foram os melhoramentos sucessivos, foi enfim, a prudência dos legisladores em aproveitar os momentos, em adaptar suas medidas às circunstâncias em que se iam achando os povos na série dos acontecimentos políticos, que fez chegar essas partes da Constituição inglesa, a que aludimos, ao grau de perfeição em que as vemos agora. [...]

Por outra parte, nos Estados Unidos da América setentrional, tomando-se por base que os costumes daqueles povos eram análogos aos dos ingleses, adotou-se a Constituição da Inglaterra, só com aquelas modificações que a natureza das circunstâncias exigia; essa Constituição dura, e durará, porque foi fundada na experiência, e só estabeleceu regras gerais; as ocorrências vão mostrando a maneira de a pôr em prática e essa mesma prática estabelece uma Constituição de costume, que é a mais duradoura que uma nação pode ter. [...]

A Constituição de qualquer Estado, bem como as demais leis não podem durar eternamente; porque é sempre mutável a situação dos homens e quando as circunstâncias variam, forçoso é que variem também as leis. (Correio Braziliense, XXIX, n. 175, dezembro de 1822, 604-6)

 

 

 

 


 

Bibliografia:

 

Brito, José Gabriel de Lemos, 1980. Pontos de partida para a história econômica do Brasil, 3ª ed.; São Paulo: Companhia Editora Nacional/INL-MEC.

 

Costa, Hipólito José da, 2002-2003Correio Braziliense, ou, Armazém Literário. reedição fac-similar; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Correio Braziliense; coordenação de Alberto Dines e Isabel Lustosa (disponível Biblioteca Mindlin-USP: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm-ext/1303; acesso: 10 mar. 2021).

 

Goes de Paula, Sergio (org., introdução) (2001). Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34; coleção Formadores do Brasil.

Gomes, Laurentino, 2010. 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil, um país que tinha tudo para dar errado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Handelman, Henrique, 1931. História do Brasil (1861). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Revista do Instituto Histórico Brasileiro, tomo 108, vol. 162, 2º de 1930; tradução de Lucia Furquin Lahmeyer; 2 vols.

 

Varnhagen, Francisco Adolfo, 2010. História da Independência do Brasil. Brasília: Senado Federal.

 

 

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