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quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Um conto de dois blocos: a falecida Alca e o debilitado Mercosul - Paulo Roberto de Almeida

 Um conto de dois blocos: a falecida Alca e o debilitado Mercosul

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para informação dos membros da Liga Acadêmica de Direito Internacional, da Faculdade de Direito de Vitória, no dia 22/10/2021, por via do Google Meet. 

 

 

Sumário: 

Introdução: cabe comparar o que é comparável

1. Ascensão e queda da Alca, o projeto de liberalização comercial hemisférica

2. Postura do governo brasileiro no quadro dos encontros hemisféricos

3. Participação do Brasil em outros blocos, como o BRICS

4. Blocos e alianças estratégicas na matriz das relações exteriores

5. A relação econômica entre Brasil-China e suas implicações

6. Minhas conclusões sobre nossa interface externa

 

 

Introdução: cabe comparar o que é comparável 

Em 1859, o grande romancista das misérias do primeiro capitalismo inglês, Charles Dickens, publicava um romance histórico chamado A Tale of Two Cities. Desde a desastrosa guerra da Crimeia, em 1855 – em cuja península, em fase de incorporação ao império russo, os exércitos coligados da Grã-Bretanha e da França foram derrotados pelas forças da autocracia czarista –, o já famoso escritor estava extremamente preocupado com o ambiente de descontentamento público que ele via emergir em seu país em consequência da lentidão das reformas políticas em curso; ele temia o perigo iminente de uma revolução social na Inglaterra, semelhante à que havia ocorrido mais de meio século antes na França da monarquia dos Bourbons. Nesse mesmo ano de 1855, Dickens escreveu uma carta a um parlamentar liberal na qual dizia: 

I believe the discontent to be so much the worse for smouldering instead of blazing openly, that is extremely like the general mind of France before the breaking out of the first Revolution, and is in danger of being turned by any one of a thousand accidents – a bad harvest [como havia ocorrido na França, pouco antes de 1789] – the last strain too much of aristocratic insolence or incapacity – a defeat abroad [como a que havia recém ocorrido na Crimeia] – a mere chance at home – into such a Devil of conflagration as never been beheld since. (Introduction by Gillen D’Arcy Wood in: Dickens, A Tale of Two Cities; New York: Barnes & Noble Classics, 2003, p. xiii)

 

A Tale of Two Cities era apenas em parte uma “novela histórica” sobre personagens em duas capitais, Paris e Londres, pois o que Charles Dickens tinha em mente não era tanto o estado da França em 1789 e sim a situação corrente na sua Inglaterra natal, seu temor de revoltas populares e violência da plebe nas ruas de Londres. Karl Marx, que já estava refugiado na Inglaterra desde 1848, e que admirava Charles Dickens, dizia em 1854 que o escritor inglês “havia alertado o mundo sobre mais verdades políticas e sociais do que as que eram ditas por todos os políticos profissionais, os publicistas e os moralistas tomados conjuntamente” (idem). Nessa novela ele descreve as revoltas das massas parisienses com horror, pois imaginava que elas pudessem ocorrer também na capital britânica. Seu romance começa com um parágrafo dezenas de vezes repetido na literatura e na política, ainda que de forma extremamente sintética:

It was the best of times, it was the worst of times, it was the age of wisdom, it was the age of foolishness, it was the epoch of belief it was the epoch of incredulity, it was the season of Light, it was the season of Darkness, it was the spring of hope, it was the winter if despair, we had everything before us, we had nothing before us, we were going direct to Heaven, we were all going the other way – in short the period was so far like the present period, that some of the noisiest authorities insisted on its being received, for good or for evil, in the superlative degree of comparison only. (p. 7)

 

Escolhi começar citando essa famosa novela de Charles Dickens, pois que o tema que me foi oferecido para discorrer no modo comparativo não pode certamente ser conduzido em qualquer grau superlativo. Os dois “personagens” selecionados para esta preleção, Alca e Mercosul, não guardam a mesma condição de existência material como era o caso de Londres e Paris. Em primeiro lugar porque, como coloquei no título, um dos blocos já faleceu, a Alca, e o outro se encontra bastante debilitado na atualidade, isso desde algum tempo. Em segundo lugar, porque os tais blocos, de um lado, pertencem à mesma família geral, a das iniciativas de integração regional, de abertura econômica e de liberalização comercial, mas, de outro, representam, cada um, duas espécies diferentes, o primeiro às zonas de livre comércio tão somente, o segundo às uniões aduaneiras e a um otimista projeto de mercado comum.

Dito isto, preliminarmente, cabe seguir o roteiro de questões que me foi oferecido como guia para esta palestra, com o objetivo de tentar esclarecer a natureza de cada um deles, examinar o posicionamento dos governos brasileiros em relação a um e a outro bloco, assim como a relação mantida com outros blocos ou iniciativas de integração ou, também, de simples coordenação de posições – como no caso do Brics, por exemplo. Cabe, por fim, discorrer sobre outras questões de atualidade, como a ascensão da China e sua impressionante projeção econômica internacional, já configurando um novo centro de poder mundial, não só no domínio comercial, mas também nos terrenos tecnológico, financeiro e militar. 

 

1. Ascensão e queda da Alca, o projeto de liberalização comercial hemisférica 

A Área de Livre Comércio das Américas era um dos componentes, talvez o mais importante, do processo hemisférico de integração, nos terrenos econômico, financeiro e comercial, lançada na primeira reunião de cúpula de chefes de Estado e de governo dos países do hemisfério americano (com exceção de Cuba), realizada em Miami, em dezembro de 1994, a convite do presidente americano Bill Clinton. O objetivo era negociar uma vasta liberalização do comércio de todos os países da região, marcada por diferentes reuniões de ministros de comércio e intensos encontros de trabalho entre técnicos negociadores, com o objetivo de concretizar a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), numa nova reunião conclusiva dos mandatários dos 34 países participantes, prevista para concluir-se em 2005. Paralelamente, ocorriam, igualmente reuniões de ministros de finanças dos mesmos países, no âmbito do Comitê Hemisférico sobre Assuntos Financeiros, instância estabelecida no quadro da própria agenda de Miami, para discutir temas como abertura dos mercados financeiros, o reforço dos sistemas bancários e a integração dos serviços financeiros, mas também o combate coordenado aos crimes nessa área específica.

A questão a ser enfatizada de imediato é que esse complexo processo de negociações, extremamente sofisticado, congregando centenas de técnicos, economistas e diplomatas de todos os países participantes, foi hostilizado de imediato pelas forças de esquerda nesses países, parlamentares progressistas e partidos socialistas, sindicatos de trabalhadores e ONGs comprometidas com causas sociais, a pretexto de “assimetrias”, ou seja, o argumento de que essa integração entre uma grande economia avançada, como a dos Estados Unidos, e países de desenvolvimento médio ou de menor desenvolvimento relativo seria desvantajosa para estes, e deveria, portanto, ser rejeitada. Diversos países latino-americanos, contudo, a exemplo do Chile, da Colômbia e do México, dirigidos por forças centristas ou de direita, favoreciam essa integração, com o argumento de que a abertura do enorme mercado americano a seus produtos, assim como o aumento do fluxo de investimentos diretos americanos em seus países, seriam compensações suficientes para a abertura que teriam de fazer aos países avançados (EUA e Canadá) nesse processo de liberalização recíproca.

Registre-se, por um lado, que o México não era exatamente um entusiasta da Alca, pois que desde o início do processo, em 1994, ele já tinha sido integrado a um esquema menor, mas bem mais relevante, que era o NAFTA, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte, congregando os três países da região: EUA, Canadá e o próprio México. O Chile, por seu lado, já ambicionava ter um acordo bilateral de liberalização comercial com os EUA desde vários anos, o que se concretizou pouco depois que o processo da ALCA foi interrompido – de fato cancelado –, por iniciativa concertada dos três grandes países com governos de esquerda no início dos anos 2000: a Venezuela, o Brasil e a Argentina. Cabe registrar, igualmente, que o Mercosul já se encontrava envolvido em outro processo negociador, desta vez envolvendo a União Européia, com a qual havia sido assinado um acordo interregional de cooperação, firmado em Madri, em dezembro de 1995, dando a partida, portanto, a uma dinâmica paralela de negociações para o aprofundamento de um relacionamento histórico entre países da América Latina e Caribe com a União Européia.

As negociações da Alca sempre se desenvolveram num clima bastante difícil, de grandes diferenciações de posturas entre os países da América Latina – que não pode ser tomada como um todo, pois sempre se manifestaram discordâncias entre América do Sul, dentro desta, e dos países do continente com os da América Central e do Caribe, que de fato conseguiram acordos separados com os EUA, depois que a ALCA foi abandonada – e de grande insatisfação pela postura ainda protecionista e subvencionistas dos EUA nos temas agrícolas e de grande ofensiva deles nos temas industriais e de serviços, especialmente os financeiros. Não estranha, assim, que bastou uma ofensiva de bloqueio – por razões totalmente políticas, e talvez até ideológica – conduzida por Chávez, Lula e Kirchner para que todo o processo viesse a um impasse, na cúpula que deveria ter sinalizado seu término, em Mar del Plata, em 2005. 

Lula e seu chanceler, Celso Amorim, até demonstraram grande orgulho por terem, em suas próprias palavras, “implodido a Alca”. O fato é que, uma vez constatado o bloqueio de qualquer possibilidade de acordo hemisférico, os EUA começaram a negociar acordos bilaterais – com Chile, Colômbia e Peru – e plurilaterais – com os países da América Central, por um lado, com a Comunidade do Caribe, por outro – de livre comércio, ficando apenas de fora os quatro países do Mercosul e os chamados “bolivarianos”: Venezuela, Equador e Bolívia. Perdeu-se, assim, uma oportunidade de dar a partida a um grande esforço de montagem de um espaço econômico mais ou menos unificado nas Américas, ainda que com a preservação de grandes assimetrias estruturais (o que aliás sempre foi o caso anteriormente).

 

2. Postura do governo brasileiro no quadro dos encontros hemisféricos

O Brasil sempre foi um dos países mais protecionistas do mundo e, por conseguinte, das Américas também, sendo uma ilusão aquela história de que os EUA se industrializaram precocemente por terem adotado tarifas protetoras desde o início do século XIX, ao passo que o Brasil se deixava supostamente levar por teorias livre-cambistas e de abertura econômica. Isso nunca foi verdade, e o Brasil, junto com Argentina aliás, sempre praticou diversas formas de protecionismo comercial, não apenas tarifas aduaneiras, mas também restrições para-tarifárias, lei do similar nacional, monopólios estatais e reservas de mercado para empresas nacionais, etc. Não obstante, a partir de meados do século XX, os diferentes governos apoiaram projetos de integração econômica entre os países da América Latina, já tendo em vista a dimensão e a sofisticação de sua estrutura produtiva interna e sua capacidade competitiva com os vizinhos, especialmente os do Cone Sul, com os quais sempre foi mais intenso o comércio regional.

Esta é razão de o Brasil ter apoiado e incentivado os dois acordos de liberalização comercial consolidados nos dois tratados de Montevidéu: o de 1960, criando a Alalc, a Associação Latino-Americana de Livre Comércio, e o de 1980, que substituiu a Alalc pela Aladi, a Associação Latino-Americana de Integração, baseado num modelo mais flexível, de preferências tarifárias de modo parcial e de escopo limitado e um número menos de países. Na verdade, esses acordos da Alalc e da Aladi sempre serviram bem mais às multinacionais estrangeiras instaladas nos grandes países da região do que às empresas nacionais estrito senso. Mas diferente foi a história do Mercosul, que precede a Alca não apenas cronologicamente, mas também no espírito e na forma, nos objetivos e no formato institucional.

Iniciado em 1998, por um Acordo bilateral entre o Brasil e a Argentina, que já previa o projeto de um mercado comum, o Mercosul, no espaço de dez anos, e era uma tentativa de superar a integração superficial dos esquemas da Alalc e da Aladi, por uma integração mais profunda, ou seja, já prevendo o formato do mercado comum. A metodologia e o ritmo desse processo foram ainda acelerados pelos dois países em 1990, reduzindo o prazo à metade e acelerando a liberalização comercial, tornando-a automática, e não mais dependente da assinatura de protocolos setoriais como estavam sendo feitos desde meados dos anos 1980. Foi esse formato, derivado da Ata de Buenos Aires que se transformou no Tratado de Assunção, em 1991, quando Paraguai e Uruguai também fizeram questão de participar do projeto de mercado comum entre o Brasil e a Argentina. 

Quando ocorreu a proposta americana do projeto de Área de Livre Comércio da América Latina, o Mercosul já estava adiantado na implementação da sua união aduaneira, com a negociação de uma Tarifa Externa Comum, formato que não estava previsto no projeto americano da ALCA. O Mercosul também já tinha decidido que negociaria conjuntamente com qualquer parceiro externo, seja acordos bilaterais com países específicos, seja acordos mais amplos com blocos já constituídos – como a União Europeia – ou em implementação, o que era o caso da ALCA justamente. É preciso deixar claro que zonas de livre comércio não são excludentes ou exclusivas, podendo ser concluídas com quaisquer tipos de países, em número praticamente infinito, ao passo que uniões aduaneiras são, por definição, processos mais restritos, que exigem concordância dos membros em diversos aspectos de suas políticas macroeconômicas e setoriais (comercial, industrial, tributária, cambial, etc.).

Tudo isso era feito e negociado não apenas entre burocratas de governo, economistas e diplomatas, mas com base em intensas consultas com representantes da comunidade empresarial e das associações de trabalhadores, com vistas a obter o acordo e o envolvimento e a participação ativa da sociedade civil nesses importantes processos negociadores, uma vez que eles implicam questões relevantes da estratégia nacional de inserção econômica internacional e devem estender-se por um longo período de tempo, praticamente por mais de um mandato eletivo (presidencial e congressual). A sociedade e seus representantes devem, pois, ter acesso aos processos negociadores em âmbito bilateral ou no caso dos acordos mais amplos, como era o caso do processo hemisférico (que já está encerrado) e do acordo de associação com a União Europeia, que tardou vinte anos para ser concluído (e ainda não se sabe quando poderá entrar em vigor, em função das preocupações europeias com a postura do governo Bolsonaro em matéria de meio ambiente).

Como o Brasil sempre foi um país enfaticamente protecionista, com mobilização intensa de seus industriais e demais agentes produtivos na proteção do mercado interno e na defesa contra a concorrência externa, é evidente que o país sempre exibiu enorme relutância na negociação de projetos mais ambiciosos de abertura econômica e de liberalização comercial, o que significa, também, que nossa participação nos grandes fluxos de comércio internacional de produtos com maior elasticidade-renda era bastante limitada, sendo ainda mais reduzida nos intercâmbios de intangíveis (serviços). A legislação sobre investimentos estrangeiros também sempre apresentou limitações em função de monopólios estatais, reservas de mercado aos nacionais e limitações das compras governamentais a ofertantes instalados no país. O Mercosul expressa bastante esse protecionismo entranhado, e o governo só pode limitar-se às concessões que o empresariado esteja disposto a fazer, em função de sua competitividade externa, regional ou internacional. Adicionalmente, os descompassos diplomáticos no presente governo de Jair Bolsonaro nas relações com a Argentina, assim como a incompreensão manifesta do ministro da Economia sobre o significado do Mercosul dificultam enormemente a busca de uma solução aos problemas atuais do bloco.

 

3. Participação do Brasil em outros blocos, como o BRICS

Existem blocos de todos os tipos, formatos, tamanhos, sabores e cores, para todos os fins e objetivos que possam decidir os países: alianças políticas ou militares, cooperação fronteiriça, cultural ou tecnológica, acordos de livre comércio (mais numerosos) ou de união aduaneira (em menor número), de unificação monetária (moeda única ou comum), ou até de confederação ou de união política (como um dia poderá ser a União Europeia). 

No plano do Direito Internacional e do sistema multilateral criado após a Segunda Guerra Mundial – grosso modo a ONU e suas agências especializadas –, é preciso distinguir entre, de um lado, organizações intergovernamentais, ou órgãos multilaterais congregando Estados soberanos para as finalidades estabelecidas em seus acordos constitutivos, que são em princípio universais, ou seja, congregando todos os Estados que aceitem seus princípios, estatutos e regras de funcionamento, e de outro lado, entidades mundiais ou regionais de menor escopo substantivo, com adesão restrita unicamente aos países ou Estados que partilham de objetivos comuns, como pode ser uma aliança militar como a OTAN, um órgão de consulta e coordenação econômica, como é a OCDE, ou blocos regionais, como são a OEA, a União Africana, a ASEAN, e todos acordos comerciais, bilaterais, plurilaterais ou regionais, como são o TPP e o RCEP. Cabe uma observação especial ao esquema europeu de integração, uma vez que ele transcende o simples nível multilateral ou interestatal, ou seja, o âmbito do Direito Internacional, para alcançar um caráter supranacional, ou supraestatal, ou seja, se situa no âmbito do Direito Comunitário. 

Todos os acordos internacionais, de cooperação ou de integração, representam uma espécie de renúncia, ou perda de soberania, uma vez que os Estados partícipes consentem em não atuar, em suas políticas e objetivos domésticos, contrariamente às obrigações que eles contraíram no quadro dos acordos internacionais que assinaram, que possuem objetivos universais – como a paz, a segurança e o desenvolvimento integral de todos os países, como no caso da ONU e suas agências – ou mais limitados: de cooperação e integração econômica, de defesa, de combate ao crime organizado, etc. Os países europeus, por sua vez, ao empreender os primeiros acordos de integração – CECA (Tratado de Paris, 1951), Tratados do mercado comum (Roma, 1957) – renunciaram expressamente à soberania nacional sobre a produção de carvão e do aço e depois a todos os demais produtos na concepção do mercado comum, adotando estruturas supranacionais, como foram a Alta Autoridade (na CECA) e depois a Comissão Europeia (no caso dos tratados de Roma), preservando, por outro lado, uma entidade intergovernamental, que é o Conselho Europeu (de chefes de Estado ou de governo, ou de ministros setoriais). A União Europeia representa graus ainda mais elevados de desnacionalização de políticas nacionais, envolvendo fronteiras, segurança e defesa, moeda comum e outros aspectos que podem compreender opções para determinados países membros (por exemplo, nem todos os membros da EU aderiram ao euro).

O Brasil sempre teve uma postura inclusiva na maior parte dos acordos de caráter universal (ONU) ou mundial (Gatt, depois OMC, etc.), mesmo não tendo grande poder decisório em determinados organismos (possui apenas uma pequena cota parte no FMI, por exemplo). Mas no plano regional sempre esteve disposto a aderir, ou mesmo sugerir acordos e uniões políticas e econômicas: Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR, 1947, modelo de defesa coletiva que seria utilizado no Tratado do Atlântico, que criou a OTAN, em 1949), depois a OEA (1948), o Tratado de Montevidéu de 1960 (Alalc), o de 1980 (Aladi), o Tratado de Integração Argentina-Brasil (1988) e depois o de Assunção (1991, com Paraguai e Uruguai). Não ingressou na OCDE (1960) porque não foi convidado, mas tampouco estava preparado para aceitar determinadas obrigações dos países membros (como a liberalização dos investimentos estrangeiros e dos movimentos de capitais, por exemplo), mas agora se dispõe a aceitar essas regras e solicitou formalmente adesão (ainda não consumada). Também ingressou em bancos de desenvolvimento (como o BID, 1960), no Clube de Paris (entidade de países credores, que existe desde os anos 1960, mas à qual o Brasil só foi aceito em 2017) e no BIS (Banco de Compensações Internacionais, ou Banco de Basileia, cooperação entre bancos centrais). 

Em outros termos, o Brasil pode decidir fazer parte, ou se tornar membro de diferentes entidades interestatais internacionais ou regionais, com cujos princípios constitutivos, estatutos e objetivos ele esteja de acordo, como determinar o governo e decidir o Congresso (embora alguns acordos tenham sido feitos no Estado Novo, quando não havia Parlamento funcionando). Em alguns casos, ele mesmo pode determinar o surgimento de uma nova entidade – como no caso dos diferentes esquemas de integração regional –, ou propor, com alguns sócios escolhidos a dedo, um novo bloco para preencher objetivos específicos ou interesses nacionais bem definidos. 

Este não é o caso, contudo, do BRIC (este era o formato original, em 2006-2009) ou do BRICS (como se tornou a partir de 2011), que reputo como sendo uma entidade totalmente artificial, disfuncional e pouco propensa a consolidar um processo autônomo de afirmação internacional, de acordo a objetivos de desenvolvimento nacional especificamente brasileiros. O fato de que o BRICS tenha constituído um Novo Banco de Desenvolvimento – fundado aliás no Brasil, em 2014 – não me parece representar nenhum objetivo maior no quadro de nossa interface externa, apenas mais burocracia e contribuições mandatórias que são sempre custosas. Não é por falta de financiamento que a infraestrutura brasileira interna e para as exportações ainda é de péssima qualidade, e sim pela ausência de um bom ambiente regulatório e de bons projetos para captar recursos de diversas fontes externas e até internas, privadas ou de fundos e bancos existentes. O BRIC-BRICS foi uma construção política, reunindo quatro países que possuem poucos pontos em comum, em suas respectivas diplomacias e quase nenhuma convergência explícita nas estratégias de desenvolvimento.

 

4. Blocos e alianças estratégicas na matriz das relações exteriores

Blocos e alianças estratégicas deveriam ser como esses remédios de tarja preta, que só podem ser receitados em condições especiais, depois de um bom exame do paciente, da avaliação de seus efeitos colaterais e com um bom seguimento regular por especialistas na questão. Tais agrupamentos têm sido sobre-estimados e sobretudo vendidos a um preço acima de seu valor de mercado. Ao longo da história, muitos desses grupos foram constituídos, geralmente com objetivos econômicos ou de defesa.

Os mais frequentes são os blocos de comércio, mas mesmo aqui as variedades são muitas, desde os analgésicos das áreas de preferências tarifárias (como os acordos da Aladi, e vários outros pelo mundo, sobretudo entre países em desenvolvimento), ao fortificante das zonas de livre comércio (são centenas e centenas já registradas na OMC, como a Efta, por exemplo, embora algumas fossem bem mais musculosas, como o antigo Nafta), à vitamina da união aduaneira (o próprio Mercosul é uma, mas parece uma colcha de retalhos, muito perfurada), à anfetamina do mercado comum (o que gostaria de ser o Mercosul, mas ainda não consegue, e que corresponde à Comunidade Europeia nos anos 1960), passando depois aos antibióticos das uniões econômicas e monetárias (só a União Europeia adentrou por essa via, não considerando os países que renunciaram a ter moeda própria), até chegar nos barbitúricos da união política (por vezes por incorporação voluntária ou consentida, em outras por absorção). 

É possível que eles possuam virtudes estimulantes e fortificantes para os que deles fazem parte, mas também existem efeitos indesejados, como o fato de reduzirem os objetivos dos mais ambiciosos ao mínimo denominador comum; ou então levar os menos poderosos a agregar apoio às ambições dos mais fortes, que podem lograr, num caso ou noutro, alguma conquista que sozinhos não poderiam. A questão da confiança nesses blocos é fundamental, mas é difícil controlar a postura de cada um deles: existem os recalcitrantes até num bloco altamente institucionalizado, como o da União Europeia, ou manobras unilaterais que podem afastar parceiros formais do objetivo comum, como já tinha observado Tucídides, no caso da Liga Ateniense, que não impediu alguns membros de apoiarem Esparta na guerra do Peloponeso. 

Quanto aos pontos positivos ou negativos, o leque de alternativas ou de interpretações contraditórias é muito amplo para ser tratado nos limites deste pequeno texto. Mas cabem as perguntas de praxe: o Mercosul ajuda ou prejudica o Brasil? – perguntam alguns; já escrevi muito sobre o Mercosul, e meus trabalhos podem ser encontrados em minhas plataformas de interação acadêmica. O Brics é uma boa coisa para o Brasil, ou para a África do Sul? E o Ibas, a primeira entidade da fábrica de experimentos externos da diplomacia lulopetista, trouxe resultados positivos? Se sim, por que não se reúne mais? A Unasul, o que trouxe de diferente que o Brasil não fazer por si mesmo, bilateralmente ou em acertos pragmáticos, para algum projeto ad hoc? Em resumo, todos esses blocos, grupos, foros entregam o que prometem e os seus benefícios superam os seus custos, políticos e financeiros? Pode ser, mas seria preciso uma avaliação independente dos governos para avaliar se é realmente bom para o país. 

Por vezes, uma condução dos projetos nacionais em bases inteiramente autônomas, ou no plano estrito das relações bilaterais em caráter seletivo, pode oferecer um maior leque de opções ao país do que o pertencimento a um bloco arranjado de forma por vezes improvisada, no qual para conduzir qualquer nova iniciativa se deve sempre partir do mínimo denominador comum, uma vez que raramente projetos ambiciosos podem ser inteiramente compartilhados com três ou mais sócios do mesmo empreendimento. Creio que o Brasil é suficientemente instruído, sobretudo em sua diplomacia, para escolher ele mesmo suas melhores opções, tanto no plano formal – ou seja, em formato bilateral, regional ou plurilateral –, quanto no plano substantivo, ou seja, nos objetivos que pretende atingir em seu processo de desenvolvimento (se é que ele tem algum, realmente). 

 

5. A relação econômica entre Brasil-China e suas implicações

Apenas noções antiquadas de geopolítica pretendem limitar a esfera dos interesses nacionais ao âmbito de uma geografia determinada, ainda que de alcance regional ou mesmo mundial. Meio século atrás o Brasil ainda se definia como uma nação cristã do Ocidente e, por isso mesmo, aliada da grande potência hemisférica, contra o “comunismo ameaçador”. Um general autoritário, prussiano, mas suficientemente inteligente em matéria de política externa e versado nos interesses nacionais, resolveu mudar essa postura, em favor do que se convencionou chamar de diplomacia ecumênica, ou o pragmatismo responsável do ministro Azeredo da Silva, incorporado na diplomacia do General Ernesto Geisel. Foi ele quem tomou a decisão – aliás contra a direita burra militar – de estabelecer relações diplomáticas com a República Popular da China, em 1974, embora o crescimento do comércio bilateral tenha sido muito lento nos primeiros vinte anos. Desde 2009, a China é o principal parceiro do Brasil no plano estritamente do comércio, mas as perspectivas no plano dos investimentos e de projetos de cooperação científica e tecnológica também podem ser promissoras, se o Brasil realmente possuir diretrizes bem estabelecidas nesses terrenos. 

A complexa estrutura da economia mundial contemporânea determina, quase que de modo automático, uma imbricação necessária das economias nacionais, que de resto já funcionam em interdependência crescente, não tanto em função de determinações e escolhas governamentais, mas sobretudo em função de decisões tomadas em nível microeconômico, por parte das empresas privadas, que atuam segundo seu próprio cálculo de modo independente para uma alocação ótima de investimentos diretos. Critérios básicos nesse terreno são a abertura econômica, a criação de um ambiente favorável aos investimentos estrangeiros e a liberalização comercial de modo amplo, se possível ou necessário de modo unilateral. 

Isso significa que a antiga concentração, por vezes obsessiva, na busca e na conformação de um “espaço de políticas públicas”, potencialmente de autonomia nacional pela via da substituição de importações, não estaria mais de acordo com as novas características da geoeconomia global, o que talvez ainda não figure em todos os manuais de economia, ou nas respostas-padrão nos concursos de ingresso para a carreira diplomática. Imagine-se que diplomatas inteligentes já tenham superado tais concepções simplórias da independência nacional, que combinavam mais com os militares de antigamente.

Entre a última década do século XX e a primeira do século XXI – quando o mundo finalmente se libertou da velha Guerra Fria geopolítica, com a implosão do socialismo e o desaparecimento da União Soviética, e adentrou, talvez, numa nova Guerra Fria econômica, com a ascensão fulgurante da China –, o gigante asiático se tornou o parceiro incontornável de mais de uma centena de países, pelo menos no plano comercial, e se prepara para, dentro em breve, suplantar os EUA em termos de PIB (mas não, obviamente, em termos de PIB per capita, o que deve demorar mais um século, se algum dia chegar). A China, que perdeu a primeira e a segunda revoluções industriais, e talvez até a terceira, em meados do século XX – quando a China estava submetida ao maoísmo demencial –, se incorporou decisivamente à quarta revolução industrial e já se encontra ativamente numa das vanguardas da quinta revolução industrial. Ouso prever que, assim como os padrões industriais foram europeus, na sua primeira expressão tecnológica do século XIX, e que eles se tornaram basicamente americanos, com aportes europeus e japoneses, no decorrer do século XX, esses padrões vão combinar a inovação tecnológica de grandes empresas (muitas não existem ainda) e de laboratórios privados e governamentais dos países avançados, entre os quais a China já se inclui, e ela continuará determinando, grande medida, o futuro da Ásia (como já tinha ocorrido séculos atrás) e do mundo, pelo menos o mundo no qual o Brasil está inserido.

O Brasil sofreu um processo de desindustrialização precoce – que, no entanto, não é inevitável ou definitiva – e perdeu competitividade no plano internacional, o que só lhe é garantido, desde alguns anos, graças às exportações crescentes de commodities e graças à sua valorização em função da imensa demanda chinesa. Assim como, no século XIX foi um dependente financeiro dos banqueiros britânicos, e que, no século XX, tornou-se um grande dependente econômico e parcialmente político dos EUA, na atualidade tornou-se um dependente comercial da China, que lhe garante boa parte do superávit na balança comercial total, podendo compensar, em parte, os déficits crônicos nos serviços, e em parte nas transações correntes, o que absolutamente imprescindível para algum equilíbrio no balanço de pagamentos. A China é, para o Brasil e para dezenas de outros países, absolutamente incontornável no plano do comércio e progressivamente para investimentos, financiamentos e cooperação tecnológica. Trata-se de uma relação basicamente econômica, mas ela também possui implicações em outras áreas, como por exemplo nas ferramentas de comunicação e de informação, entre elas na questão do 5G (e futuramente do 6G e outras ferramentas). 

Assim como ocorria nos tempos das relações prioritárias com os EUA, as assimetrias – comerciais e outras – entre o Brasil e a China são bastante evidentes. A China já tinha a sua geografia comercial bem assentada: ela sempre importou matérias-primas de todos os fornecedores possíveis, e continua exportando seus manufaturados – boa parte produtos de design e tecnologia ocidentais – para todos os mercados abertos ao engenho e à arte de seus diplomatas e mercadores, todos absolutamente pragmáticos quanto aos resultados esperados, sem qualquer concessão a veleidades ideológicas ou uma patética aliança de um grupo de “não hegemônicos” contra os poderosos do mundo (como era a concepção equivocada dos lulopetistas que guiavam a diplomacia nos governos do PT). De uma aliança ilusória desses tempos de “diplomacia Sul-Sul” (mas a China é praticamente um país do “Norte”) se passou, nos tempos obscuros da diplomacia bolsolavista a uma paranoia contra o “comunismo chinês” que não faz nenhum sentido, nem econômico, nem diplomático. Um futuro governo “normal” deverá restabelecer as bases de uma relação proveitosa ao Brasil.

 

6. Minhas conclusões sobre nossa interface externa

A política externa e a diplomacia são coetâneas à própria construção da nação, aliás desde antes mesmo que ela assumisse o formato político de um Estado independente, como brilhantemente demonstrado pela obra que já nasceu clássica do embaixador Rubens Ricupero: A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (2017). A primeira fase da existência da nação foi dedicada à construção do próprio Estado, em meio a grandes comoções políticas, guerra no Prata e rebeliões internas, que exigiram um constante sentido de unidade nacional da parte dos dirigentes políticos, seja no turbulento primeiro Reinado, seja na ainda mais desafiada década das regências. Infelizmente, esses dirigentes não atenderam aos conselhos de Bonifácio e Hipólito, no sentido de se lograr uma rápida extinção do tráfico escravo e a liberação progressiva do recurso à escravatura, o que gerou uma grave deformação na formação da nova nação, que prolongou seus efeitos pelo resto do século XIX, durante todo o século XX e que ainda hoje projeta seus efeitos nefastos sob a forma de iniquidades sociais pouco compatíveis com a relativa sofisticação do desenvolvimento material do país.

A lenta construção de uma sociedade inclusiva vem sendo, durante todo o período recente, dificultada por um sistema político extremamente fragmentado, por uma democracia de muito baixa qualidade – porque marcada pelo mau funcionamento do Estado e pelo grau elevado de corrupção política –, o que vinha sendo parcialmente compensado por uma diplomacia particularmente exitosa, de grande qualidade e muito ativa. Infelizmente, essa trajetória parece temporariamente interrompida por uma grande ruptura com padrões aceitáveis de uma governança responsável, ao ser guindado no comando do país um político de tendências autocráticas, particularmente inepto em matéria de políticas públicas e excepcionalmente medíocre no tocante a uma política externa, já não se diga de qualidade, mas meramente aceitável, segundo alguns padrões a que se estava minimamente acostumado nas décadas anteriores. O resultado tem sido, nos dois anos e meio do presente mandato de Bolsonaro, uma governança caótica, improvisada, e uma diplomacia que logrou provocar o isolamento total do Brasil na região e na maior parte do mundo, sendo que o chanceler parece satisfeito com a condição de “pária”.

O Brasil tem sido um fornecedor altamente competitivo de produtos que se inserem plenamente em suas vantagens ricardianas permanentes, ou seja, os bens derivados das atividades de exploração de seus recursos naturais abundantes, o que promete continuar pelo futuro indefinido. De fato, o Brasil é um grande ofertante de todos os produtos que correspondem à sua matriz secular de economia extrativa e de base agrícola, mas tem enormes dificuldades para se inserir nos mercados de produtos de maior valor agregado, como os da eletrônica avançada, os da química fina e, de forma geral, produtos intangíveis, ou da inteligência. 

Vantagens comparativas, justamente, constituem a base sobre a qual se assentam os duplos fluxos, in e out, que todo país mantém com todos os demais, à base das assimetrias naturais que são as que sustentam as interações de todos os tipos. O Brasil tem inúmeras vantagens comparativas, absolutas e relativas, e uma análise prospectiva pode revelar em quais direções o país deve dirigir os seus esforços de investimento nos próximos anos, o que exige, obviamente, um governo que escape do jogo mesquinho da política corrente para visualizar os cenários futuros abertos ao engenho e à arte do povo brasileiro, dos seus agentes econômicos, dos seus artistas, músicos e esportistas. O mapa diplomático brasileiro é um dos mais extensos do mundo, o que deveria facilitar um esforço de identificação de tendências de consumo e de desenvolvimento em cada um dos países nos quais temos representação. Por uma vez, caberia, sem descurar nossas vantagens baseadas em recursos naturais dos últimos 500 anos, explorar as futuras vantagens, com base na projeção do que podemos fazer no quadro da economia do conhecimento e da sustentabilidade.

É certo que o Brasil se encontra, às vésperas do segundo centenário de sua independência, numa situação miserável, o resultado de erros monumentais da condução de sua política econômica nos 15 anos anteriores, da inércia governamental decorrente de uma corrupção política também mastodôntica, de uma incapacidade geral de suas elites políticas e econômicas em realizar um diagnóstico correto dos problemas existentes e, a partir daí, traçar um roteiro de reformas estruturais para superar a “estagnação secular” que nos atinge desde os anos 1980. É certo também que o governo atual se apresenta como um dos mais medíocres de toda a história do Brasil, não apenas por não conseguir estabelecer qualquer programa de governança racional, mas igualmente e sobretudo por ter elevado, de maneira extraordinária, a ignorância aos pináculos do poder. A olhar a história passada não se consegue identificar um governo que tenha consagrado o preconceito e o despreparo como credenciais para a ocupação de postos no governo, desde que identificados os candidatos com as “ideias” bizarras dos titulares do poder. O Itamaraty, infelizmente, não ficou imune a essa tendência.

Uma alternância no poder, que virá no momento oportuno, deveria encontrar um Itamaraty renovado, aliviado da depressão atual, com uma nova geração devotada justamente a um outro tipo de política externa e de diplomacia, adequada a um mundo sensivelmente diferente do que tivemos até aqui. Os mais jovens, que subirão a postos de mando nos próximos anos, terão de se organizar de forma autônoma, dado o virtual esgotamento de ideias, não exatamente entre os diplomatas, mas entre aqueles políticos que poderiam liderá-los na concepção e implementação de uma nova política externa, a partir, igualmente, de uma nova diplomacia.

Diplomacia, em qualquer tempo, em qualquer lugar do mundo, para todos os tipos de situações, inclusive em caso de guerras, significa, antes de tudo e principalmente, capital humano. Muito antigamente, a diplomacia era uma função episódica, reservada aos enviados dos soberanos, que para isso mesmo escolhiam os seus melhores assessores, ou nobres de fino trato, conhecimento de línguas e algumas posses, pois também era preciso exibir alguma pompa. Nas burocracias modernas, os diplomatas também se distinguem por sua educação refinada, domínio perfeito de outros idiomas e uma real vocação para a missão, que não é, justamente, simplesmente burocrática. 

A primeira academia diplomática nasceu em Viena, entre os Habsburgos, e depois disso a maior parte das diplomacias modernas criou instâncias de formação e treinamento de seu pessoal diplomático e consular (ainda duas carreiras separadas em alguns serviços). A despeito de ser relativamente recente, criado em 1945, o Instituto Rio Branco ganhou bastante prestígio, talvez nem tanto pelo que se estuda ali, mas pela preparação prévia que os candidatos já precisam ter para serem selecionados para a carreira. Em todo caso, o IRBr e o IPRI deveriam servir para a formação constante, o treinamento e o aperfeiçoamento dos diplomatas, que já são excelentes, mas que podem ficar ainda melhores se constantemente levados a continuar nos estudos, dentro e fora da própria Casa. Muitos deles hoje exibem mestrados e doutorados, no Brasil e no exterior, mas nem sempre uma visão puramente acadêmica é o que se requer no trabalho ativo, e sim a própria experiência adquirida nas frentes negociadoras, e na observação atenta de como são, como funcionam (ou não) outros países, por vezes os mais exóticos.

O capital humano do Itamaraty já é bom, de ingresso, mas pode ficar ainda melhor, se adequadamente estimulado, incentivado, cobrado a incrementar seus estudos e experiências com base num programa integrado das unidades de ensino, pesquisa e debate da Casa, com publicações constantes, até em áreas da cultura e da literatura em geral, não diretamente funcionais para o trabalho burocrático modorrento.

Um planejamento estratégico para a diplomacia brasileira deveria partir de um diagnóstico dos desafios principais do país, para a partir daí começar a traçar as grandes linhas de ação da política externa e da atuação da Casa naquelas áreas e espaços nos quais se requer a ação da diplomacia para subsidiar os esforços de desenvolvimento nacional (sim, o Brasil ainda é um país subdesenvolvido, não tanto pelas insuficiências de sua indústria ou agricultura, mas pela pobreza do seu povo e pela desigualdade vergonhosa que caracteriza nosso perfil distributivo). Um exercício de planejamento estratégico, como em vários outros esforços de ganhos de produtividade, pode até fazer com que o Itamaraty continue fazendo muito do que já faz atualmente, ou o que sempre fez: informação, representação, negociação. 

Mas ganho de produtividade significa fazer o mesmo com menos custos, ou fazer mais com os mesmos custos, o que me parece mais interessante. Isso depende basicamente do capital humano, que deve ser treinado a fazer algo mais do que simplesmente informar a Secretaria de Estado sobre o que se passa no seu posto e pedir instruções sobre como proceder para dar cumprimento à sua agenda de trabalho. Um planejamento estratégico para a diplomacia brasileira deveria partir de um diagnóstico dos desafios principais do país, para a partir daí começar a traçar as grandes linhas de ação da política externa e da atuação da Casa naquelas áreas e espaços nos quais se requer a ação da diplomacia para subsidiar os esforços de desenvolvimento nacional (sim, o Brasil ainda é um país subdesenvolvido, não tanto pelas insuficiências de sua indústria ou agricultura, mas pela pobreza do seu povo e pela desigualdade vergonhosa que caracteriza nosso perfil distributivo).

Um exercício de planejamento estratégico, como em vários outros esforços de ganhos de produtividade, pode até fazer com que o Itamaraty continue fazendo muito do que já faz atualmente, ou o que sempre fez: informação, representação, negociação. Mas ganho de produtividade significa fazer o mesmo com menos custos, ou fazer mais com os mesmos custos, o que me parece mais interessante. Isso depende basicamente do capital humano, que deve ser treinado a fazer algo mais do que simplesmente informar a Secretaria de Estado sobre o que se passa no seu posto e pedir instruções sobre como proceder para dar cumprimento à sua agenda de trabalho. O planejamento estratégico da diplomacia brasileira deveria oferecer aos diplomatas os grandes temas relevantes do seu trabalho. Este não necessariamente será sobre a agenda diplomática do país ou do órgão em questão, pois esse é o lugar comum e o pão diário de todo diplomata, mas poderá ser a vida interna do país, seus êxitos e fracassos no tratamento e encaminhamento dos seus principais problemas nas questões econômicas, sociais, culturais, educacionais, e questões conexas.

Digo isso porque quer me parecer que o Brasil não possui nenhum problema internacional digno de nota, em todo caso algum que derive de suas posturas diplomáticas, que sempre me pareceram bastante corretas (menos as atuais, que são horrorosas, mas essa é outra questão). O que o Brasil exibe ao mundo, e que precisa ser corrigido urgentemente, são, precisamente, sua situação calamitosa no plano social, a ineficiência de seu Estado, com seus mandarins privilegiados, a falta de segurança pública, a pobreza andrajosa das ruas, o desempenho calamitoso de seus estabelecimentos de ensino de massa, a corrupção nas altas esferas públicas, a violência contra os mais humildes e minorias, a falta de um Estado de Direito, o que também tem a ver com o lado perdulário e pouco produtivo do Judiciário. O Brasil possui inúmeras “jabuticabas”, que não existem em outros países, e que não teriam por que subsistir aqui; uma boa observação a partir do exterior, com base naquilo que já se conhece do Brasil, pode permitir detectar tudo isso.

Ou seja, os diplomatas podem continuar fazendo aquilo que sempre fizeram, mas um outro olhar de fora do Brasil para dentro poderia ajudar bastante a corrigir nossas deformações mais gritantes. O Brasil será um país melhor para o mundo quando ele for melhor para si mesmo, para os seus filhos, em especial os mais humildes. Não sei se esse seria um bom exercício de planejamento diplomático, mas a mim parece suficientemente gratificante como para justificar algumas horas a mais a estudar o Brasil no Instituto Rio Branco e no IPRI, e algumas horas a mais, no exterior, a estudar o país em seus aspectos internos, e não apenas a sua diplomacia e suas posturas negociadoras. Tais são, parece-me, as bases para o estabelecimento de um verdadeiro e completo planejamento estratégico para o serviço diplomático brasileiro.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4001: 21 outubro 2021, 17 p.

 

 

Recomendações de leitura e de consulta: 

3984. “Alca e Mercosul: dois processos paralelos, não divergentes”, Brasília, 22 setembro 2021, 3 p. Paper introdutório, destinado aos participantes de um evento organizado pelo Instituto Brasileiro de Debates (6/10/2021, 19hs). Divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/09/alca-e-mercosul-dois-processos.html).

3850. “Lista de trabalhos sobre Mercosul, União Europeia e integração”, Brasília, 31 janeiro 2021, 17 p. Listagem seletiva em torno dos conceitos referidos, de 1987 a 2020. Postado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/45068630/Trabalhos_PRAlmeida_sobre_Mercosul_Uniao_Europeia_e_integracao_1987_2020); anunciado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/02/lista-de-trabalhos-sobre-mercosul-uniao.html).

 

 

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