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sábado, 8 de fevereiro de 2020

Quem são os grandes benfeitores da Humanidade? - Paulo Roberto de Almeida

Quem são os grandes benfeitores da Humanidade?

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: discussão livre; finalidade: debate público]
  
Liberais tendem, eu sei, a conceder primazia ao indivíduo sobre entidades coletivas. Como se diz: a menor minoria é o indivíduo, uma simples pessoa humana, que sempre deve ser protegida contra certos desvarios da coletividade, como fundamentalismo religioso, sectarismo e intolerância política, preconceitos raciais, étnicos, comportamentais de diversos tipos. O liberalismo clássico emergiu na consciência coletiva justamente pela sua defesa do individualismo, e portanto são os indivíduos que devem ser protegidos e, eventualmente, homenageados, pelas realizações, descobertas, inovações, progressos científicos e morais que fizeram em benefício de toda a humanidade.
Não vou agora fazer uma lista desses benfeitores, mas meu critério básico é o de ver, identificar, denominar aqueles que mais vidas salvaram, mais bem-estar trouxeram a seus semelhantes, sem necessariamente buscar a glória, a riqueza ou o prestígio universal. São pessoas que se dedicaram a salvar vidas, a proteger os indefesos, a elevar os padrões morais, espirituais, educacionais, eventualmente científicos, da espécie humana, aquilo que se poderia chamar de Humankind.
Sócrates entra numa categoria especial, ao defender a lógica elementar, a simples racionalidade, como critério básico do entendimento humano sobre as coisas dos homens. Confúcio entra em outra categoria especial, ao enunciar certos códigos de conduta que deveriam orientar as pessoas no seu relacionamento com os semelhantes, com os pais e com os seniores, ademais de relembrar aos poderosos, aos dirigentes, as responsabilidades que eles sempre têm com relação ao povo mais simples (aspectos por vezes eludidos em sua filosofia moral). Cristo é certamente um grande benfeitor da humanidade, ao pregar o amor e a fraternidade, mesmo para com o opressor, rompendo com a Lei do Talião, que era a do seu povo original; costumes bárbaros de sacrifícios humanos passaram a ser repelidos com vigor, ainda que o fanatismo religioso tenha provocado milhões de vítimas nos séculos que se seguiram à disseminação do cristianismo. Leonardo da Vinci, Fernão de Magalhães, o grande inventor e o primeiro globalizador – ou globalista, ainda que ambicioso – entram, para mim, naquela categoria de intrépidos aventureiros do saber, da descoberta, da inovação, da coragem e da ousadia. 
Se eu fosse um economista, e não o sociólogo meio marxista que sou, talvez eu colocasse Adam Smith entre esses grandes benfeitores da humanidade, ao ter rechaçado com vigor o mercantilismo egoísta e proclamado as virtudes do livre comércio, não apenas para ganhos materiais, mas também para benefícios morais. Fez mais para os progressos materiais de muitos povos – a começar pelo seu, o escocês, depois os ingleses e, finalmente britânicos, que talvez se dividam agora novamente – do que os socialistas utópicos (ainda que bem intencionados) e outros igualitaristas econômicos, atualmente representados pelos mesmos obtusos anticapitalistas que se disseminaram na esteira de Marx. 
Mas ficando apenas na vertente propriamente científica, a que mais salvou milhões de seres humanos, ou diminui-lhes o sofrimento em virtude de doenças endêmicas e epidêmicas, temos vários inventores de vacinas, de antibióticos, ou de inovações no campo da agricultura, das ciências naturais, que merecem figurar no rol de benfeitores da humanidade: Pasteur, Sabin, Pauling e muitos outros, cujos nomes desconheço por não trabalhar no campo dessas ciências, biológicas ou outras. Mesmo bilionários, como Bill e Melinda Gates merecem figurar nesse panteão, justamente por facilitar o acesso a milhões de crianças e adultos, em todas as latitudes e longitudes de países pobres, a vacinas e outras ferramentas preventivas e curativas de doenças capazes de dizimar todos esses seres desprotegidos por governos corruptos ou ineptos. Aliás, eu acho que bilionários em geral prestam mais serviços úteis à Humanidade, apenas por serem bilionários – quando o são pelo mercado, evidentemente, e não por favores de quaisquer governos e políticos corruptos –, do que outros cidadãos que trabalham normalmente para ficar apenas na “armadilha da renda média”: afinal de contas, os bilionários são um exemplo e um estímulo para milhões de outros indivíduos, sobretudo os mais pobres, que também querem viver no luxo e no conforto, o que os incita a trabalhar mais duramente, a inventar algo de útil, a procurar servir melhor a “tirania do consumidor”, de que falava Ludwig von Mises.

Mas eu gostaria de deixar essa vertente liberal do individualismo, ainda que meritório, e refletir sobre entidades coletivas, propondo um prêmio aos povos que melhor serviram às causas da humanidade como um todo, mesmo involuntariamente, inconscientemente, sem sequer pretender fazer o bem. O que eu quero dizer é que certos povos, pelas suas virtudes morais, pela suas energias inventivas, pela sua dedicação ao trabalho, à família, à busca de bem estar por meio da cooperação voluntária, pela ausência de instintos de conquista, de desejos de hegemonia imperial, de dominação pela submissão de outros povos, certos povos merecem igualmente entrar na categoria de benfeitores da humanidade, como um todo. 
Eu colocaria em primeiro lugar o povo judeu, uma parcela “insignificante” da humanidade, que raramente alimentou desejos de conquista, de submissão, ou de proselitismo religioso sobre outros povos, mas que trouxe, certamente por indivíduos magníficos que emergiram de seu cadinho multissecular para oferecer à humanidade grandes inventores, artistas, científicos, filósofos, líderes morais, que, sem qualquer dúvida, fizeram muito para elevar os padrões materiais, culturais e espirituais de todos os demais povos (mesmo quando estava ele mesmo subjugado, nas várias diásporas enfrentadas ao longo do tempo). O povo judeu representa, provavelmente a mais longa continuidade cultural, étnica, religiosa em milênios de existência humana sobre a Terra, quase tão longa quanto a continuidade cultural e étnica – mas não religiosa – do povo chinês, que entra também no mesmo universo.
Justamente, eu colocaria o povo chinês, em sua longa continuidade histórica, como o segundo, e talvez único grande povo dotado da mesma cultura ao longo de séculos, como um grande benfeitor da humanidade, quaisquer que sejam suas outras “qualidades” em termos de organização política e de direitos humanos. Foi o povo mais avançado do mundo durante séculos, tendo “oferecido” invenções e descobertas, instituições e obras de arte de qualidade inigualável, quando outros povos ainda se debatiam na incultura e nos conflitos guerreiros. A globalização iniciada nos Descobrimentos se destinava precisamente a fazer com que esses povos “atrasados” da Europa ocidental tivessem acesso à riqueza e sofisticação da China, mesmo quando esta se debatia, como sempre foi o caso, com regimes políticos marcadamente opressores, assim caracterizados pelos sociólogos do “despotismo oriental”. Muito disso ficou perdido nos séculos anteriores à era contemporânea, quando a China se atrasou na primeira e na segunda revolução industriais, para só entrar tardiamente na terceira, ou quarta, e agora avançar celeremente na vanguarda da quinta revolução industrial. Mas ela já prestou grandes serviços à economia mundial, e ainda presta, no último meio século, depois de se ter liberado do “maoísmo demencial”, e dos resquícios mais irracionais do comunismo – agora disfarçado e subsumido numa enganosa designação de “socialismo de mercado, que não tem nenhuma “característica chinesa”, sendo apenas o velho e duro capitalismo –, para penetrar em todos os desvãos da interdependência econômica global. 
Não tenho nenhuma hesitação em colocar o povo chinês – não a China da República Popular – como “benfeitor da humanidade”, uma vez que nem ele nem, aliás, os próprios novos mandarins da RPC pretendem exportar o seu regime político, ainda hoje nas antípodas do que significa uma “democracia de mercado”, no sentido ocidental da palavra. Os chineses só querem ficar ricos, como já o fizeram europeus ocidentais, americanos e outros povos que enveredaram pelos caminhos dos governos representativos, respeitadores das franquias democráticas, dos direitos humanos, das plenas liberdades, tais como consagradas em documentos históricos de avanços civilizatórios, tais como a Magna Carta (1215), o Bill of Rights (1689), a Declaração de Emancipação americana (1776), a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a Carta da ONU (1945) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), ademais de vários outros documentos históricos nas mesmas vertentes civilizatórias. 
Os chineses, é verdade, não têm muito a ver com esses instrumentos universais da dignidade humana, que na verdade são representativos de uma “dominação” ideológica da cultura ocidental sobre o resto do mundo ao longo de quase um milênio. Uma “história chinesa” da humanidade e da filosofia provavelmente teria outros aportes significativos que fogem neste momento do alcance do conhecimento deste simples escriba. Mas, acredito que os chineses também vão se juntar às grandes correntes da cultura universal que colocam a dignidade do ser humano à frente de quaisquer outras virtudes civilizatórias, como aliás já o fizeram os judeus desde a mais remota antiguidade.
Outros povos também fizeram grandes aportes ao bem-estar da civilização moderna e contemporânea, nos terrenos da arte, da música, da literatura, das ciências e dos progressos tecnológicos e demais avanços na filosofia política e nos direitos humanos desde o início da era moderna. Difícil identificar essas contribuições, que também são por vezes mais ligadas a certos indivíduos do que representativas de todo um povo, e seria ousado eu selecionar agora os exemplos mais significativos. Se ouso falar em nome do próprio povo brasileiro, eu traria o exemplo da mistura racial como uma das mais belas contribuições do nosso povo em benefício de toda a humanidade, o que não impede a existência de racismo e discriminação na sociedade brasileira. 
Se me permitem citar outros exemplos do Brasil, eu colocaria Pelé e Tom Jobim como grandes “benfeitores” da humanidade, e sem dúvida o futebol e a Bossa Nova são grandes aportes, não exclusivos, de nosso povo para o prazer e o deleite universais. Assim também são o jazz, a Coca-Cola, o iPhone do ponto de vista do patriotismo americano, mas vejam que os chineses já estão chegando com os seus equivalentes ainda mais funcionais que as ferramentas de comunicação social, da mesma linha do WhatsApp e Facebook, atualmente disponíveis. Assim como os europeus dominaram os padrões técnicos da economia global no século XIX, e os americanos e japoneses o fizeram em boa parte do século XX, os chineses estão entrando com vigor na determinação dos novos padrões industriais do século XXI. Assim caminha a humanidade, cada vez para padrões mais elevados de bem estar material, que sempre precedem a elevação espiritual de todos os povos.
Não creio que a ONU, ou qualquer outra entidade distribuidora de prêmios para indivíduos benfeitores da humanidade ao redor do mundo – como as instituições do prêmio Nobel e seus equivalentes setoriais – venham a criar esse prêmio que estou propondo: o de povos benfeitores da humanidade. O que não me impede de institui-lo pessoalmente: eu começaria pelo povo judeu, continuaria com o povo chinês, e depois veríamos quem mais merece. O povo brasileiro talvez apareça entre os dez primeiros da fila, junto com outros certamente meritórios, mas não vou entrar nessa discussão neste momento.
Vale pela reflexão no meio da noite. Passem bem todos e todas...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 8 de fevereiro de 2020