Mais de um ano antes das eleições de 2002, o então diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, ou já depois de ingloriosamente defenestrado do IPRI, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, costumava me remeter seus artigos para Carta Maior, pedindo comentários. Como nunca fui de desprezar a produção intelectual de amigos, sempre me esforcei para apresentar minhas observações críticas aos seus textos. O que vai abaixo é um exemplo, entre vários outros, de exchange a propósito de questões relevantes de políticas econômicas e de política externa do Brasil.
Talvez ele seja um, entre vários outros, que me colocaram na mira do futuro SG-MRE do governo Lula, a partir de janeiro de 2003, quando fui vetado pela primeira vez para exercer um cargo na Secretaria de Estado (haveria outros vetos, aliás durante os 13,5 anos do regime lulopetista).
Transcrevo primeiro o artigo de Samuel Pinheiro Guimarães, depois os meus comentários.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 agosto 2018
A Argentina, o Brasil e o futuro do Mercosul
Artigo para o site Carta Maior
www.agenciacartamaior.com.br <http://www.agenciacartamaior.com.br>
Samuel Pinheiro Guimarães
11 de janeiro de 2002.
1. A violenta crise que ainda vive a Argentina não significa o fim do Mercosul e muito menos da Argentina. Esta crise já libertou a Argentina de um arcaico e engessante regime cambial e poderá ser a oportunidade para ela se desvencilhar da política de alinhamento político incondicional e do programa econômico concentrador e excludente patrocinado pelo FMI/EUA e assim reparar as ruínas sociais, econômicas e políticas, causadas por tal programa, executado por pró-cônsules nativos. É cada vez mais urgente repensar o Mercosul para além da reconstrução argentina, a partir de uma reflexão sobre as estratégias que possam retirá-lo do marasmo e do pântano de ressentimentos em que se tornou.
2. A crise, que antes do acelerar da crise argentina, já atingia a Mercosul é apenas um reflexo das crises vividas nos países do Cone Sul. O lento crescimento da economia regional, a retração do comércio intrazonal, a profunda crise política e econômica na Argentina, a estagnação brasileira e os esforços frustrados de gerar superávits significativos, o desemprego e o deslocamento de setores industriais tendem a se agravar com a recessão sincrônica mundial e as consequências inibidoras dos atentados de setembro.
3. Mesmo antes da crise atual argentina, a situação econômica interna dos países do Mercosul levara à crise econômica do Mercosul que, por sua vez, fez ressuscitar e continua a estimular as rivalidades históricas de toda ordem. E coloca o projeto de integração regional sob grave risco, enfraquece o Cone Sul e sua capacidade de contribuir para organizar politicamente a periferia sul-americana diante da ação das estruturas hegemônicas de poder.
4. Ao Brasil e à Argentina, todavia, continua a interessar a construção de um bloco econômico, político e militar que, fortalecendo sua estrutura econômica, permita a participação a médio prazo dos dois países no sistema internacional em grau de igualdade com Estados de semelhante potencial demográfico e territorial. Este objetivo somente será possível atingir abandonando a visão neoliberal do funcionamento da economia mundial e da economia nacional e restaurando a ideia-força do desenvolvimento com base no mercado interno, isto é, no pleno emprego dos fatores nacionais de produção e na geração e absorção de tecnologias adequadas à constelação de fatores dos dois países e do Cone Sul.
5. As estratégias que vêm sendo sugeridas para enfrentar a crise do Mercosul são de difícil execução em prazo adequado, algumas são inviáveis e outras podem até agravar a crise.
6. A tentativa de organizar agências supranacionais e mecanismos efetivos de solução de controvérsias não resolve a crise do Mercosul e até a agrava. Apesar de a criação de agências supranacionais ou de mecanismos de solução de controvérsias serem, em teoria, aperfeiçoamentos institucionais, há uma insuperável dificuldade que as extraordinárias assimetrias territoriais, demográficas e econômicas entre os quatro Estados trazem para a definição democrática e equilibrada de sua representação nessas eventuais agências e mecanismos. E muito mais difícil se torna imaginar tais esquemas em situações de tão grave crise como esta que a Argentina ainda vive e continuará a viver durante algum tempo.
7. A coordenação de políticas macroeconômicas através de consultas entre autoridades, ou de fixação de metas macroeconômicas comuns ou a criação de uma moeda única (que implica a organização de um Banco Central único) são medidas de longo prazo, inúteis até de imaginar quando até a coordenação interna, dentro de cada país, dessas políticas encontra sérias dificuldades. Na situação de grave crise externa e interna, imaginar que o abandono pela Argentina da paridade legal dólar/peso e a adoção de um sistema de câmbio duplo e até, eventualmente, flutuante, e como tal semelhante ao brasileiro viria a facilitar a adoção de uma moeda comum pelos países do Mercosul é simplesmente um profundo equívoco de avaliação e algo cujo grau de probabilidade é rigorosamente zero.
8. As questões mais urgentes e decisivas no caso da Argentina, do Brasil e do Mercosul (a situação do Paraguai e do Uruguai são mera decorrência e incapazes de afetar o destino do bloco) são: o desequilíbrio estrutural das transações correntes; a dificuldade de expandir exportações para terceiros países; as tensões decorrentes dos deslocamentos econômicos de empresas e trabalhadores em um período de grave crise e a necessidade de promover o desenvolvimento industrial e abandonar a utopia retrógrada de criar uma sociedade moderna baseada em economias agroexportadoras.
9. A situação argentina hoje leva a crer que a estratégia para sua superação exigirá uma profunda reestruturação do esquema do Mercosul. Portanto, surge a oportunidade para lançar as bases de um verdadeiro projeto de integração econômica e política que venha a ser o cerne da articulação de um polo sul-americano no sistema mundial de poder. É claro que a continuidade das negociações da ALCA faria malograr esta oportunidade. Com a ALCA, a América do Sul passará a fazer parte do território econômico norte americano e os Estados da região deixarão de poder fazer, de fato e de direito, políticas de aceleração do desenvolvimento, redução das disparidades internas e eliminação das vulnerabilidades externas.
10. A evolução da situação argentina permite prever as seguintes etapas:
a) a Argentina, em situação de moratória, não conseguirá atrair capitais de empréstimo ou investimentos diretos que permitam saldar os seus compromissos internacionais a curto e médio prazo;
b) a atual política dos EUA /FMI não favorecerá mega operações de salvamento de investidores estrangeiros que, no caso da Argentina, são em número muito significativo europeus;
c) o Governo argentino terá de promover políticas internas de poupança e de investimento capazes de reduzir de forma significativa e rápida o desemprego e a percentagem da população abaixo da linha de pobreza, pois, caso contrário, o descontentamento popular se reacenderá;
d) o Governo argentino terá de, nesse processo, proteger o seu mercado interno, promover investimentos de empresas e capitalistas argentinos e para tal terá de aumentar o grau de proteção da economia, aumentando suas tarifas;
e) o Governo argentino terá de fazer uma política comercial voltada para a geração de forte superávit comercial tendo em vista a impossibilidade de obter superávits significativos em outras rubricas do balanço de transações correntes (fretes, juros, turismo etc.);
f) esta política comercial terá de incluir necessariamente esquemas de subsídio às exportações e a elevação de tarifas que hoje são comuns com as do Brasil, do Paraguai e do Uruguai, na forma de Tarifa Externa Comum, do Mercosul;
g) o principal destino das exportações argentinas é o Brasil e, portanto, em condições de moratória internacional, difícil será para a Argentina fazer um amplo superávit comercial total, sem ter um superávit significativo com o Brasil;
h) a política comercial da Argentina procurará favorecer a transformação do Mercosul de união aduaneira (aliás, em extremo imperfeita) em uma zona de livre comércio, o que permitiria à Argentina alterar suas tarifas para terceiros países sem ter de atender às conveniências econômicas e comerciais do Brasil (e do Paraguai e do Uruguai).
i) como resultado oportuno e favorável ao Brasil, a política comercial argentina não poderá continuar a favorecer a constituição da ALCA, pois a ALCA destruiria qualquer possibilidade de construir um superávit significativo, além de impedir, de direito, as políticas comercial, industrial e tecnológica indispensáveis à reconstrução argentina e ao fim da instabilidade social e política que continua latente e passível de erupção.
11. Para o Brasil, a estratégia adequada para contribuir para a superação da crise argentina está longe de se tornar elegante mediador entre o Governo argentino e o Fundo Monetário e os Estados Unidos, mas sim a de ser um defensor de políticas de desenvolvimento argentinas e de sua soberania. O Brasil não deveria insistir na manutenção do Mercosul como união aduaneira, mas aproveitar a oportunidade para transformar o Mercosul em verdadeiro projeto de integração econômica e política. Este projeto deve ter como base realista a atual zona de livre comércio aperfeiçoada, com mecanismos de equilíbrio e uma coordenação de políticas tarifárias naqueles setores de interesse vital de longo prazo para o Brasil, tais como bens de capital e informática. A possibilidade de estabelecer mecanismos de crédito recíproco amplos é indispensável para preservar o comércio bilateral. A possibilidade de operações de resgate da dívida no pulverizado mercado de títulos não deve ser descartada nem sua importância minimizada. A criação de mecanismos de compensação e de fundos setoriais de reestruturação, de programas comuns, em especial em áreas de tecnologia avançada e de exportações, e de programas comuns de investimentos estratégicos completariam o quadro econômico do projeto. Na esfera política, a oportunidade é única para estabelecer as bases de uma coordenação estreita, profunda e verdadeira entre o Brasil e a Argentina que fortaleça a atuação dos dois países nas negociações internacionais de toda ordem e na construção de um polo político sul-americano, não-hegemônico, em que o Brasil abra seu mercado sem reciprocidade a seus vizinhos, que possa preservar a possibilidade de desenvolvimento e de afirmação política do continente, evitando sua absorção em esquemas liderados pelas Grandes Potências, como é a ALCA. A atitude atual do Brasil será definitiva para que essas oportunidades possam se concretizar.
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Mercosul, Alca e Argentina: opções do Brasil
Comentários a texto de Samuel Pinheiro Guimarães
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 8 fevereiro 2002
-----Original Message-----
From: Paulo Roberto de Almeida
Sent: Friday, February 08, 2002 16:30
To: 'samuelpgn@uol.com.br'
Cc: 'palmeida@unb.br'
Subject: Argentina, Brasil e futuro do Mercosul
Meu caro Samuel,
Tenho por você a maior admiração e apreço, intelectualmente, moralmente, como cidadão, como diplomata, como pessoa humana. O que não quer dizer que devamos concordar em tudo. Mercosul é um terreno de minha predileção, no qual coincidimos talvez em 90 p/c das recomendações, mas persistem algumas divergências que talvez sejam mais táticas do que estratégicas. Vamos portanto ao seu texto que requereu toda a minha atenção.
Comento topicamente, parágrafo por paragrafo, que já estão numerados, e depois venho ao geral.
1. Concordo em que a crise permitira a Argentina se desvencilhar da camisa de forca da lei de conversibilidade, mas não acredito ser realista esse preconizado distanciamento dos EUA e do FMI: eles simplesmente não podem se permitir tal independência, pois não têm os meios e são e continuarão totalmente dependentes dos aportes financeiros de Washington nos próximos meses e anos. Sua linguagem é aqui muito dura, mas creio que você tem atualmente a liberdade para empregar palavras fortes (pró-cônsules). Não creio que haverá alinhamento incondicional, mas a dependência, isso sim, continuará. Portanto, minha única observação seria essa. Não seria o caso de agregar uma frase do tipo?: "ainda que tal independência fosse recomendável, não seria realista esperar o distanciamento da Argentina dos Estados Unidos nos próximos meses e mesmo anos, em virtude da situação de extrema fragilidade financeira e de dependência efetiva em relação ao dinheiro de Washington."
2. Eu diria que a crise antes de Cavallo não era propriamente do Mercosul, mas dos países membros: Brasil, Argentina tinham suas próprias crises. Ela so se tornou do Mercosul quando Cavallo começou a adotar medidas frontalmente contrarias ao espirito da UA. Concordo que havia muita fricção anteriormente, e mesmo desrespeito as normas, mas nada de muito grave. Cavallo representou uma contestação conceitual, filosófica aos fundamentos essenciais do Mercosul. Fiz esse tipo de analise num artiguinho inédito que não publiquei, pois não deixaram (quando o Lampreia aderiu às teses “cavallinas” em setembro passado). Depois incorporei num texto maior que mando em anexo.
3. Eu não acredito que a crise, dos países membros ou do Mercosul, tenha ressuscitado as rivalidades históricas de toda ordem como você diz. Isso simplesmente não existe. Não podemos tomar declarações esparsas de homens políticos como demonstrativo de um revivalde eras passadas. Por outro lado, falar em "organizar politicamente a periferia sul-americana" me revela uma atitude semi-imperial que condenamos no Big Brother e não acredito que ela beneficie o Brasil no subcontinente. Podemos até ser líderes, mas não deveríamos proclamar isso. Organizar periferia soa como arrogância imperial...
4. Abandonar a visão neoliberal pode até ser (ainda que eu ache que o neoliberalismo é mais proclamado do que praticado; eu fiz um texto sobre isso que mando agora), mas achar que a "ideia-força do desenvolvimento com base no mercado interno" vai resolver os problemas econômicos imediatos, isso para mim é muito otimismo. Um projeto de longo prazo ou pelo menos de efeitos delongados não pode servir de paliativo para os problemas do presente.
5. Concordo e se trata de simples constatação, mas o parágrafo não traz propostas concretas, ou seja não é substantivo, meramente indicativo de algo que não sabemos o que é.
6. Concordo totalmente, mas creio que a supranacionalidade nem está em causa no momento, entre os países membros, sendo um punhado de juristas acadêmicos que a defendem. O Uruguai e Paraguai defendem o tribunal permanente e eu concordaria com a ideia de uma corte arbitral "permanente" (com árbitros à disposição, por períodos rotativos de 3 a 4 anos) para julgar rapidamente os casos. Seria um pequeno grão de "supranacionalidade" numa estrutura que para mim deve permanecer intergovernamental pelo futuro previsível.
7. Concordo também, e nenhum dirigente realista está advogando a moeda única agora, mas creio que os similares de critérios de Maastricht (que já existem parcialmente, desde Florianópolis) podem começar a ser monitorados em escala nacional para a futura coordenação quadrilateral. Mas não morro pela União Monetária do Mercosul...
8. A constatação econômica é realista, mas não concordo em que uma forte economia agroexportadora seja uma utopia retrograda. A agricultura hoje é uma grande indústria, mais, ela combina serviços, software, biotecnologia, marketing, financiamento, tudo, e muito mais que fazem dela uma atividade essencialmente moderna e avançada. Concordo em que a elasticidade-renda (menor de um) não recomenda uma estratégia exportadora baseada em agro como NORMA GERAL, mas o Brasil tem chances únicas de aumentar rapidamente exportações nessa área substituindo outros fornecedores e deslocando competidores. Isso podemos fazer. Sou consciente do protecionismo, mas isso não pode demover-nos de explorar nossas vantagens comparativas que neste caso são totalmente dinâmicas....
9. A superação da crise argentina depende quase que inteiramente deles, não do Mercosul. Podemos ajudar, e eu seria favorável a que o Brasil estendesse uma linha de credito de 1 bi para mover os negócios novamente. Mas o essencial tem de ser feito por eles. Será duro, muito duro, mas o papel do Mercosul tem de ser outro, situado mais no terreno politico-diplomático (e estratégico-hemisférico) do que no campo econômico financeiro.
10. Concordo com algumas ideias, mas sou cético em relação à recomendação f), de subsidio as exportações e de elevação de tarifas (de quem, dos países membros, como hoje, ou da TEC?). Não sei se eles insistirão, como fazia Cavallo, com h), isto é, transformar o Mercosul de UA em ZLC. Eles precisam do Brasil e farão o que nós queremos e portanto não posso concordar também com o que vem em 11.
11. Discordo radicalmente, fundamentalmente da ideia de abandonar a UA, e isso não por motivos estritamente econômicos, mas por razoes de processo diplomático/negociatório nos próximos anos. Sou favorável a manter a UA pelo menos ate 2005. Sou favorável a iniciar desde já uma reflexão com os argentinos para mudar o Mercosul, quem sabe até permitindo a saída da UA e a volta a uma ZLC, a partir de uma conferencia diplomática no final de 2004 (que nós coordenaríamos), como está indicado (mas ainda não desenvolvido) no meu trabalho 811 que segue anexo. Nos simplesmente não podemos ficar sem a UA agora, pois isto significaria uma ordem dispersa no Mercosul e a fraqueza frente ao Império (além de impossibilitar negociações com a UE). CONCORDO TOTALMENTE em que a gente abra o nosso mercado sem reciprocidade (o que a UA do Mercosul atrapalha um pouco reconheço), pois esta é a garantia da Alcsa, que precisaríamos ter (mas sou cético porque a CAN e' uma bagunça monumental, e vão ceder ao Império no primeiro aceno).
Formalmente esse paragrafo esta muito longo e deveria ser dividido nas questões financeiras, comerciais, de politicas setoriais, diplomacia etc.
Meu caro Samuel, tenho algumas ideias a respeito do Mercosul, mas seria difícil expô-las agora. Ainda não coloquei no papel essas ideias, inclusive porque não me deixariam publicar. Mas gostaria de debater com você.
Estou indo ao Brasil em março, segundo o roteiro anexo. Podemos sentar e conversar?
Eu até coloquei, tentativamente, uma palestra na FGV, Palestra:
"Alca, OMC e negociações comerciais: desafios para o Brasil" ??, mas estava justamente querendo falar contigo.
Abração,
Paulo Roberto de Almeida
Minister Counselor
Brazilian Embassy
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