Como nos aproximamos de novas eleições presidenciais, quando as mesmas propostas podem voltar a ser feitas, no mesmo tom demagógico e eleitoreiro, dou conhecimento de minhas críticas feitas 15 anos atrás. Quem sabe os candidatos melhoram suas propostas desta vez?
Paulo Roberto de Almeida
O Programa de Campanha do PT em 2002:
arredondando o quadrado ou ainda a quadratura do círculo?
Washington, 29/06/2002
Depois de muita discussão,
alguma hesitação e certamente toneladas cúbicas de transpiração, o PT conseguiu
finalizar e apresentar ao distinto público seu programa político para a campanha
presidencial de 2002. A versão definitiva ainda está sendo trabalhada pelos
líderes do Partido (que, espera-se, devem corrigir alguns erros de Português da
versão resumida apresentada pelo jornal O
Estado de São Paulo), mas o texto que foi transcrito no Estadão deste sábado 29 de junho já é
suficiente para termos uma idéia do que vem pela frente em termos de propostas
inovadoras e idéias criativas para tirar o Brasil do impasse e conduzi-lo a uma
nova fase de crescimento com justiça social.
Se eu pudesse resumir o
sentido geral do documento, ainda que correndo o risco de ser massacrado pelos
meus amigos petistas, eu diria tão simplesmente: neoliberalismo envergonhado e
compromisso retórico com o social. Senão vejamos.
A reportagem abre com uma
síntese das boas intenções do PT: “O programa de
governo do PT propõe crescimento econômico de 7% ao ano, garante que o partido
não vai romper contratos nem revogar regras estabelecidas. Diz ainda que os
compromissos internacionais serão respeitados e que as mudanças necessárias
serão feitas “democraticamente, dentro dos marcos institucionais”.
Bem, se não há rompimento de
contratos, nem revisão de regras e se as mudanças serão todas feitas dentro dos
marcos institucionais, o que isto significa senão reformismo puro e simples?
Algo de diferente ocorreria com o PSDB, com o PPS ou mesmo com o PFL?
Provavelmente não, o que confirma a enorme evolução do PT desde as campanhas
fracassadas de 1989, 1994 e 1998. Por outro lado, a “proposta” de crescer 7%
não deve ser levada a sério, pois se trata… de simples proposta, sem garantia
de concretização. Assim fica fácil montar programa, pois pode-se fazer um
“caderno de desejos” e oferecer ao eleitor crédulo.
O objetivo é certamente
nobre, pois como afirma o documento revelado pelo Estadão, o governo do PT “vai trabalhar dia e noite para que o País evolua da âncora
fiscal para o motor de desenvolvimento”. Aqueles que apreciam raciocínios
lógicos, isto é, um mínimo de correspondência conceitual entre os elementos de
uma mesma equação, ficam se perguntando como é possível comparar “âncora
fiscal” (um mero instrumento monetário e contábil) com “motor de
desenvolvimento”, projeto grandioso que abarca praticamente todos os
instrumentos de política econômica à disposição de um governo. Concedamos,
porém, ao PT, o benefício da dúvida: ele quer colocar o desenvolvimento no
centro das políticas econômicas, sem que ele diga exatamente como vai alcançar
a taxa indicada (7%, indicada como “vocação histórica” do Brasil). Os
economistas, como eu, sempre serão um pouco mais céticos em relação a essas
metas pré-fixadas, mas vamos e venhamos: todos os economistas do Brasil não
conformam sequer 1% da população, o que constitui, para todos os efeitos, um
eleitorado insuficiente para definir qualquer tipo de votação (ainda que esse
número seja suficiente para criar ou desfazer credibilidades). Primeira
constatação, portanto: o PT já é um partido reformista, ainda que ele não se
reconheça como tal.
Em segundo lugar, se diz que
“A inflação será mantida sob controle, para que a
poupança nacional seja orientada e estimulada, garante o PT.” Excelente,
mas no mesmo dia em que aparece essa proposta inteligente, o “economista-chefe”
do PT, professor Guido Mantega, deu entrevista ao mesmo jornal criticando o
sistema de “metas de inflação” do governo e dizendo que um indice de “4% em 2003 ainda não é realista”. Depois de afirmar
nominalmente que “A burrice gera inflação”, Mantega
considerou que as metas de inflação num governo Lula serão mais realistas,
dizendo o o seguinte: “Serão estabelecidas
metas mais realistas, o que não significa frouxidão inflacionária. Não vou
falar do próximo ano. Mas para este ano, 2002, eu diria que 5% ou 5,5% seria
uma meta razoável.”
Ora, um candidato ao cargo de
ministro da Fazenda que já começa antecipando que a inflação está muito baixa e
que ele se “contentaria” com um pouquinho mais, é porque pretende fazer o povo
sofrer. Em primeiro lugar, nenhum ministro econômico são de espírito e nenhum
presidente de Banco Central com os neurônios funcionando ficam expressando
satisfação com um objetivo mais elevado para a inflação. Em segundo lugar, se
esse desejo é tomado como “meta”, ele servirá certamente de piso para o novo
patamar de crescimento de preços, o que atua seguramente em detrimento de todos
aqueles que não têm condições de corrigir os seus “preços” de mercado
(poupança, salários, rendimentos fixos etc.). Alguém já viu pobre ganhar da
inflação? Segunda constatação, portanto: o PT gosta de fazer o povo sofrer.
Num terceiro conjunto de
questões, conseguimos ficar mais perplexos do que o militante do PT que estava
esperando uma ruptura com o capitalismo e com as políticas neoliberais. O
partido confessa que não sabe o que colocar no lugar da “âncora fiscal”. O
programa diz textualmente: “É preciso evitar que se
consolide uma nova armadilha no País, aquela que estabiliza, mas impede o
crescimento. Já tivemos a armadilha cambial. Saímos dela em 1999 com muitas
dores, mas sobrevivemos. Agora, temos o dilema da âncora fiscal. A questão é
como superá-la sem atentar contra a estabilidade da economia”. Trata-se de verdade
de um dilema hamletiano: como fazer o país expandir a economia sem disparar a
sineta dos desequilíbrios nas contas públicas. Crescer ou não crescer, eis a
questão! Seria bom que o PT pudesse oferecer uma alternativa credível em termos
do mecanismo que pretende colocar no lugar do superávit ou da “âncora fiscal”.
Terceira constatação, portanto: o PT tem muitas dúvidas e poucas respostas.
Como aliás a maioria dos economistas. Bem vindo à realidade!
Um bom exemplo desse tipo de
dilema aparece na questão do volume necessário do superávit primário. Segundo o
programa, “O nosso governo vai preservar o superávit
primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente em
relação ao PIB e destrua a confiança na capacidade do governo de cumprir seus
compromissos.” Mas se ele fizer apenas isso não vai conseguir baixar os
juros. O que o PT deveria fazer, desde já, seria anunciar que pretende elevar o
superávit para 5 ou 6% do PIB, pois isso significaria, de imediato, que o
governo não precisará se abastecer no mercado, não vai concorrer com os
particulares e portanto não vai pressionar os juros e, a rigor, terá recursos
suficientes para recomprar uma parte dos títulos da dívida pública que ficam
servindo de “prato feito” para esses verdadeiros gigolôs da despoupança estatal
que são os banqueiros. Se o PT fizer apenas o necessário nessa área, seu
governo vai continuar refém desses sanguessugas da economia nacional que são os
banqueiros. Quarta constatação: o PT adora banqueiro (ainda que ele não desconfie
disso).
No que se refere, por fim, à política externa ficamos avisados do seguinte: “A política
externa será instrumento fundamental para que o governo implante um novo
projeto de desenvolvimento nacional, diminuindo a vulnerabilidade do País
frente à instabilidade dos mercados globais, agravada pelo crescente
protecionismo e garantindo uma presença soberana do Brasil no mundo”. Excelente como discurso grandiloquente, se
não fosse pelo simples pormenor de que a intenção está completamente
equivocada. Projeto de desenvolvimento nacional se define internamente, em
função de instrumentos e políticas públicas de caráter interno, sendo a externa
mera conseqüência daquela que se define no plano doméstico, não o contrário. O
PT repete aqui o mesmo cacoete que parece ter atingido o presidente FHC quando
este deblatera contra os “capitais voláteis” como fontes de instabilidade
econômica e de crises financeiras.
Não parece passar
pela cabeça desses senhores, FHC e Lula, que a instabilidade e os “ataques
especulativos” não são seres alienígenas que resolvem um belo dia atacar algum
país incauto, caindo sobre eles assim como um raio num céu azul de primavera.
Não lhes vem à cachola que a instabilidade é um dado da realidade interna do
País, não algo externo à ele, que o Brasil não é vulnerável porque os capitais
americanos, europeus ou japoneses assim o decidiram, mas porque os fundamentos
de sua economia não vão bem das pernas. Se isso não ficar claro, de uma vez por
todas, o PT vai continuar disparando bobagens contra a “instabilidade dos
mercados globais” e deixar de fazer o dever de casa, que é fortalecer a
economia brasileira e torná-la assim menos suscetível de sucumbir aos ataques
dos “capitais voláteis”. Os economistas do PT deveriam no entanto saber muito bem
que não há capital volátil que resista a uma boa quarentena, ou a um imposto
financeiro de 10 ou 15%, o que está inteiramente nas mãos do governo decidir.
Por que o governo
brasileiro não o faz? Provavelmente porque não consegue se libertar da “drug
addiction” do capital estrangeiro. E por que ele não consegue? Talvez porque
tenha um desequilíbrio fundamental nas contas públicas, internas e externas.
Essa equação vai ser resolvida externamente? Obviamente que não, daí a razão de
porque o PT se equivoca completamente quando pretende atribuir à política
externa uma missão que pertence inteiramente à política interna. Por outro
lado, construir frases em torno do “crescente protecionismo” e pretender
garantir “uma presença soberana do Brasil no mundo” não nos leva a lugar
nenhum. Em primeiro lugar porque o protecionismo pode ser uma desculpa, ou no
máximo uma explicação (parcial) para os nossos problemas, mas não uma solução.
Em segundo lugar, porque soberania não se afirma, sobretudo de modo gratuito,
sem definir seus instrumentos, mas ela se pratica, no dia a dia, determinando
um IOF contra os “capitais especulativos”, por exemplo. Quinta constatação: o PT não sabe para
que serve uma política externa ou quer fazê-la cumprir missões que pertencem ao
terreno da política interna. Seu chanceler vai ter de passar por umas aulinhas
no Instituto Rio Branco antes de poder se qualificar para o cargo…
Aprofundando no terreno da
política externa, ficamos sabendo o que o PT pensa da Alca: “A implementação da Alca nos termos definidos pelo Senado dos
Estados Unidos, e tendo em vista as recentes medidas protecionistas adotadas
pelo governo daquele país pode representar a desestruturação do sistema
produtivo dos países do continente, especialmente do Brasil. Sem o abandono das
recentes medidas protecionistas do governo norte-americano, a política de livre
comércio fica inviabilizada”. Aqui podemos desde logo começar por uma sexta e
importante constatação: o PT é a favor do livre comércio, o que é absolutamente
surpreendente conhecendo-se sua trajetória anterior e sua retórica reincidente
contra o livre-cambismo.
Mas, os
economistas do PT não precisam ficar de modo algum envergonhados com essa
afirmação “herética” do programa, pois um brilhante predecessor também era a
favor do livre comércio: Karl Marx! Isso mesmo, o velho barbudo, inimigo
visceral do capital e dos capitalistas. Quem conhece o seu discurso sobre o
livre comércio, pronunciado em reunião da associação de trabalhadores de
Bruxelas, em 1847, antes que ele redigisse com Engels o Manifesto do Partido Comunista, sabe do que estou falando. Quem não
conhece (e suspeito que são maioria no PT), recomendo ler urgentemente esse
“texto fundador”: ali pode-se encontrar argumentos edificantes sobre como
conciliar a luta contra o capitalismo e a favor do livre comércio. Nenhum
problema de angústia filosófica, portanto, ao promover ao mesmo tempo a
construção da Alca e a derrubada do capitalismo no hemisfério. Duas citações de
Marx curam o problema existencial.
Agora vejamos os
equívocos do resto do programa “alcalino” do PT. Ele recusa a “implementação da
Alca nos termos definidos pelo Senado dos Estados Unidos”, mas a menos que o PT
pretenda negociar dentro do Senado americano, ele vai mesmo encontrar os
burocratas de sempre, do USTR, dos departamentos do Comércio, de Estado ou da
Agricultura, nas reuniões do processo negociador hemisférico. As negociações se
fazem com base em documentos apresentados pelos países, de demandas de acesso a
mercados, de concessão de ofertas de abertura de seus próprios mercados, de
definição de normas relativas a políticas de concorrência, propriedade
intelectual, fitossanitárias etc. Ou seja, nada está definido nos termos de
nenhum país em particular, e será a barganha do “toma lá, dá cá” que permitira
definir os “termos” do futuro (e ainda hipotético) acordo da Alca.
Por outro lado,
achar que “medidas protecionistas adotadas pelo governo [dos EUA] podem
representar a desestruturação do sistema produtivo dos países do continente”
representa simplesmente confundir medidas de apoio interno com os resultados de
um processo negociador que visa, justamente, desmantelar essas medidas
protecionistas e assegurar o acesso ao mercado interno. Sem esse acesso, ou
seja, sem o desmantelamento progressivo de barreiras e de fatores distorcivos
do comércio, não existe acordo comercial digno desse nome. Creio que isto está
bem claro para o governo atual e sua diplomacia, e tem sido repetido à exaustão
pelos principais negociadores brasileiros, a começar pelo próprio presidente
FHC em Québec. Mas, enfim, tomamos nota de que o PT pretende viabilizar o livre
comércio desmantelando as “medidas protecionistas do governo norte-americano”,
o que sem dúvida se encaixa na perspectiva da atual política externa. Onde está
a novidade nas relações internacionais do PT, então?
Por fim, em relação à reforma da Previdência, a
constatação é mais uma vez bem-vinda: “Os poucos menos de 1 milhão de
aposentados do setor público, que se retiraram da ativa com salários integrais
impõem as cofres públicos um déficit em torno de R$ 40 bilhões.” Mas, o governo
atual vinha dizendo isto desde 1995 pelo menos, e pretendia justamente acabar
com a iniquidade da desigualdade previdenciária, no que não contou, para dizer
o mínimo, com o espírito de colaboração do PT. Será que, com o PT no governo, o
PSDB vai se vingar e recusar a aprovação dessa reforma? Cruel dilema…
Última constatação, portanto:
o PT é bem vindo ao neoliberalismo econômico e à responsabilidade fiscal. Com
um programa tão ortodoxo (corrigido dos poucos equívocos que aqui apontamos),
ele está pronto para fazer um grande programa de administração
social-democrática do processo de reformas de que necessita o Brasil. Enfim,
nada de muito diferente do que vinha tentando fazer a administração FHC, mas
essas são as ironias da história.
[Washington, 29/06/2002]
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