A questão mais importante da nacionalidade: a qualidade de sua mão de obra
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: subsídios a capítulo sobre a escravidão; finalidade: livro FDE-2]
Introdução
A questão mais importante, até mesmo crucial, da vida de uma nação é aquela relativa à dotação produtiva de sua população, ou seja, a qualidade de sua mão de obra, que representa a condição primordial, ou vital, de sua prosperidade e bem-estar. Mais do que quaisquer recursos naturais, ou seja, a dotação de fatores dada pela própria natureza, é a proficiência de seu capital humano que se traduzirá em níveis maiores, ou menores, de desenvolvimento humano, medido pelos indicadores de renda per capita, de esperança de vida, assim como de qualidade geral nas condições de vida (sanidade, atendimento básico em saúde, longevidade).
A questão mais importante de diplomacia econômica, no decorrer das seis décadas de existência do Império do Brasil, objeto do livro Formação da Diplomacia Econômica no Brasil, foi, indubitavelmente, a da mão de obra, ou mais exatamente, a da força de trabalho, não exatamente pela via de sua qualidade, mas simplesmente pelo expediente de sua disponibilidade. Tráfico e escravidão, ademais de serem questões centrais no Brasil do século XIX – como aliás já tinham sido nos três séculos anteriores de colonização –, constituíram duas das questões mais relevantes da diplomacia econômica do Império, a serem confrontadas pelas classes dirigentes e pelas elites governantes, a ponto de provocarem inclusive ruptura de relações diplomáticas com a principal potência daquele século, a Grã-Bretanha.
Durante o regime colonial, tráfico e escravidão não constituíam problemas de relações internacionais ou de diplomacia econômica, a não ser residualmente. Desde a constituição da nação independente, contudo, eles se tornam questões relevantes na construção da nação, da sua organização política, de sua estrutura social, de sua base econômica, e igualmente de suas relações exteriores, ocupando parte não insignificante do trabalho de seus diplomatas e dirigentes políticos, ao provocar fricções e conflitos com o mesmo Estado que havia protegido a coroa portuguesa contra as investidas de Napoleão e depois protegido e assegurado a independência do novo Estado latino-americano surgido na terceira década do século XIX.
Desde antes da independência, seja no âmbito das negociações dos tratados de 1810, que representaram o prêmio dado à Grã-Bretanha pela ajuda concedida no processo de transmigração da corte para o Brasil, seja depois, no quadro dos arranjos que se faziam à margem do Congresso de Viena, a diplomacia portuguesa já tinha sido obrigada a aceitar compromissos formais no sentido de encerrar o tráfico em prazo de tempo razoável, ou pelo menos a limitá-lo ao Atlântico Sul, para evitar a criação de um contencioso mais duro com a potência que se havia convertido ao anti-escravagismo pouco tempo antes, sob pressão de grupos religiosos e de precoces representantes de defesa dos direitos humanos dentre a sua opinião pública. De fato, a questão do tráfico negreiro, no Brasil essencialmente agrário do século XIX
configurou a mais perene e profunda tensão diplomática do Império, na medida em que condicionou duradouramente as relações com a maior potência da época. Através de um percurso repleto de incidentes, o Estado imperial defendeu os interesses do conjunto do escravismo brasileiro, logrando manter o tráfico até meados do século. O apego da Coroa à atividade negreira está acima de qualquer suspeita: em 1810, D. João VI [sic] curvou-se ao compromisso genérico da abolição gradual do tráfico apenas para evitar retaliações mais duras; em 1815, sacrificou o comércio negreiro ao norte do Equador em nome de uma relativa tolerância britânica no Hemisfério Sul; a partir de 1822, o governo imperial travou uma verdadeira guerra de posição, trincheira por trincheira, a fim de conferir sobrevida inesperadamente longa ao lucrativo negócio. (Magnoli, 1997: 86)
Tal resistência explica-se pela importância do tráfico negreiro, e adicionalmente da própria escravidão, para a economia geral da colônia e do Estado independente, mobilizando capitais importantes no comércio exterior e nos ativos da economia produtiva de forma geral. Ambos constituíam uma das principais fontes de riqueza e de “acumulação primitiva” para parte substantiva da classe dominante ao final do regime colonial e no início da vida independente, os “homens de grossa aventura”, de que falou o historiador João Luis Fragoso em trabalho sobre a praça mercantil do Rio de Janeiro (1998). Segundo cálculos de outro historiador trabalhando sobre o mesmo tema, 30% dos comerciantes estabelecidos naquela mesma praça era constituída por traficantes (Florentino, 1997: 178). Não surpreende, assim, que, numa primeira etapa, a questão da supressão do tráfico – que foi, segundo Delgado de Carvalho, “um problema interno que se tornou internacional” (1959: 105) – tenha encontrado tremenda resistência no momento de organização da ordem política e social do novo Estado.
Em sua “Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil”, sobre a escravatura, o “pai da Independência” José Bonifácio de Andrada e Silva propôs, em 1823, uma “Lei sobre os escravos”, baseada na legislação da Dinamarca e da Espanha, incluindo inclusive medidas destinadas à “civilização” dos indígenas:
Como Cidadão livre e Deputado da Nação dois objetos me parecem ser, fora a Constituição, de maior interesse para a prosperidade futura deste Império. O 1º é um novo regulamento para promover a civilização geral dos Índios no Brasil… 2º Uma nova Lei sobre o Comércio da escravatura e tratamento dos miseráveis cativos… objeto da atual Representação. Nela me proponho mostrar a necessidade de abolir a escravatura, de melhorar a sorte dos atuais cativos e de promover a sua progressiva emancipação. (…) É tempo, pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carniceiro… (Silva, 1840: 1-3).
As preocupações de José Bonifácio, ademais de serem profundamente humanitárias, eram igualmente econômicas. Dizia ele que “imensos cabedais saem anualmente deste Império para África; e imensos cabedais se amortizam dentro deste vasto País, pela compra de escravo, que morrem, adoecem, e se inutilizam...” (idem: 5). Mais adiante, na Representação, Bonifácio enfatizava: “Este comércio de carne humana é pois um cancro que rói as entranhas do Brasil, comércio porém, que hoje em dia já não é preciso para aumento da sua agricultura e povoação” (12). Bonifácio tinha perfeita consciência de que não seria possível libertar imediatamente os escravos, pois isso significaria a paralização da agricultura e dos demais serviços.
Para emancipar escravos sem prejuízo da sociedade, cumpre fazê-los primeiramente dignos da liberdade: cumpre que sejamos forçados pela razão e pela lei a convertê-los gradualmente de vis escravos em homens livres e ativos. Então os moradores deste Império, de cruéis que são em grande parte neste ponto, se tornarão cristãos e justos, e ganharão muito pelo andar do tempo, pondo em livre circulação cabedais mortos, que absorve o uso da escravatura: livrando as suas famílias de exemplos domésticos de corrupção e tirania; de inimigos seus e do Estado; que hoje não têm pátria e que podem vir a ser nossos irmãos, e nossos compatriotas (13).
Ele propunha, então, sob a forma de artigos, que cessasse o tráfico em 4 ou 5 anos, e que se desse, aos homens “forros” uma “pequena sesmaria de terra para cultivarem”, incluindo os “socorros necessários para se estabelecerem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo” (16).
A verdade é que a representação, já pronta e preparada para ser apresentada, não chegou a sê-lo, pelo fato de o Imperador, em 23 de novembro de 1823, ter dissolvido a Assembleia Constituinte e cuidado, depois, de propor uma nova Carta, enquanto seu autor, aliás o primeiro ministro dos Negócios Estrangeiros do novo Estado, era preso e deportado. A exortação final de Andrada aos “generosos cidadãos do Brasil” – ao mesmo tempo em que invectivava os “traficantes de carne humana, senhores injustos e cruéis”– vinha datada de Paris, em 4 de outubro de 1825.
A essa altura, o Chile já havia decretado a abolição total, em 1823, sem indenização, e no ano seguinte era a vez da América Central (Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica), com promessa de indenização, que no entanto não ocorreu. A Argentina já tinha concedido a liberdade aos filhos de mães escravas desde 1813, ao passo que a Grã-Bretanha já tinha abolido o tráfico desde 1807. Na França, o Diretório já tinha decretado, em 1794, a liberação total do sistema escravo nas colônias, medida revogada em 1802 por Napoleão (Sodré, 1939: 339-40). O Brasil preservou, como se sabe, o nefando comércio até meados do século, e foi um dos últimos países do hemisfério americano a abolir a escravidão,
Diferentes tentativas foram feitas, ao longo do regime monárquico, seja para abolir o tráfico, numa primeira etapa, seja para abolir o sistema escravo, na segunda metade do século. Em 1852, uma proposta da Sociedade contra o tráfico de africanos e promotora da colonização e civilização dos escravos visava obter da Assembleia um “sistema de medidas para a progressiva e total extinção do tráfico e da escravatura”. Em 1865, Benjamin Fontana publicava um panfleto com “ideias, lembranças e indicações para extinguir a escravidão, salvar a propriedade e educar os libertos, afim de serem cidadãos úteis”. As sociedades maçônicas também se uniram aos abolicionistas, empenhados em extinguir a escravidão, mas “sem dano para a nação”. Uma Sociedade Brasileira contra a Escravidão lança, em 1880, um manifesto em favor da abolição, “endereçada aos fazendeiros, agricultores, ao Imperador, aos partidos constitucionais em geral, especialmente ao Partido Republicano, à juventude, aos filhos de senhores de escravos”, e à cidadania em geral. A maior parte dos abolicionistas demandava a eliminação imediata do trabalho escravo, sem indenização, embora esta fosse conduzida por etapas: a lei do Ventre Livre, de 1871, proposta pelo Visconde do Rio Branco, a que seguiu, anos depois, a dos sexagenários, considerada hipócrita, pelos emancipacionistas.
Joaquim Nabuco foi, sem sombra de dúvida, um dos maiores tribunos contra a escravidão, tendo publicado seu livro sobre o abolicionismo em Londres, em 1883, uma obra de natureza mais sociológica do que propriamente política, na qual ele propunha não apenas a libertação dos escravos, mas também medidas para integrá-los à nação, pela via da reforma agrária e da educação. De volta ao Brasil, empreende diversas palestras e manifestações públicas em favor da causa, enfrentando a oposição dos escravistas mais renitentes, que não aceitavam sequer o princípio da abolição mediante indenização da propriedade escrava. Rui Barbosa também juntou-se ao movimento, apoiando a “Confederação Abolicionista” no sentido de exigir a aplicação da lei regencial de 1831, que declarava livres os escravos entrados no Brasil, impondo penas aos infratores. Quando a Lei Áurea foi finalmente promulgado, a monarquia caminhou para o seu ocaso.
Referências:
Almeida, Paulo Roberto, Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império. 3ra. edição, revista; Brasília: Funag, 2017, 2 volumes; Coleção História Diplomática.
Magnoli, Demétrio, O Corpo da Pátria: imaginação geográfica e política externa do Brasil, 1808-1912. São Paulo: Unesp-Moderna, 1997.
Silva, José Bonifácio de Andrada e, 1763-1838, Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, sobre a escravatura; Propõe à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil uma "Lei sobre os escravos", baseada na legislação da Dinamarca e Espanha. Rio de Janeiro : Typ. de J.E.S. Cabral, 1840 (disponível na Biblioteca do Senado Federal: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/174487; acesso em 16/07/2018).
Sodré, Nelson Werneck, Panorama do Segundo Império. São Paulo: Nacional, 1939.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de julho de 2018
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