Ainda assim elas ocorreram, e eu devo agora acusar aonde errei, mas compreensivelmente, pois tudo indicava que manteríamos nossa tradicional postura relativa ao TNP, quando dois anos depois FHC resolveu aderir a esse instrumento "discriminatório", por ter feito um cálculo de custo e benefício e concluído que valeria, sim, retirar o Brasil da companhia dos "rogue States", onde estávamos, na companhia de Líbia, Iraque, Coreia do Norte e outros.
Mas, eu deixei uma janela aberta para mudanças nessa áreia. O que eu escrevi a esse respeito? Isto:
"Um mês depois [abril de 1995], tem início em Nova Iorque a conferência sobre a não-proliferação nuclear, na qual os países que detêm atualmente o monopólio da arma atômica tentarão renconduzir indefinidamente o desigual e discriminatório Tratado de Não-Proliferação Nuclear, concluído sob a égide dos EUA e da ex-URSS em 1968. O Brasil não é parte do TNP, já deu todas as garantias requeridas pela comunidade internacional através do Tratado de Tlatelolco (de âmbito latino-americano) e do Acordo Quadripartite (Brasil/Argentina/AIEA/ABACC) sobre salvaguardas nucleares, possui uma Constituição que impede o uso de armas nucleares e caminha para manter sua postura independente. Trata-se contudo de uma problemática extremamente complexa, não qual não seria de se excluir novos desenvolvimentos conceituais ou em termos de diálogo do Brasil com alguns dos atores principais nessa área. Lembre-se que a Argentina decidiu renunciar à sua antiga política de denúncia do TNP e prepara-se para ratificá-lo proximamente, de modo a participar da conferência."
O texto completo segue abaixo, divulgado pela primeira vez. Mas, menos de três meses depois, eu fazia um novo trabalho, também sobre a política externa de FHC, mas sobre sua "estrutura". Transcrevo esse outro trabalho in fine...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26/01/2019
A agenda internacional do Governo
Fernando Henrique Cardoso: temas dominantes, linhas de continuidade
Paulo Roberto de
Almeida
Doutor em Ciências
Sociais
Autor de O Mercosul no contexto regional e
internacional
(São Paulo: Edições
Aduaneiras, 1993)
A maior parte das análises de conjuntura, nos planos interno
ou externo, costuma enfatizar a importância dos eventos ou processos que estão
sendo objeto de debate ou apresentação através de uma utilização excessiva (e
geralmente indevida) dos conceitos de crise ou de transição. Tal hábito nada
mais revela senão a falta de imaginação de seu próprio autor, uma vez que, sob
determinados aspectos, toda época pode ser considerada como sendo marcada por
algum tipo de “crise”, assim como, sendo a ordem mundial instável como ela é,
estará sempre em “transição” para um novo estado de equilíbrio ou algum outro
tipo de situação.
Dessa forma, se pretendêssemos fazer uma típica análise de
conjuntura sobre a agenda externa do Governo Fernando Henrique Cardoso,
poderíamos dizer que ele assume a direção do País num momento em que o Brasil,
a América Latina e o próprio mundo atravessam uma fase de grandes
transformações – econômicas, políticas, sociais, ideológicas e culturais – e
que se está assistindo à conformação de um novo cenário regional e
internacional: estabilização econômica e abertura internacional no plano
nacional, Mercosul e integração hemisférica no cenário regional, bye-bye
GATT-good morning WTO no sistema do comércio multilateral, reforma da Carta da
ONU e nova guerra fria no terreno da política internacional, information
highway e vídeo interativo no plano cultural etc.
Nada de mais banal, entretanto, já que, ademais de enfrentar
sua quota de dificuldades e de “crises” habituais, nossa época constitui, como
qualquer outra e por definição, um período de “transição” entre a situação
anterior, que lhe deu nascimento, e um novo estado de coisas, ainda embrionário
e indefinido. Com o Governo de Fernando Henrique Cardoso não deve ser muito
diferente: será mais um exercício da arte de administrar o possível num país
vagamente surrealista situado a centro-leste do continente sul-americano,
tentando reforçar a racionalidade econômica em meio a um sistema
político-partidário em eterna transição para algo ainda mais indefinido, com o
agravante do provável surgimento de múltiplas mensagens milenaristas num Brasil
decididamente fin-de-siècle.
Mesmo assim, é possível afirmar que FHC inicia seu Governo
num contexto interno e externo relativamente inédito para os padrões de transição
presidencial no Brasil, com um cenário internacional sensivelmente modificado
pelos elementos que se mencionarão a seguir e em condições internas raramente
vistas nas últimas sucessões da história recente do Brasil. Para começar, FHC
recebe o comando do País em meio a um processo de estabilização macroeconômica
que ele mesmo começou, mantendo aliás muitos dos nomes que já tinham trabalhado
com ele, seja no Itamaraty, seja no ministério da Fazenda. Releve-se, do ponto
de vista político, o relativo consenso atualmente existente em torno da
necessidade de eliminação de alguns dos entraves constitucionais remanescentes
à uma maior inserção do Brasil na economia mundial, reduzindo-se, por exemplo,
as áreas ainda vedadas ao investimento estrangeiro na mineração, na geração de
energia ou nas telecomunicações.
Em qualquer hipótese, o Governo do Presidente Fernando
Henrique Cardoso, ademais de prosseguir com o programa de estabilização e com o
processo de crescente abertura internacional da economia brasileira, terá ainda
de, no plano interno, continuar a gigantesca tarefa de reforma do Estado, única
força social suscetível de, numa Nação relativamente anômica como o Brasil,
impulsionar as enormes reformas estruturais de que ele necessita para deixar de
ser um país industrializado pobre e tornar-se medianamente desenvolvido. Na
área externa, não são menores os desafios, com uma agenda relativamente
complexa e movimentada, composta de alguns processos em curso e de outros
elementos novos e estimulantes, à altura da capacidade de uma equipe de
profissionais experientes como os que assumem o Itamaraty.
As bases da política externa de FHC
Na área internacional, o Governo do Presidente Fernando
Henrique Cardoso possuirá certamente seus temas dominantes, composto de algumas
linhas obrigatórias de continuidade política e algo de inovação conceitual e
metodológica, conhecedor como ele é da teia complexa das relações
internacionais e do próprio funcionamento do Itamaraty. Caberia com efeito
lembrar que FHC ostenta em seu currículo não só o título de ex-ministro da
Fazenda, mas igualmente o de ex-chanceler, cargo este para o qual encontrava-se
naturalmente preparado em virtude de uma grande vivência internacional, do
amplo conhecimento de línguas e da realidade mundial, dos muitos contatos nos
meios acadêmicos, políticos e empresariais da América Latina e dos principais
países desenvolvidos e de uma forte dedicação aos temas econômicos e de
política externa durante seu mandato de Senador por São Paulo. Uma rápida
consulta ao currículo do jovem cientista político, do exilado involuntário e do
irrequieto pesquisador do CEBRAP e convidado de inúmeras universidades
estrangeiras revelaria um verdadeiro “passeio”, com perdão da expressão, pelos
centros da reflexão mundial em três continentes.
Durante a campanha eleitoral para a presidência, a política
externa e as relações internacionais do País, de um modo geral, não foram
usualmente objeto de polêmicas entre os candidatos. Mas, quando abordados,
esses temas propiciaram um debate civilizado sobre a temática internacional,
longe dos posturas geralmente simplistas defendidas cinco anos antes. Embora alguns dos candidatos ainda
insistissem em falar na criação de um “Merconorte” – em contraposição ao
Mercosul em construção, geralmente percebido como beneficiando apenas os
Estados do Sul –, numa total incompreensão do que seja uma união aduaneira, a
política externa apresentou-se como um tema relativamente consensual no quadro
dos debates então em curso. Isto se deu tanto em virtude das grandes
transformações por que passou o cenário mundial desde 1989, como também pelo
fato de ter o Brasil se engajado num processo de integração regional e assumido
novas responsabilidades políticas internacionais, enviando forças de manutenção
da paz em alguns teatros de conflito e passando a disputar um lugar permanente
no Conselho de Segurança da ONU. As empresas nacionais, por outro lado, já se
tornaram, segundo a velha fórmula leninista e rosa-luxemburgueana,
“exportadoras de capitais” e o País passou a ostentar uma já considerável
colônia de expatriados voluntários.
Alguns dos conceitos-chave da campanha presidencial de FHC,
tal como revelados em artigo publicado no Boletim da Associação de Diplomatas
Brasileiros, manifestaram-se através das noções de “inserção competitiva no
mundo”, de “vocação universal” do País, de “integração com a economia mundial”,
de “regionalização aberta” e “globalização” e de “democratização das relações
internacionais”. Nessa contribuição ao
periódico da ADB, o candidato do PSDB não deixou de lembrar que foi em sua
gestão que foi lançada a iniciativa brasileira de uma “área de livre-comércio
sul-americana”, sem exclusivismos, porém, já que as relações com os EUA,
enquanto parceiro mais importante, são consideradas como prioritárias.
As principais vertentes da diplomacia brasileira foram
definidas pela busca da democratização nas relações internacionais e pela
defesa do multilateralismo econômico, com regras estáveis e transparentes.
Nesse contexto, sua proposta de política externa se ajustava inteiramente às
diretrizes por ele formuladas para o Plano de Estabilização econômica,
identificado com a introdução da Unidade Real de Valor e com o lançamento do
Real como nova moeda nacional. Com efeito, Fernando Henrique afirmava nesse
artigo que “nossa inserção na economia global dependerá da estabilidade interna
e da retomada do crescimento”. Ele proclamou ainda a necessidade de “promover
ajustes estruturais” e de “manter a política de abertura para o exterior”.
Em outros termos, não deveria haver ruptura com a política
externa tal como praticada tradicionalmente pelo Itamaraty, nem com as linhas
básicas que passaram a orientar a política econômica, sobretudo em seus
capítulos monetário, financeiro e comercial. Destaca-se, portanto, não só a
postura aberta para as relações exteriores do Brasil, como sua vocação natural
para o universalismo: “O Brasil é um país sul-americano, latino-americano e
panamericano. Compartilhamos com a África nossas raízes étnicas, culturais e
históricas e um destino comum de transformação do Atlântico Sul em um espaço
econômico vivo de integração. Somos um país atlântico, mas temos vínculos
crescentes com o Pacífico. Somos um país continental, mas não buscamos o
fechamento, e sim a integração. Essas características nos permitem desenvolver
alianças, coalizões e parcerias em nível global, procurando nichos de
oportunidade em diversos quadrantes do planeta”.
Fernando Henrique também enfatizou a importância do
embasamento interno da diplomacia brasileira: “Em qualquer hipótese, é
fundamental que a diplomacia brasileira procure cada vez mais alicerçar-se em
instituições internas democráticas e estáveis e, nessa ordem de pensamento, a
interação permanente com o Congresso Nacional, com a universidade, a imprensa,
os sindicatos e demais setores representativos, é fundamental para a elaboração
das linhas de nossa política externa”. Na mesma linha do que pretende Lula, mas
não com os mesmos objetivos, Fernando Henrique acredita que a “política externa
deve estar intimamente vinculada com os interesses internos do País”, uma vez
que ela “não é obra nem de homens, nem de instituições, isoladamente, mas do
país e da sociedade”.
Seu programa de governo, apresentada no livro Mãos à obra
Brasil, sintetizou em seis páginas as principais diretrizes de relações
internacionais que ele se propunha impulsionar em seu Governo. De início, a política externa é definida como
“um instrumento de participação ativa do Brasil na construção da nova ordem
internacional em formação e como suporte decisivo para o esforço de retomada em
novas bases do desenvolvimento econômico e social”. Depois de reconhecer a
competência da Chancelaria brasileira e o papel de um projeto de
desenvolvimento para orientar sua ação, ele indica claramente quais são seus
objetivos nessa área. “Ela deve voltar-se firmemente para reivindicar, no plano
internacional, aquilo que nos propomos praticar no país: que se respeitem
efetivamente as regras do mercado, com maior liberdade de comércio, maior
concurso dos investimentos produtivos e maior acesso à ciência e tecnologia”.
Uma certa filiação conceitual com o pensamento de Araújo
Castro e sua recusa em aceitar um congelamento do poder mundial – muito embora
o contexto político do falecido diplomata fosse sobretudo o da dissuasão
nuclear – transparece na seguinte passagem de seu programa: “O Brasil quer
intensificar sua ação externa de modo a contribuir para que as normas do
sistema internacional emergente estejam voltadas para atenuar desigualdades
econômicas e sociais e não para congelar iniqüidades”.
Dentre o conjunto de onze diretrizes traçadas para a execução
da política externa no Governo FHC, as seguintes merecem registro especial:
“• Ter presença atuante nos foros internacionais em que se
discute a redefinição das regras de convívio entre os estados, defendendo o
multilateralismo e uma maior participação no processo decisório internacional,
particularmente no que se refere à ampliação do Conselho de Segurança da ONU.
• Contribuir para a
pacificação de conflitos, inclusive participando das operações de paz das
Nações Unidas.
• Consolidar o
processo de integração regional (Mercosul), impulsionar os estudos e
negociações para a criação da Área de Livre Comércio Sul-Americana – ALCSA e se
esforçar para que a integração regional ultrapasse a dimensão econômica, de
modo a fortalecer as instituições democráticas e os mecanismos de cooperação
nas áreas da proteção ambiental e do intercâmbio educacional e cultural.
• Ampliar a
participação do Brasil nas negociações sobre o sistema econômico multilateral
no âmbito da nova Organização Mundial do Comércio – OMC, incentivar a
cooperação com a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico –
OCDE e fortalecer nossa presença nas agências financeiras multilaterais...
• Priorizar os estudos
sobre (...) a eventual criação de zonas de livre comércio com outras
macro-regiões econômicas do globo, especialmente com a União Européia, os
países do Acordo de Livre Comércio da América do Norte – NAFTA e a África
Austral.
• Lutar contra as
antigas e novas formas de protecionismo econômico e de monopólios do saber, que
dificultem a participação dos países em desenvolvimento nos fluxos
internacionais de comércio, de capitais e de ciência e tecnologia” (Mãos à obra
Brasil, pp. 87-89)
Em resumo e levando em conta as orientações atuais da
política externa brasileira (que ele mesmo encarregou-se de formular,
lembre-se), pode-se dizer que FHC encontra-se inteiramente à vontade para atuar
com perfeito conhecimento e no comando efetivo dos principais vetores das
relações internacionais do Brasil, não procura atribuir à sua política externa
nenhum rótulo simplificador, nem traça um programa radical de reformas
conceituais ou instrumentais para a diplomacia profissional do Itamaraty.
Conhecendo perfeitamente, e apreciando, o modo de funcionamento da Casa, ele
certamente defende as doutrinas e princípios permanentes que fazem os méritos
da diplomacia brasileira: “tradição, memória, estabilidade, previsibilidade,
respeito a compromissos assumidos, proteção dos interesses nacionais, visão de
futuro”. Partidário de uma diplomacia
ativa, ele tem consciência de que, para combater as imensas desigualdades
sociais de que padece a Nação, todos os recursos externos devem ser mobilizados
para acelerar o processo de desenvolvimento brasileiro, sem discriminações de
origem ou xenofobia.
A agenda internacional do novo governo
Independentemente de diretrizes próprias, o novo Governo não
poderá eludir alguns temas já colocados na agenda internacional, que a diplomacia
brasileira se esforçará, obviamente, por administrar o mais possível em acordo
com o interesse nacional. Vejamos rapidamente quais seriam os principais
elementos dessa agenda internacional no curto e médio prazo.
No terreno da política econômica externa, o ano começa com a
entrada do Mercosul em sua etapa de “união aduaneira flexível”, isto é, o pleno
funcionamento de sua zona de livre comércio, a experiência certamente difícil
de administração de uma união aduaneira parcial e o processo de convergência
progressiva para uma Tarifa Externa Comum, com vigência plena em princípios do
próximo século. A conferência intergovernamental de Ouro Preto, em 16 e 17 de
dezembro de 1994, já definiu o novo espaço geoeconômico latino-americano como
“personalidade de direito internacional” e desenhou-lhe instituições
condizentes com os requerimentos atuais do processo integracionista. O salto
para a supranacionalidade ainda não se deu, compreensivelmente aliás, tendo
sido preservado o atual “modelo Benelux”, em contraposição com o que seria a
entrada prematura em estruturas comunitárias do tipo “Tratado de Roma”.
No mês de junho, como a cada seis meses, os chanceleres e os
ministros de economia do Mercosul deverão encontrar-se mais uma vez,
oportunidade que poderá servir para aprofundar a discussão em torno das
diferentes estratégias integracionistas que se oferecem aos subgrupos regionais
latino-americanos em face das propostas hemisféricas lançadas no “summit” de
Miami, realizado em 10 de dezembro de 1994. A chamada “Cúpula das Américas”
lançou um ambicioso programa de cooperação e de “interdependência” econômica em
escala continental que, se plenamente concretizado no horizonte 2005 (o que
certamente não será o caso) poderia introduzir algumas linhas de clivagem em relação
ao projeto Mercosul. O Mercosul estaria testando aí sua recentemente adquirida
“personalidade de direito internacional”, que o habilita a falar de uma só voz
em foros como o da OMC e frente a parceiros continentais e extra-regionais.
Ainda que estejam estatutariamente obrigados a reunir-se apenas uma vez por
ano, os Presidentes do Mercosul costumam comparecer a todas as reuniões de seu
Conselho.
No terreno do comércio exterior, 1995 também assiste à
substituição do GATT pela Organização Mundial do Comércio, instrumento valioso
para a promoção dos objetivos de desenvolvimento de países como o Brasil, que
têm no multilateralismo um dos meios de defesa de seus interesses em face do
protecionismo aberto ou disfarçado de sócios mais poderosos. Estes, aliás, vêm
recusando-se a dar à OMC os meios materiais necessários para que ela possa
cumprir adequadamente seu papel de guardiã das “tábuas da lei” do comércio
internacional, justificando antecipadamente talvez a adoção continuada de
medidas unilaterais.
O mês de março assistirá, na Dinamarca, à conferência mundial
de chefes de governo sobre o progresso social. O Brasil terá certamente algo a
dizer, no “summit” de Copenhague, sobre o papel do crescimento sustentado na
geração de empregos e na diminuição da pobreza, mas deverá estar igualmente
disposto a ouvir alguns ensinamentos sobre a eliminação da miséria
não-necessária. Em todo caso, os países ricos, confrontados com os fenômenos
inéditos da exclusão social – os “novos pobres”, assustadoramente em número crescente
– e da precariedade ocupacional, terão desta vez poucas lições a nos dar em
matéria de justiça social.
No mesmo mês, os chanceleres do Grupo do Rio encontram-se com
seus colegas europeus na França, país que assegura momentaneamente a
presidência da União Europeia (agora com 15 membros), com a qual estão em curso
diversos projetos de cooperação. A UE vêm entretanto reforçando seu
instrumental protecionista e sua política de comércio dirigido, ao revisar por
exemplo seu Sistema Geral de Preferências com a introdução de cláusulas
ambiental e social que podem excluir o Brasil de algumas áreas de mercado a
partir de 1998. No que diz respeito às relações da UE com o Mercosul, mais
especificamente, se buscará avançar na concretização de um amplo acordo de cooperação
econômica e de liberalização comercial. Resta apenas saber se a Política
Agrícola Comum (a “loucura agrícola comum”, segundo a Economist) permitirá
o acesso de alguns dos nossos produtos aos mercados comunitários: os
“eurocratas” e os paysans da França certamente dirão que só em 2020, senão mais
adiante. Os países do Mercosul, que ainda não criaram sua própria variedade de
“mercocratas” e que possuem camponeses decididamente capitalistas, nunca foram
tão abertos à entrada de bens, serviços e capitais do exterior, inclusive de
alguns bons queijos franceses, devidamente subsidiados.
Um mês depois, tem início em Nova Iorque a conferência sobre
a não-proliferação nuclear, na qual os países que detêm atualmente o monopólio
da arma atômica tentarão renconduzir indefinidamente o desigual e
discriminatório Tratado de Não-Proliferação Nuclear, concluído sob a égide dos
EUA e da ex-URSS em 1968. O Brasil não é parte do TNP, já deu todas as
garantias requeridas pela comunidade internacional através do Tratado de
Tlatelolco (de âmbito latino-americano) e do Acordo Quadripartite
(Brasil/Argentina/AIEA/ABACC) sobre salvaguardas nucleares, possui uma
Constituição que impede o uso de armas nucleares e caminha para manter sua
postura independente. Trata-se contudo de uma problemática extremamente
complexa, não qual não seria de se excluir novos desenvolvimentos conceituais
ou em termos de diálogo do Brasil com alguns dos atores principais nessa área.
Lembre-se que a Argentina decidiu renunciar à sua antiga política de denúncia
do TNP e prepara-se para ratificá-lo proximamente, de modo a participar da
conferência.
Em maio, as Nações Aliadas estarão comemorando o 50°
aniversário do final da segunda guerra mundial na Europa. Tendo participado do
esforço de liberação do continente do jugo nazista, no solo italiano, o Brasil
deveria em princípio ser convidado para as festividades. Será mais uma
oportunidade para se reafirmar nosso conhecido compromisso com a paz e o
primado do Direito internacional e nosso desejo de colaborar com as operações
de manutenção da paz da ONU (que aliás também comemora meio século de
existência em outubro).
Junho e julho são meses repletos de conferências ministeriais
e de chefes de governo envolvendo países desenvolvidos, entre elas a do G-7, a
da OTAN (Bósnia again?), a da União Europeia (começo da preparação da
conferência intergovernamental de revisão institucional de 1996) e da OCDE,
esse “clube de países ricos” ao qual já aderiu o México e se prepara para
fazê-lo a Coreia. Em seu programa de Governo, FHC manifestou seu desejo de
“incentivar a cooperação com a OCDE”, propósito que vem sendo cumprindo através
de nossa participação no “diálogo informal” mantido com as “economias dinâmicas
não-membras” (eufemismo para os tigres asiáticos e alguns NPIs da América
Latina) e nas atividades do Centro de Desenvolvimento, ao qual aderimos em
abril de 1994. O cenário não deve alterar-se no curto prazo.
O segundo semestre não será menos intenso do que o primeiro,
com destaque para a abertura dos debates na ONU sobre a possível reforma da
Carta e a eventual incorporação de novos membros ao Conselho de Segurança. Será uma excelente oportunidade para que a
posição brasileira seja reapresentada pessoalmente pelo Presidente. Dada a
complexidade e sensibilidade do tema é pouco provável que se tenha um
encaminhamento rápido dessa questão, considerada prioritária pela diplomacia
brasileira. O problema, no caso, não está com o Brasil, considerado “candidato
natural”, mas com potenciais interessados em outras regiões do Sul,
considerando-se ainda que não sobrevenha oposição irredutível ao ingresso da
Alemanha e do Japão.
No intervalo, sem contar uma reunião sobre mudanças
climáticas, a ONU promoverá mais uma conferência mundial sobre os direitos da
mulher, desta vez em Pequim, tema sobre o qual o Brasil dispõe, como no caso da
conferência do Cairo sobre a população, de uma postura avançada e equilibrada.
No plano de suas relações com os países detentores de tecnologias sensíveis, o
Brasil poderá ser convidado a ingressar no regime de controle da tecnologia de
mísseis (MTCR), caso disponha até o final do primeiro semestre de legislação
adequada aplicada ao comércio exterior de equipamentos de uso dual; em todo
caso, o país já declarou, em fevereiro de 1994, sua disposição unilateral em
aplicar plenamente as diretrizes formuladas no âmbito do MTCR.
O novo “realismo” na política externa
De um modo geral, FHC sabe que não há respostas simples a um
conjunto de desafios externos que são basicamente comuns aos países em
desenvolvimento: acesso a mercados e a novas tecnologias, inserção econômica
internacional, captação de recursos externos para fins de crescimento,
participação plena nas grandes decisões políticas e econômicas que afetam a
comunidade internacional. As respostas a esses desafios não podem ser
equacionadas com base apenas na manifestação da vontade nacional, por mais
forte que ela seja. Elas requerem bastante consistência operacional, mas,
também e sobretudo, capacidade externa de implementá-las, o que depende
basicamente dos recursos globais de um país (econômicos, políticos, culturais e
militares).
A superação de algumas dessas “lacunas de poder” depende, de
certa forma, da implementação de um projeto nacional de desenvolvimento, o que
confirmaria a política externa brasileira num papel supletivo dos grandes
objetivos nacionais. Essa diplomacia do desenvolvimento parece corresponder,
finalmente, aos princípios e linhas de ação que sempre guiaram a atividade do
Itamaraty. O novo Governo do sociólogo e ex-Senador Fernando Henrique Cardoso
representa, nesse sentido, um reencontro da comunidade acadêmica e da classe
política com o estamento diplomático. A experiência histórica e a postura do
Itamaraty apontam, em todo caso, para uma integração soberana do País à ordem
econômica e política internacional. A acadêmia será certamente chamada a opinar
a esse respeito. Cabe, de certa forma, à classe política dar ao Governo e à
Casa do Rio Branco os meios de implementar a agenda internacional do novo
Governo.
[Paris, PRA/470: 23/12/1994]
==================
O outro trabalho referido é este aqui:
473. “A Estrutura
das Relações Exteriores no Governo Fernando Henrique Cardoso”, Paris, 16
janeiro 1995, 3 p. Artigo sobre o processo decisório em política externa no
novo Governo.
A
ESTRUTURA DAS RELAÇÕES EXTERIORES
NO
GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Paulo Roberto de
Almeida
A reforma administrativa
introduzida pela Medida Provisória de 2 de janeiro de 1995, que definiu a
estrutura do Poder Executivo, não contempla mudanças substanciais no perfil da
máquina estatal que servirá ao Governo Fernando Henrique Cardoso. Excetuando-se
a extinção dos ministérios da Integração Regional e do Bem Estar Social, e de
alguns órgãos subordinados (como a LBA e o Centro para a Infância e a Adolescência)
ou a reorganização de algumas outras agências federais, o Poder Executivo
continuará a funcionar essencialmente como ele vinha fazendo antes.
Não se chegou, assim, a
implementar nenhuma redução drástica do número de ministérios: eles são 20 (mas
lembre-se que eles tinham chegado a 27 sob o Governo Sarney), aos quais se
acrescentam algumas secretarias e órgãos de assessoramento direto do
Presidente. Confirmou-se inclusive a estabilidade do setor militar, mas o
Estado-Maior das Forças Armadas passa doravante a integrar a Presidência da
República. Sem entrar nos méritos ou desvantagens da criação de apenas um
ministério militar (o da Defesa, com secretarias subordinadas para cada uma das
Armas), cabe simplesmente observar que tal medida poderia trazer ganhos
operacionais e políticos, já que supostamente se estaria caminhando para a
formulação de uma verdadeira doutrina militar integrada, no quadro de uma mesma
concepção estratégica global e em perfeita sintonia com uma política externa
nacional. As razões que impedem tal esforço de racionalização administrativa e
política, amplamente desejável do ponto de vista de nossa inserção
internacional, não são provavelmente motivadas por considerações de ordem
“externa”, mas se situam no âmbito propriamente interno e podem ter algo a ver
com o estatuto das Forças Armadas no sistema político brasileiro.
No que se refere às entidades
que atuarão na esfera das relações internacionais do País e de sua política
externa no sentido amplo, uma primeira menção deve ser feita ao “Conselho de
Defesa Nacional”, instituído pela Carta constitucional de 1988 e definido como
“órgão de consulta do Presidente da República nos assuntos relacionados com a
soberania nacional e a defesa do Estado democrático”. Ao Conselho compete opinar
sobre eventos relevantes para a vida do País, como as questões da guerra e da
paz, a segurança do território nacional e temas relativos à independência
nacional, dele fazendo parte, como membro nato, o Ministro das Relações
Exteriores.
Precisamente nesse setor da
“segurança do Estado e da sociedade”, a reforma administrativa do Governo
Cardoso cria, como autarquia federal vinculada à Presidência da República, uma
“Agência Brasileira de Inteligência”, destinada, previsivelmente, a
reconstituir algumas das funções do antigo Serviço Nacional de Informações, que
havia desaparecido dos organogramas nos últimos anos (mas representado, por
exemplo, por uma Subsecretaria de Inteligência na Secretaria de Assuntos
Estratégicos, que perde agora seu estatuto ministerial). É claro, por outro
lado, que a ABI não terá nenhuma atividade orientada no sentido da “segurança
interna”, como acontecia com o antigo SNI.
No caso do Ministério das
Relações Exteriores, cuja competência básica está na área da “política
internacional”, foram mantidas algumas de suas particularidades, no confronto
com os demais ministérios. Relativamente intocado em sua competência funcional
e em seu funcionamento efetivo, o Itamaraty ainda assim teve suprimida uma
Subsecretaria-Geral de Planejamento Político, tendo suas funções sido
recuperadas por uma Secretaria de Planejamento Diplomático. Ele continua de
toda forma a contar com um Conselho de Política Externa (destinado à assessoria
política do Chanceler) e uma Comissão de Promoções (que se destina presumivelmente
a assegurar a completa autonomia da Casa e a independência das decisões quanto
à ascensão funcional dos diplomatas).
Preservado portanto o
instrumento principal de atuação externa da Nação, isto não significa contudo
que todos os temas da política externa nacional ou sua estrutura decisória
estejam restritas à área das relações exteriores, estrito senso. Outros
ministérios e órgãos da máquina executiva participam igualmente da formulação
ou implementação dos chamados “temas externos”. Este é o caso, por exemplo, do
comércio exterior, que cai sob a competência do Ministério da Indústria, do
Comércio e do Turismo, mas cuja fiscalização incumbe ao Ministério da Fazenda
(encarregado ainda da política aduaneira), reservada porém a atribuição específica
do Itamaraty para as “negociações comerciais” internacionais.
Uma mesma interpenetração de
competências ou de divisão de tarefas ocorre com diversos outros temas que
apresentam uma interface interna e externa: a questão da imigração, a
cooperação nos terrenos educacional, científico e tecnológico, o comércio de
produtos de base, o processo de integração regional, o problema do meio
ambiente, o dos espaços territoriais, o da dívida externa e vários outros nas
esferas econômica, técnica ou militar, envolvendo, com maior ou menos grau de
interação, ministérios e demais órgãos da administração direta e indireta. O
Mercosul, por exemplo, que não pretende ser uma mera zona de livre-comércio,
mas desdobrar-se numa verdadeiro espaço econômico integrado, pode ser
considerado como o epítome do moderno processo decisório em matéria de política
externa: global por sua própria natureza, ele não só realiza a síntese das
diplomacias presidencial, ministerial e técnica, como também busca contribuição
e apoio nos mais diversos setores da sociedade civil .
Paulo Roberto de
Almeida é PhD em Ciências Sociais.
[Paris, 473:
16/01/1995]
473. “A Estrutura das
Relações Exteriores no Governo Fernando Henrique Cardoso”, Paris, 16 janeiro
1995, 3 pp. Artigo sobre o processo decisório em política externa no novo
Governo.
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