sábado, 26 de janeiro de 2019

Redescobrindo inéditos (9): Progresso e Poder - Paulo Roberto de Almeida


PROGRESSO E PODER
Notas sobre os Condicionantes Históricos
do Desenvolvimento Social

Paulo Roberto de Almeida
Genebra, 16/05/1988

Todas as sociedades organizam-se em relação mais ou menos estreita com o seu meio ambiente, mas é nas chamadas sociedades primitivas que a "ditadura da natureza" é mais marcada. Nas sociedades relativamente complexas, isto é, dotadas de meios técnicos suscetíveis de transformar o meio ambiente, a emancipação do Homem vis-à-vis a Natureza acarreta igualmente uma divisão sexual e social do trabalho, base ulterior da divisão da sociedade em classes.
Todas as sociedades históricas são, ou foram, sociedades divididas em classes sociais, ou seja, sociedades organizadas com base em relações de dominação política e de exploração do trabalho produtivo. Não há exemplo, na antropologia ou na história comparadas, de sociedades históricas, isto é, dotadas da mola propulsora do Progresso, que não tenham sido, ao mesmo tempo, sociedades desiguais: nessa sociedades uma determinada categoria de pessoas detém a capacidade de comandar outras pessoas e delas extrair recursos excedentes em termos de produção econômica.
A apropriação de excedentes econômicos (exploração) produzidos pela classe trabalhadora e a imposição de uma forma qualquer de comando autoritário (dominação) sobre o conjunto da população parecem obedecer a uma mesma lógica social: a monopolização, por parte de uma categoria de pessoas, de determinados bens raros, nesse caso representados pela propriedade e pelo poder. A concentração e a centralização desses bens raros nas mãos de uma elite dominante deve ser em seguida legitimada por algum tipo de racionalização,    que eles não podem ser mantidos pelo emprego constante da violência institucionalizada. Uma ideologia da dominação tende assim a acompanhar todas as situações de desigualdade estrutural.
Nas sociedades de classe modernas e contemporâneas, o Progresso assume principalmente a forma do desenvolvimento econômico, cuja característica essencial é a capacidade da sociedade de produzir inovações tecnológicas. Nas civilizações materiais organizadas com base na propriedade privada e no livre comércio (mercado), o desenvolvimento contínuo das forças produtivas deu origem a um verdadeiro modo de produção inventivo, transformando o Progresso em rationale da vida econômica e social.
Embora o Progresso nem sempre seja qualitativamente aferível, ele pode ser quantitativamente mensurável, o que significa uma maior disponibilidade de bens e serviços anteriormente raros; ele se traduz, igualmente, numa maior capacidade em exercer um controle ampliado sobre o meio ambiente societal. O modo de produção é tanto mais inventivo quanto ele conseguir transformar um maior número de bens raros em produtos e serviços de consumo corrente: sua funcionalidade social, em termos históricos, está precisamente nessa capacidade em atribuir um valor de troca a uma gama relativamente ampla de necessidades humanas.
Ao disseminar mercadorias e transformar ecosistemas, o Progresso cria desigualdades econômicas e sociais suplementares àquelas ordinariamente existentes, mas que são em grande parte o resultado de uma maior divisão social do trabalho e de uma crescente especialização de funções produtivas. O Progresso cria igualmente desequilíbrios sociais e regionais, que se traduzem não apenas em termos de obsolescência de meios de produção e de subutilização de recursos humanos, mas também de marginalização de regiões inteiras e sua subordinação econômica a centros mais desenvolvidos.
Nesse sentido, as relações desiguais de apropriação de bens raros não ocorrem apenas num âmbito puramente inter-classista ou intra-societal, mas prevalecem igualmente num nível inter-societal, confrontando formações nacionais desigualmente dotadas em recursos e diversamente inseridas num mesmo sistema global. A exploração e a dominação não têm, assim, um caráter nacional exclusivo, mas a aplicação desses dois princípios a nível transnacional confunde-se, em muitos casos, com as relações desiguais que prevalecem internamente entre classes sociais.
A racionalização conceitual do Progresso histórico e social, ao coincidir no tempo com a formação e o desenvolvimento dos Estados-nacionais (séculos XVI-XVIII), impôs, a estes últimos, encargos e responsabilidades muito precisas em relação ao desenvolvimento concreto de suas sociedades respectivas. O estado do Progresso passou a exigir, cada vez mais, o progresso do Estado, tendência apenas minimizada nas formações sociais que atravessaram um processo relativamente completo de Nation making antes de ingressarem numa fase de State building.
Na época do Iluminismo, foram criadas legitimações doutrinárias e filosóficas para a idéia do Progresso. Essas formulações ideológicas consubstanciaram-se, em primeiro lugar, no pensamento liberal clássico, de que são exemplos os conceitos de "mão invisível", de "vantagens comparativas" ou de "laissez-faire " no plano econômico. A força doutrinária do pensamento liberal contaminou também as elites dominantes de países eles mesmos submetidos a alguma forma de exploração e de dominação, a tal ponto que a expropriação direta de recursos (espoliação colonial) ou a apropriação indireta de trabalho materializado (intercâmbio desigual) puderam ser justificadas pela sua funcionalidade em relação ao princípio do progresso material das sociedades envolvidas.  Mesmo um igualitarista radical como Marx viu na instituição colonial um grande fator de progresso histórico de sociedades mais atrasadas.
O debate contemporâneo sobre as origens do atraso de sociedades outrora colonizadas tendeu a ver na exploração e na dominação dessas sociedades uma das molas propulsoras do Progresso nas formações dominantes. Em que pese a contribuição adicional desses fatores, ao lado da exportação de excedentes demográficos, para o avanço material das sociedades mais poderosas, as alavancas mais significativas no processo de desenvolvimento econômico e social dessas sociedades foram, e são, de ordem propriamente interna. Essas alavancas, que constituem condições prévias ao desenvolvimento sustentado, derivam de um conjunto de relações sociais condizentes com o modo inventivo de produção e situam-se, por assim dizer, na própria raiz da organização social da produção nessas sociedades. Inovação tecnológica e poder econômico constituem requisitos necessários ao - e não efeitos do -  exercício da vontade imperial. A espoliação colonial e a dominação mundial não podem ser implementadas sem a capacitação intrínseca do pretendente, o que significa a existência de uma estrutura social e de recursos materiais e humanos compatíveis com a voluntas  dominadora.
A única forma de subtrair-se à exploração e à dominação de outrem, tanto no plano nacional como no das relações inter-societais, parece assim situar-se na auto-capacitação tecnológica e humana, o que vale dizer, dotar-se de seu próprio modo inventivo de produção, base material e fonte primária de poder econômico e político. A soberania, seja a individual ou a coletiva, deriva da faculdade de organizar a exploração e a dominação em bases propriamente autônomas, ou seja, criar o seu próprio fulcro de poder social. Em outros termos, a internalização dos efeitos sociais e econômicos da exploração e da dominação só pode ser obtida por meio da conversão de uma formação social em centro de seu próprio sistema nacional, dotando esta última de sua respectiva periferia.
A experiência histórica indica que o Progresso, em suas diversas formas materiais, emana sempre dos diversos centros de poder econômico, e a eles retorna indefectivelmente após ter cumprido sua missão histórica de amealhar recursos adicionais para a sociedade originalmente dominante. Não parece haver, pelo menos no horizonte histórico do sistema inter-estatal contemporâneo, alternativas válidas de afirmação nacional: as sociedades ou nações que não conseguirem transformar a exploração e a dominação em alavancas autônomas do seu próprio progresso econômico estão condenadas (num sentido propriamente hegeliano) a se tornarem meros objetos da História e não em seus atores.
O discurso realista, de que estas notas constituem um mero exercício, encontra sérias objeções morais a nível da praxis política - num contexto interno ou externo - razão pela qual ele deve ser freado por princípios éticos suscetíveis de serem defendidos por lideranças político-partidárias e estadistas responsáveis. Não se deve esquecer porém de que ele constitui o fundamento último e a razão secreta da atuação da maior parte dos Estados e elites dominantes em todas as épocas históricas.

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais e Professor da UnB.
 [Genebra, 16.05.88]
Relação de Trabalhos nº 160.

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