sábado, 26 de janeiro de 2019

Redescobrindo inéditos (10): Politica externa paralela? (1990) - Paulo Roberto de Almeida

Depois de perder sua primeira campanha presidencial, em 1989, o líder do PT tomou duas iniciativas. Uma, a pedido, sob controle e direção estrita dos comunistas cubanos, foi a constituição do "Foro de São Paulo", uma espécie de Cominform do castrismo para poder não apenas manter sob sua estrita vigilância todos os partidos de esquerda da América Latina, mas também extrair recursos daqueles partidos amigos que por acaso estivesse no poder, uma vez que o socialismo estava, nessa época, fazendo água por todos os lados, e já se podia antever o fim do mensalão soviética que permitia à decrépita e improdutiva economia comunista cubana sobreviver em meio às agruras dos mercados mundiais.
Tomei conhecimento a posteriori desse Foro, e não tenho certeza de ter escrito algo a respeito, provavelmente não um trabalho específico, mas referências em outros textos.
A outra iniciativa foi fazer com que o PT e simpatizantes montassem um fantasmagórico "governo paralelo", que nunca funcionou, sejamos claro, mas, como sempre, o PT invariavelmente viveu mais de propaganda do que de trabalho real. Esse governo designou um chanceler paralelo, na pessoa do "filósofo" gramsciano Carlos Nelson Coutinho, que nunca soube entender de política internacional. Ele conhecia bem o marxismo, os trabalhos de Gramsci, coisas desse tipo, e, apenas porque tinha vivido no exterior, e devia falar espanhol e francês, pelo menos, fico a cargo da "política externa" do PT. Esta já estava redigido pelos apparatchiks do partido, com os habituais clichês esquerdistas-stalinistas, que eu já analisei em vários trabalhos meus.
Assisti a uma única "conferência" desse chanceler paralelo, quando ele veio à UnB para falar no quadro de algum colóquio anti-imperialista. Eu só ouvi bobagem. A maior, o que demonstrou a profunda ignorância desse "chanceler", foi atribuir a miséria e a guerra civil na Somália à "exploração imperialista", que esse infeliz país tinha recém saído de uma longa ditadura comunista, de Siad Barre, e nunca tinha permitido qualquer exploração imperialista daquela nação miserável, que logo depois entrou em guerra civil.
Desisti do governo paralelo do PT e o artigo abaixo, portanto, deve ser lido apenas como uma relíquia ingênua, quando eu achava que o PT era um partido sério.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de janeiro de 2019.


UMA POLITICA EXTERNA PARALELA ?

Paulo Roberto de Almeida
Montevidéu, 17 de julho de 1990

O líder do PT, Luís Inácio Lula da Silva, concretizou finalmente sua promessa de candidato derrotado à Presidência da República ao anunciar, em coalizão com alguns outros partidos de esquerda, a formação de um “governo paralelo” ao legalmente constituído, no que deve ser seguramente um dos poucos exemplos de shadow cabinet ao sul do Equador.
A implementação dessa iniciativa deve ser verdadeiramente saudada por todos os democratas sinceros, e não apenas por aquele punhado de parlamentaristas convictos – cada vez mais ameaçados pelos oportunistas de ocasião – que até agora parecia viver de um ideal quixotesco. O PSDB, único partido a assumir efetivamente a mensagem parlamentarista sem tê-la ainda traduzido em termos de programa concreto, deveria refletir seriamente sobre a saudável prática recém inaugurada.
O exercício responsável de uma “administração” paralela impõe a necessidade de ocupar virtualmente todos os terrenos abertos à formulação de propostas alternativas em termos de políticas públicas, algo assim como a tática de marcação homem a homem num campo de futebol. Se os ministros “atletas” estiverem realmente preparados para as funções designadas – armação, ataque e defesa de suas próprias posições – e não para um simples “jogo de cena”, a disputa passa então a assumir contornos mais emocionantes, algo mais do que chutes nas canelas dos adversários ou empurrões maldosos nas proximidades da área do contendor. Definir suas próprias posições em função da colocação das hostes inimigas, numa simples mímesis contrária, pode não ser muito eficaz como estratégia para ganhar a partida, além de conformar uma tática mais reativa do que passiva (que de resto corre o risco de não agradar à platéia cívica, que somos todos nós).
Dito isto, qual é exatamente o papel de um “ministro paralelo” para as relações exteriores do Brasil? O que significa ter uma “política externa alternativa”? Seguramente algo mais do que o endurecimento na questão da dívida externa, a mera oposição à “Iniciativa para as Américas” do Presidente Bush ou a busca de uma integração “não-capitalista” para as nações da América Latina, alegremente anunciados pelo líder do PT. O chanceler “paralelo” – designado na pessoa do eminente filósofo e professor Carlos Nelson Coutinho – precisará avançar um pouco mais em relação às propostas vagas até agora enunciadas por Lula para que sua missão possa realmente sair da “sombra” e projetar-se em termos de propostas concretas de relacionamento externo.
Comecemos pelo lancinante e ainda não resolvido problema da dívida externa (supondo-se realmente que esta espinhosa questão possa algum dia cair sob a responsabilidade de um Itamaraty “petista”). Será que Lula realmente acredita que basta declarar encerradas as negociações com os banqueiros privados para que os governos dos países credores se disponham a sentar-se numa mesa com o representante brasileiro e simplesmente conversar? Haveria, para começar, alguém do outro lado da mesa? Nosso chanceler “filósofo” – aliás um habitué do debate contraditório – sabe muito bem que em matéria de diálogo externo, assim como no futebol ou nas artes renhidas da dialética, é preciso pelo menos dois parceiros para concretizar-se a disputa. Se o adversário faz default, não dá nem para iniciar o jogo. Estariamos simplesmente numa posição de non starter, como já disse o James Baker para o imaginativo Bresser Pereira. Não parece razoável que Lula queira repetir a malfadada experiência de Alan Garcia: por enquanto ele deve estar apenas jogando para a platéia.
No que se refere à integração continental, o animus petista sempre foi mais receptivo, ainda que com o tradicional viés da “solidariedade anti-imperialista”. O problema é que a Iniciativa Bush parece ter vindo reacender essa tradicional atitude reativa, típica do complexo de inferioridade latino-americano em face de um Big Brother que nunca conseguiu pensar suas relações meridionais senão em termos de drogas e da ameaça cubano-soviética. Exemplo disso é a Declaração de São Paulo, na qual o PT e seus hermanos de izquierda da América Latina proclamam sua vontade de se opor por todos os meios à “integração imperialista”. Em face de países já escaldados pela retórica vazia de um “integracionismo” de políticas protecionistas e com o avanço irresistível da liberalização econômica externa e interna, a mensagem oposicionista dos partidos de esquerda corre mais uma vez o risco de cair no vazio.
O problema de muitos teóricos do PT – certamente não partilhado pelo chanceler designado – parece ser o de acreditar que exista algo como uma política externa com “caráter de classe” e que a atual representaria apenas os interesses das elites dominantes e de seus aliados estrangeiros. Sem querer cair nos mitos da “unanimidade” e do “apoio consensual” tributados à política externa oficial, não parece exagerado dizer que, na prática, os desentendimentos em torno da postura externa do Brasil são bem menores do que, por exemplo, em relação à política econômica interna e os custos sociais da luta anti-inflacionária.
Ainda que se possa argumentar que toda política institucional - e a externa não é exceção - reflete, de certo modo, a estrutura política e social e o sistema político em vigor no País, a grande questão nesse terreno é saber se, efetivamente, a política externa brasileira corresponde às necessidades da Nação e aos interesses de seu Povo. Não se trata apenas de dizer que as relações exteriores têm sido traçadas em gabinetes fechados, sem a necessária participação da sociedade, por exemplo, mas de verificar se as posições assumidas pelo Brasil externamente contemplam apenas os interesses de um grupo da sociedade, que manipula a máquina do Estado para servir seus fins particulares, ou se elas servem o grande objetivo do desenvolvimento, que é a verdadeira ideologia do povo brasileiro.
Com todos os percalços criados por governos hesitantes, ora excessivamente alinhados, ora ingenuamente “independentes”, a política externa até que tem respondido bem aos anseios da Nação, caracterizando-se por um “terceiro-mundismo” moderado e realista, mais conforme ao nosso perfil de País com um pé em cada mundo (até porque não cai bem em nossos tão discretos diplomatas qualquer discurso mais radical). Se o compromisso de nossas elites com o desenvolvimento econômico e social é meramente retórico, tal falha não pode ser creditada aos profissionais do Itamaraty, que não podem simplesmente transmutar sua ação na área externa em medidas internas de correção das desigualdades, desequilíbrios ou injustiças sociais mais gritantes. A política externa é, antes de mais nada, uma questão de política interna.
Nessas condições, o que significaria uma “política externa alternativa”: um militantismo internacional exacerbado para tentar convencer nossos colegas do Terceiro Mundo de que nossos interesses nacionais são os deles também? É evidente que não há respostas exclusivas a desafios externos que são basicamente comuns aos países em desenvolvimento: dívida, acesso a mercados e a novas tecnologias, integração econômica, etc. Mas, essas respostas não podem ser equacionadas, ao nível internacional, com base apenas em slogans. Elas requerem um pouco mais de consistência. Com a palavra nosso chanceler paralelo.


Montevidéu, 187: 17/07/1990

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