Sair
do pacto da ONU é uma fantasia de extrema-direita
Antes
de ser fascista, é necessário parecer fascista.
VICE,
11 janeiro 2019
Além
do socialismo,
do politicamente correto, de jornalistas
e de qualquer pessoa que pense diferente do presidente Jair Bolsonaro (PSL), o
governo recentemente empossado parece ter encontrado mais um inimigo público:
os imigrantes. Na quarta-feira (9), Bolsonaro publicou em sua conta no
Twitter uma mensagem em tom de crítica ao Pacto Global para
Migração, acordo da ONU (Organização das Nações Unidas) assinado por 164
países, inclusive o Brasil, em dezembro de 2018.
No
documento, voltado ao reforço da cooperação internacional para processos
seguros, ordenados e regulares de migração e para eliminar qualquer modalidade
de discriminação, o presidente afirmou que o país é soberano para decidir se os
aceita ou não, além de que quem vier deverá estar sujeito às leis, regras,
costumes e cultura daqui. Ainda, de acordo com o presidente, “não é qualquer um
que entra em nossa casa, nem será qualquer um que entrará no Brasil via pacto
adotado por terceiros.” De acordo com reportagem publicada pela BBC Brasil,
o Ministério das Relações Exteriores solicitou aos diplomatas brasileiros para
comunicarem a saída do pacto à ONU.
Quem
ouve Bolsonaro falar pode imaginar que o país está tomado por imigrantes e que
eles podem fazer o que bem entenderem por aqui. Todavia, a história está longe
de ser essa: eles devem respeitar a legislação local. Ainda, a quantidade de
pessoas nativas de outros países está muito longe do que a vã filosofia do
WhatsApp nos induz a pensar: há cerca de 750
mil imigrantes na terra brasilis, o que totaliza a
impressionante marca composta por quatro imigrantes a cada mil brasileiros –
para efeito de comparação, a Alemanha tem 148 estrangeiros a cada mil nativos.
OK, a situação na
fronteira com a Venezuela é delicada demais, mas a medida tomada
está muito longe de proteger a soberania dos brasileiros e de combater o moinho
de vento do globalismo.
De
acordo com Carolina de Abreu Batista Claro, pós-doutoranda em relações
internacionais da UnB e professora universitária do IREL (Instituto de Relações
Internacionais), da mesma instituição, a medida adotada pelo governo federal
não se justifica, pois o pacto consiste em norma de soft law do direito
internacional – ou seja, traduz regras de valor normativo limitado e que não
são obrigatórias em âmbito jurídico.
Logo,
o documento consiste em compromisso de ações com base no contexto atual e em
demais tratados internacionais já existentes, aos quais o Brasil está
vinculado. “A saída consiste em retórica política de extrema-direita, não
corresponde com a realidade sobre as presenças de estrangeiros e de imigrantes
no Brasil”, pontua, ao ressaltar como o vacilo cometido pela diplomacia
brasileira é significativo: “além disso, [a saída] demonstra profundo
desconhecimento sobre direito internacional e como internalizamos essas
normas”.
Geopolítica
fascista
Os
demais países que anunciaram a saída do Pacto Global para Migração, como EUA,
Austrália, Itália e Hungria têm fluxos migratórios muito maiores do que o
Brasil, pois são locais de destino – EUA e Austrália, respectivamente – ou
estão em rotas de trânsito, como nos casos de Itália e de Hungria.
Coincidência
ou não, boa parte dos países que não assinou o documento está numa vibe que,
sem meias palavras, cheira a fascismo, se parece com fascismo e (olha só) é bem
fascista. Matteo Salvini, primeiro-ministro italiano, é abertamente de
extrema-direita e conhecido por dar declarações que completam o bingo da
xenofobia e da discriminação irrestrita – basta dizer que, há apenas alguns
dias, ele se referiu às manifestações racistas contra o zagueiro senegalês
Kalidou Koulibaly, do Napoli, como
“brincadeira saudável entre torcidas”.
Todavia,
a caminhada do Brasil é, histórica e geopoliticamente diferente das desses
países quando o assunto é imigração. Não há nada que respalde a decisão do
governo Bolsonaro. “Não temos número muito grande de imigrantes e o fato de o
Brasil dizer que sairá do pacto está em discordância com quem o país já faz e
com os tratados internacionais dos quais já faz parte”, pontua Carolina Claro.
Quem
sai perdendo?
OK,
os imigrantes ficam em situação delicada, o que é inegável, mas o Brasil tende
a ter mais problemas com a saída do Pacto Global de Migração. De acordo com
dados do Itamaraty, mais de três milhões de brasileiros vivem em outros países
– não é necessário ser um jedi em matemática para sacar que muito mais
brasileiros estão fora em comparação com quem vem para cá. E esses caras poderão
ter problemas, mesmo que tenham direitos humanitários assegurados por meio de
outros tratados mais antigos dos quais o Brasil é signatário.
Para
o defensor público federal João Chaves, a saída do Brasil do pacto trará
prejuízo político muito grande ao país. “Se o Brasil não participa do Pacto
Global, ele fica em posição política de extrema fraqueza para negociar ou pedir
qualquer coisa à comunidade internacional a favor da nossa comunidade”,
destaca.
Além
disso, um dos objetivos do pacto é assegurar que o processo de imigração
aconteça de modo seguro, ordenado e regular, garantindo a segurança dos
imigrantes e evitando a ação de coyotes –contrabandistas de imigrantes –
o tráfico de pessoas. “Com essa medida, o governo Bolsonaro poderá estimular o
crime organizado transnacional para o contrabando de migrantes e para o tráfico
de pessoas para fins sexual e de exploração laboral, principalmente”, ressalta
a pós-doutoranda em relações internacionais da UnB, que reforça os benefícios
que a imigração segura e regular provenientes do pacto poderiam proporcionar
para o indivíduo e para o país. “Ele não só fará parte do trabalho formal, mas
poderá também buscar por educação e demais serviços públicos, e contribuir para
a economia brasileira.”
Outro
ponto a ser considerado é a mudança da imagem do Brasil perante a comunidade
internacional. Sim, a luta contra a lenda urbana
do globalismo nos fará sermos vistos na gringa como um povo que um
dia defendeu a mediação de conflitos e os direitos humanos, mas que se tornou
um (adivinhe?) país de extrema-direita. Em resumo: o nosso filme estará
queimado. “O afastamento dos ideais de paz, dos direitos humanos e de proteção ao
meio ambiente é extremamente negativo para o país, pois poucas nações irão
querer chegar ao Brasil. O país só tem a perder nas conjunturas atual e
futura”, pondera Carolina.
As
imigrações irão parar?
A
resposta para esta pergunta é não. Cidadãos em estado de desespero e em fuga de
crises humanitárias em seus países continuarão a dar andamento ao fluxo
migratório, como acontece nos EUA e em diversos países da Europa – França e
Alemanha, por exemplo – e já ocorre no Brasil, inclusive. O que muda é o fato de
eles virem para cá em condições inseguras e submetidos à escalada criminosa em
âmbito internacional.
Pode-se
dizer que o Brasil está perdendo uma grande oportunidade de ajudar a tornar o
processo migratório mais humano e seguro para dar mais poder à ilegalidade. “O
pacto busca cooperação internacional, reafirma princípios de direitos humanos e
de política internacional, que farão o país ter benefícios com a migração e
apoio de organismos internacionais para coordenar esses movimentos
migratórios”, conta a professora do IREL, da UnB. Ela aproveita para reforçar o
caráter contraditório da saída do país como signatário do documento. “Os
imigrantes só virão por meios escusos e não protegidos, justamente o contrário
do que prega o Pacto Global.”
Fluxo
de desinformação
Qualquer
pessoa minimamente informada (exceto pelo WhatsApp) estava ligada na coletânea
interminável de fake news disseminadas durante as eleições sobre diversos
aspectos – o firehosing rolou
solto à época. A lógica das mentiras irrestritas continua a dar o
tom dentro do panorama da imigração.
De
acordo com João Chaves, o grande problema dentro desse cenário é a
desinformação – que, sejamos francos, é visto desde o alto escalão do governo.
“Existe muita mistificação dentro do tema migração e as pessoas não sabem que o
Brasil recebe, proporcionalmente, quantidade muito pequena de imigrantes.”
Na
prática, a saída do Brasil do Pacto Global de Migração não tem impacto
imediato, pois a proteção dada aos imigrantes é baseada na Lei de Imigração e
de Refúgio. “Espero a manutenção do cenário atual, que é bastante favorável, já
que venezuelanos têm autorização temporária de permanência, conversível em
permanente, por causa de portaria interministerial”, completa o defensor
público federal. Ainda, os sírios podem solicitar refúgio e os haitianos são
beneficiados com a acolhida humanitária, forma especial de residência.
Por
fim, mesmo que a decisão governamental seja simbólica, os resultados poderão
ser concretos e preocupantes. “Trata-se de uma situação bastante ruim. Os casos
de xenofobia e de discriminação contra a população imigrante podem, sim,
piorar, assim como contra as minorias por meio das ações que já têm sido
apregoadas desde antes da posse pelo governo”, finaliza Carolina.
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