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domingo, 20 de janeiro de 2019

Redescobrindo inéditos (6): a diplomacia Sul-Sul

Eu não consigo encontrar nenhuma outra designação para a tal de diplomacia Sul-Sul, a não ser "miopia diplomática", ou viseiras voluntárias, no limite uma pura e simples estupidez.
Sempre achei uma bobagem, desde o início, e em 2014, eu colocava isso no papel, mas nunca tinha divulgado este meu trabalho, a não ser um outro ensaio que acabou publicado no meu livro Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014). Agora, publico este texto que permaneceu inédito por mais de quatro anos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de janeiro de 2019

O determinismo geográfico da diplomacia Sul-Sul

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)
Hartford, 15 de agosto de 2014
Sumário: 
1. O problema
2. Diagnóstico
3. Propostas

A temática da política externa voltada para as relações Sul-Sul foi enfatizada desde o início o governo Lula, numa espécie de retomada de alguns dos padrões da diplomacia praticada nos tempos da política externa independente (1961-1964) e na era Geisel (1974-1979). Enquanto “estratégia” de projeção internacional, essa diplomacia Sul-Sul resume, num único conceito, todos os equívocos conceituais e todas as bobagens operacionais da era Lula: nunca antes na história do Itamaraty, e do Brasil, toda uma concepção de política externa tinha sido assim fixada no determinismo geográfico desse tipo de castração voluntária, que representou a aposição de viseiras ideológicas no que antes era apenas uma leve inclinação para o terceiro-mundismo. Mas o que poderia levar dirigentes políticos, ou diplomáticos, a preferir a parte em lugar do todo, a eximir-se de explorar o conjunto de possibilidades de cooperação, substituindo uma ampla interface por um número mais reduzido de opções? O que poderia levá-los a colocar uma viseira unidirecional no horizonte de relacionamentos externos do país?

1. O problema
Quando se fala de uma “política externa voltada às relações Sul-Sul”, se entende que as relações internacionais do país passam a estar prioritariamente voltadas para essa tal dimensão regional, não exatamente planetária, mas orientada ao hemisfério Sul, isto é, para os territórios, regiões e países identificados como periféricos, dependentes, em desenvolvimento, emergentes, ou outras variantes da mesma família. Mas em que consiste a diplomacia Sul-Sul para a diplomacia companheira? Ela representou uma mudança de eixo no relacionamento externo do país, apontando preferencialmente para países do Sul, tanto em sua acepção geográfica quanto no plano geopolítico. 
Como isso se coaduna (ou não) com as posturas tradicionais da diplomacia brasileira, e como isso se encaixa no leque de possibilidades abertas, no supermercado da História, à economia ou à sociedade brasileira? O Brasil deveria praticar uma diplomacia Sul-Sul? Ela é melhor, mais produtiva, mais benéfica e de maiores retornos concretos do que a velha diplomacia sem marcas geográficas ou geopolíticas definidas?
A diplomacia Sul-Sul tem tudo a ver com a concepção companheira do mundo, a sua Weltanschauung, segundo a qual existiria uma assimetria básica que definiria as escolhas políticas e as alianças estratégicas: de um lado, o velho Norte desenvolvido, capitalista, hegemônico e aparentemente arrogante, por vezes até unilateral e dominador; de outro, o novo Sul, periférico, dependente, explorado, enfim, em desenvolvimento e, portanto, naturalmente, interessado em posturas comuns para romper a dominação e tornar o mundo mais democrático e multilateral. Essa visão maniqueísta do mundo orienta, desde 2003, a grande diplomacia brasileira.

2. Diagnóstico
Esse tipo de atitude já tinha sido registrado na política externa brasileira em pelo menos duas épocas anteriores: a chamada “política externa independente”, dos anos 1961-1964, e o “pragmatismo responsável”, do governo Geisel (1974-1979). A política externa do governo Lula, clara e oficialmente autodesignada como Sul-Sul, reivindicou plenamente essa herança, e proclamou a retomada das tradições de “independência” nas relações exteriores do Brasil, dizendo com isso que todas as demais administrações praticaram diplomacias alinhadas, dependentes, ou até submissas ao império ou aos organismos multilaterais de Washington. Foi esse maniqueísmo ridículo que passou a caracterizar, concretamente, a diplomacia companheira. Ela conduziu a equívocos monumentais em negociações externas, e não apenas nos grupos próprios dessa filosofia, como o Ibas, a Unasul, o Brics, mas também no G20 comercial.
Os objetivos formais desse bloco seriam os de eliminar o protecionismo agrícola dos países avançados, os subsídios internos à produção e as subvenções às exportações, que prejudicam exportadores competitivos e não subvencionistas como o Brasil. Mas o grupo revelou-se, na verdade, de uma esquizofrenia exemplar, pois o que era solicitado aos ricos era considerado legítimo pelos e para os seus integrantes. Se admitirmos que a demanda de bens alimentares nos próximos anos e décadas virá, basicamente, de grandes países em desenvolvimento, como China e Índia, precisamente – já que a expansão desses mercados nos países ricos será quase vegetativa, ademais da demanda não ser beneficiada por alta elasticidade-renda, nesses casos – então a derrogação feita em favor dos países do Sul não é exatamente conforme aos interesses do agronegócio brasileiro ou das exportações do Brasil, em geral, para esses mercados dinâmicos.
Mesmo nos casos de alianças políticas, a bússola do Sul não é a que melhor serve aos interesses do país. Os companheiros sempre argumentaram com a surrada tese dos interesses comuns dos países dependentes, em face da resistência dos países do Norte na preservação da velha ordem, com uma distribuição injusta e desigual de poder e influência no plano mundial. Tais visões paranoicas e conspiratórias das relações internacionais, talvez aceitáveis para mentes simplistas, e simplificadoras, dos que dividem o mundo em linhas classistas, mas que não apresentam a mínima consistência para mentes mais abertas e inteligências mais aguçadas, sustentaram durante todos esses anos a rationale da diplomacia Sul-Sul. Não sem dispor de amplo apoio em círculos da opinião pública dita respeitável: grande parte da academia brasileira ainda se compraz com as teses intelectualmente indigentes da “dependência”, com teorias mistificadoras do “chutando a escada”, com o eterno complô das elites e das classes dominantes, que supostamente impedem países do Sul na sua justa ascensão a patamares mais altos de desenvolvimento e de prosperidade.

3. Propostas
A pobreza conceitual e a inadequação desse tipo de concepção para as relações internacionais do Brasil constituíram o lado mais patético da diplomacia companheira. Pode-se acabar com esse reducionismo absurdo, à condição que se retorne aos padrões anteriores da diplomacia normal. Poucos diplomatas devem se sentir confortáveis com demonstrações grandiosas de autonomismos superficiais, de soberanismos vazios e de retórica grandiloquente em favor do Sul. A maior parte deles considera que a abertura ao comércio e aos investimentos internacionais, a estabilidade macroeconômica, a boa governança e alta qualidade dos recursos humanos constituem bons fundamentos para uma política externa voltada para uma maior inserção do Brasil no mundo. A mais completa seleção de opções, a total soberania geográfica nos relacionamentos externos são, de longe e em todas as hipóteses, as posturas mais adequadas na determinação das políticas que melhor respondem às necessidades do Brasil no plano internacional.
Porém, como se trata de uma postura filosófica fundamental, ela exige uma mudança na direção da diplomacia brasileira, o que implica, obviamente, uma alteração radical na chefia do governo.

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 15/08/2014

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