O problema da China
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 12 de agosto de 2014
Jean-Paul Sartre, numa de suas peças, disse que “o inferno são os outros”. Pois bem, o inferno do Brasil, nas suas relações com a China, não são os chineses; são os petistas. A partir da visita de Lula, como pré-candidato, à China, em 2001, consolidou-se e reforçou-se, nos companheiros, a impressão, totalmente equivocada obviamente, de que a China, por ser supostamente socialista e alegadamente anti-hegemônica, seria um aliado natural do grande projeto mundial dos companheiros, de construir uma “nova relação de forças” e inaugurar uma “nova geografia do comércio internacional”. Ambas suposições eram totalmente ilusórias, mas isso não impediu os companheiros de, desde 2002, assim que ganharam as eleições, terem escolhido a China, preventivamente e unilateralmente, como “parceiro estratégico”, essa outra condição usada e abusada não só pelos companheiros, mas também por diplomatas e candidatos a estadistas, em geral.
A China, como é de seu estilo, continuou a cuidar de sua vida, seus negócios, e seus interesses estratégicos, aceitando de bom grado todos os apoios dos deslumbrados e ingênuos que existem pelo mundo. Ela nunca se dobrou a nenhum interesse especial do Brasil – seja em matéria de investimentos, seja em aspirações ainda mais cobiçadas – mas os companheiros continuaram privilegiando a China em todos os temas de interesse nacional da China, contemplando o Brasil com uma ou outra palavra complacente nos comunicados bilaterais ou do grupo Brics. Nunca antes na diplomacia brasileira se havia visto tamanha unilateralidade de propósitos, com tão poucos retornos efetivos. Na primeira visita que fez à China, em meados de 2003, Lula comprometeu-se a reconhecê-la como “economia de mercado” e chegou a aventar uma hipótese de um acordo de livre comércio entre o Mercosul e o grande país asiático. Nem uma nem outra iniciativa foram confirmadas, mas por oposição de outros parceiros, não por falta de vontade dos companheiros, que estavam inclusive dispostos a fazer comércio em “moedas locais”, num inacreditável retrocesso em relação aos sistemas de Bretton Woods e do Gatt, potencialmente prejudicial ao Brasil. A não concretização dessas promessas ingênuas não impediu a China de converter-se no primeiro parceiro comercial do Brasil desde 2009, mas segundo padrões totalmente desequilibrados, remetendo ao perfil colonial de mais de um século atrás.
A China é um problema, mas não só para o Brasil; para o mundo. Mas ela é também uma oportunidade, e um elemento positivo no cenário mundial, sob vários aspectos. Na interface com o Brasil não existem os mesmos problemas de segurança ou de equilíbrio geopolítico enfrentados pelas grandes potências ou pelos países vizinhos. A relação é basicamente econômico-comercial, e aí estão as ameaças, ou desafios, e as bondades que isso possa representar. A China forneceu, de graça para o Brasil, pelo menos um terço do crescimento do PIB registrado nos anos gloriosos do lulo-petismo, e de certa forma continuou sustentando, pela voracidade de sua máquina produtiva: 600 dólares a tonelada de soja, 180 dólares a de minério, níveis nunca antes vistos nas bolsas de mercadorias. Aparentemente, a bonança vai continuar, ainda que em escala moderada.
Na outra vertente, a da oferta de bens manufaturados, a destruição de empregos industriais em favor da China também vai continuar, e isso se aplica tanto aos países desenvolvidos quanto ao Brasil, os primeiros deslocando para lá a produção ou a assemblagem dos seus produtos de marca, e o Brasil sofrendo a concorrência de produtos mais baratos fabricados na China em ramos tradicionais de sua indústria, sobretudo nas de mão-de-obra intensiva, mas crescentemente também em equipamentos e bens de capital. Nessa área não é culpa da China e não há nada que ela possa fazer, pois se trata de decisões de nível microeconômico, que obedecem aos interesses das empresas, sem muita interferência dos governos (a não ser para medidas protecionistas).
A China presta três favores ao mundo, ou pelo menos à maior parte dos países que se inserem na economia mundial: sendo oficina do mundo, ela contribui para que demanda e crescimento ocorram sem grandes pressões inflacionárias; ela também “acolheu” boa parte da poluição industrial que de outra forma teria permanecido nos países criadores das marcas e tecnologias por ela processadas; finalmente, ela “obriga” todos os demais países a se reposicionarem na escala de upgrade tecnológico, uma vez que sua máquina industrial avança celeremente sobre o know how existente. Mais um pouco, ela também será, como já é, inovadora tecnológica e criadora de marcas próprias, e os “problemas” para os demais países vão se intensificar.
Para o Brasil, no entanto, se não fosse a China, seriam outros países a cumprir o seu papel; ela tampouco vai escapar das leis econômicas básicas (valorização de sua mão-de-obra e de sua moeda), e os desafios permanecem os mesmos, porque eles estão no Brasil, e são de nossa inteira responsabilidade. Ou seja, a China não representa nenhum problema diplomático, ou político, ou estratégico, para o Brasil, porque nossos problemas são “made in Brazil”. Os companheiros criaram um problema adicional ao vincular nossa agenda diplomática aos interesses da China (no G20 comercial, no Brics, nas instâncias bilaterais, nos foros de meio ambiente, etc.), sem qualquer contrapartida.
Se estratégia houve, no caso da diplomacia companheira em relação à China, ela foi inteiramente equivocada, desde o início, e até hoje. A “parceria estratégica”, como dito, foi estabelecida unilateralmente, um apoio completo que só pode ter contentado os mais contidos diplomatas chineses. Depois das promessas da primeira viagem, a inclusão da China no G20 comercial, em Cancún, foi outro erro simplório e custoso, que aliás retira qualquer coerência da diplomacia comercial do Brasil, ao colocar em categoria à parte os “subvencionistas autorizados” (com a Índia e vários outros), quando o país buscava justamente coibir, ou eliminar todas as formas de subsídios internos e de subvenções às exportações afetando o comércio agrícola (isso quando se espera que a demanda venha a aumentar substancialmente a partir dos mesmos países).
A busca frenética por uma “nova geografia comercial” – equivocada conceitualmente e na prática – levou a um perfil do comércio bilateral totalmente desequilibrado, e não adiante reclamar com os dirigentes chineses, pois quem está exportando são os seu capitalistas industriais, não os mandarins do governo. A suprema ingenuidade dos companheiros se manifestou diversas vezes, quando eles propunham comércio em moedas locais, o que levaria o nosso saldo superavitário no comércio bilateral a ser liquidado na compra de produtos chineses. Não bastasse o Bric, que foi outro equívoco deliberado, fruto da obsessão megalomaníaca do guia genial e seu chanceler, o Brasil teve de engolir o Brics, pois a África do Sul só foi incluída para contemplar os muitos interesses chineses na África subsaariana. Nem no plano bilateral, o Brasil atendeu seus interesses próprios, pois são os chineses que determinam a agenda, não os brasileiros.
O Brasil tampouco recebeu os investimentos nos montantes e nos setores esperados, inclusive porque não consegue atender às demandas chinesas por um padrão africano de regulação laboral, nos projetos que poderiam ser financiados, inclusive porque se exige que, do cozinheiro ao engenheiro-chefe, toda a mão-de-obra seja inteiramente chinesa. Por outro lado, o esquizofrênico nacionalismo econômico dos nossos legisladores se opôs a que os chineses adquirissem terras ou minas em volumes significativos, sob o pretexto de que não se poderia perder o controle sobre esses preciosos bens primários, que seriam “100% exportados para a China”, numa nova demonstração de como podem ser ridículos certos argumentos nacionais.
Tudo o que se fez, em doze anos de ilusões e desilusões, foi acumular declarações, trocar visitas, constituir uma grande comissão, se fazer fotografar nos encontros bilaterais e plurilaterais, e deixar que os chineses continuem impondo a sua agenda. O fato de a China ser um grande ator internacional supre qualquer carência diplomática.
Não há muito o que se possa a fazer com a China, ou mesmo sem a China: ela continuará comprando o que bem lhe aprouver, dos fornecedores mais fiáveis e mais compreensivos, e continuará vendendo tudo o que os seus capitalistas produzirem, ao passo que os mandarins continuarão a negociar declarações e mais declarações, em especial aquelas que os comprometam menos. Mas assim acontece com todos.
O Brasil já é grande o suficiente para marchar com suas próprias pernas no cenário internacional, e não precisa ter a companhia da China para defender seus interesses. Se ele pretender continuar num papel secundário e acessório, pode deixar tudo como está. O Banco dos Brics – que não é um banco do Brics –, por exemplo, vai atender projetos nacionais, mas provavelmente as empresas chinesas ganharão qualquer concorrência. O Acordo de Reservas Continentes é ridículo paras as necessidades brasileiras, e só serve para congelar reservas (aliás em excesso). No plano comercial e no dos foros sobre meio ambiente, o Brasil pode começar a defender seus interesses, não os dos chineses.
Todos gostam de vender para a China, que é de fato um grande mercado. Em todas as cidades chinesas, por exemplo, é possível encontrar vinhos chilenos, e biscoitos da Alemanha. Pode-se fazer o mesmo com acordos de livre comércio, ou então sendo competitivo. O Brasil precisa escolher o que quer ser quando crescer...
Hartford, 12 de agosto de 2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário