Não se assustem quando digo que há um movimento militar (ou, pelo menos, uma movimentação: um conjunto de articulações de militares da reserva e da ativa) no Brasil atual. Há, é óbvio. É preciso ser idiota ou muito desonesto para não ver. Já publiquei três artigos sobre isso:
Agora segue o quarto artigo.
Quando militares intervêm na política, mesmo que por vias legais (eleições ou nomeações de quem foi eleito), mas de forma organizada, isso significa, sim, uma intervenção militar. Em democracias o papel dos militares na política é bem claro: nenhum. Um dos princípios basilares das democracias liberais é o controle dos militares pelos civis (nunca o contrário: regimes tutelados por militares são i-liberais).
O Brasil de hoje está sob intervenção militar. Claro que não é uma intervenção como a de 1964 ou de 1968, um golpe, uma quartelada, contra o Estado democrático de direito. Claro que os militares que começaram a se articular – mais ostensivamente entre 2014 e 2018 – para intervir na política por meios legais (via eleições ou legítimas nomeações de quem foi eleito) não rasgaram a Constituição. Isso não significa que não há intervenção.
Há intervenção: os militares da reserva, em conluio com militares da ativa, se organizaram para colocar ordem na casa. Isso é uma intervenção, uma ação indevida. Não há muita diferença, em termos de concepção e de comportamento político, entre um militar da reserva e um militar da ativa. Passar para a reserva não tem o efeito de mudar concepções e comportamentos num passe de mágica. E o que é pior é que as concepções dos militares (da reserva ou da ativa, pouco importa em termos práticos) que resolveram tomar o Palácio do Planalto e vários cargos-chave do governo por vias legais, assumindo posições de comando no primeiro escalão e no segundo escalão, têm um pensamento i-liberal em termos políticos: basta analisar suas declarações (passadas e recentes) para comprová-lo.
Não há quem possa negar que enxames de militares, de modo organizado, ocuparam posições estratégicas no governo Bolsonaro. Matéria do Congresso em Foco de ontem (18/01/2019) faz um levantamento de cargos de primeiro e segundo escalões que foram entregues a militares.
No levantamento do Congresso em Foco – veja-se a lista abaixo – estão faltando muitos nomes ainda. Por exemplo, não aparece o nome do major Pedro César Nunes de Souza, chefe de gabinete da Presidência. Também não aparecem os militares que estão no MEC, como o general Oswaldo de Jesus Ferreira que comandará a Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares). E nem aparece o antigo comandante do Exército, o general Villas-Bôas, que também vai estar no Palácio (como funcionário ou “consultor”) – espantosamente, porquanto sempre foi considerado um fiel da balança, quando os próprios membros da corporação desconfiavam, com razão, do oportunista e péssimo militar Jair Bolsonaro. Quando Bolsonaro foi eleito, Villas-Bôas passou-se de armas e bagagens para o Estado-Maior bolsonarista.
Tudo isso é, no mínimo, um exagero. Não há, nem nunca houve, em qualquer democracia do mundo, um governo com tantos militares.
Isso nada tem a ver com a capacidade técnica, a dedicação, a lealdade, a honestidade, o espírito público e outras características dos militares. Tem a ver com o fato de que a entrada massiva de militares em cargos políticos, não foi obra do acaso e sim uma operação deliberada de ocupação do terreno mesmo, não importa o motivo: se foi para moralizar a vida pública e combater a corrupção, se foi para proteger o Estado-nação brasileiro da perigosa ameaça comunista (como eles, os militares, argumentaram em 1964) ou se foi para defenestrar da vida pública os democratas (como eles fizeram em 1968), se foi para impedir a volta do PT e manter Lula preso et coetera. O fato é que os militares estão seguindo a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin, ou seja, estão tomando a política como continuação da guerra por outros meios. Para tanto, estão fazendo uma guerra de posição (tal como na guerra de 1914-1918, estão cavando trincheiras em terreno supostamente ocupado pelos inimigos).
Repita-se: nada disso é relevante. O que é relevante, para a democracia, é que os militares não poderiam ter papel político: e agora passaram a ter. O que é preocupante, para os regimes liberais, é que os militares têm um pensamento i-liberal.
Eis a lista (incompleta):
Presidente da República – Capitão Jair Bolsonaro
Vice-presidente da República – GeneralHamilton Mourão
Ministro do GSI (antiga Casa Militar) – General Augusto Heleno
Secretário-Executivo do GSI – General de Divisão Valério Stumpf Trindade
Secretário de Coordenação de Sistemas do GSI – Contra-AlmiranteAntonio Capistrano de Freitas Filho
Secretário de Assuntos de Defesa e Segurança Nacional do GSI – Major Brigadeiro do Ar Dilton José Schuck
Secretário de Segurança e Coordenação Presidencial do GSI – General de Brigada Luiz Fernando Estorilho Baganha
Secretário-Executivo Adjunto do GSI – Brigadeiro do Ar Osmar Lootens Machado
Secretário Executivo da Secretaria-geral – Generalde Divisão Floriano Peixoto Vieira Neto
Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Secretaria-geral – GeneralMaynard Marques de Santa Rosa
Secretário-Executivo Adjunto da Secretaria-geral – General de Divisão Lauro Luis Pires da Silva
Assessor Especial da Secretaria-geral – CoronelWalter Félix Cardoso Junior
Ministro da Defesa – General Fernando Azevedo e Silva
Secretário-Geral da Defesa – Almirante de Esquadra Almir Garnier Santos
Secretaria de Produtos de Defesa – General de Divisão Decílio de Medeiros Sales
Secretário de Pessoal, Ensino, Saúde e Desporto – Tenente Brigadeiro do Ar Ricardo Machado Vieira
Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) – Tenente-coronel da Força Aérea Brasileira Marocs Pontes
Chefe de Gabinete do MCTIC – Brigadeiro do ArCelestino Todesco
Secretário de Políticas Digitais – Tenente-Brigadeiro do Ar Antonio Franciscangelis Neto
Secretário de Radiodifusão – Coronel Elifas Chaves Gurgel do Amaral
Secretário-Executivo Adjunto – Coronel-Intendente Carlos Alberto Flora Baptistucci
Ministro de Minas e Energia – Almirante Bento Costa
Chefe de Gabinete de Minas e Energia – Contra-almirante José Roberto Bueno Junior
Ministro da Infraestrutura –Capitão Tarcísio Gomes
Secretário de Transportes Terrestre e Aquaviário – General Jamil Megid Júnior
Ministro da Secretaria de Governo – General Carlos Alberto dos Santos Cruz
Secretário Nacional de Segurança Pública – General Guilherme Theophilo
Secretário de Esportes – General Marco Aurélio Vieira
Ministro da Controladoria-Geral da União (CGU) – Capitão Wagner Rosário
Presidente da Funai – General Franklimberg de Freitas
Presidente do Conselho de Administração da Petrobras – Almirante-de-esquadra Eduardo Bacellar Ferreira
Presidente da Itaipu – General Joaquim Silva e Luna
Porta-voz do governo – General Otávio Santana do Rêgo Barros
E ainda precisamos saber onde será alocado o general linha-dura Aléssio Ribeiro Souto (que coordenou o programa de educação do candidato Bolsonaro). Esse general, aliás, é o exemplo perfeito de um militar com pensamento i-liberal: recentemente ele declarou (quando já integrava o principal grupo técnico da campanha bolsonarista) que “os livros de história que não tragam a verdade sobre 64 precisam ser eliminados”.
A lista acima não contempla os militares que forem eleitos para outros níveis de governo e para os parlamentos. Mas parece óbvio que houve também articulação – confessada publicamente pelo vice-presidente General Mourão – para candidatar militares das três forças (assim como houve articulação – feita inclusive pelo filho de Bolsonaro, Eduardo – para montar listas de candidatos com elementos policiais, da Polícia Federal e da Polícia Militar). As forças de segurança resolveram fazer o que nunca deveriam fazer numa democracia: intervir na política. Ah! Mas agora foi legítimo, porque elas usaram os meios legais. Nada disso. Militares não devem intervir (de modo organizado) na política: nem por meios ilegais, nem por meios legais.
Outra coisa é uma pessoa que foi militar ser eventualmente nomeada para um cargo qualquer. Mas não é disso que estamos tratando aqui.
Quem pode acreditar que todos estes militares foram nomeados por mero acaso, ou por notório saber, na ausência de bom candidatos civis?
Eles foram nomeados porque se alinham com um pensamento: o pensamento i-liberal do capitão eleito Jair Bolsonaro. Quem quiser comprovar esta afirmação pode conversar com esses militares: em maioria, eles defendem os golpes de 1964 e 1968 (ou, cinicamente, negam que houve golpe), acham que quem se opôs à ditadura era terrorista (e até hoje, cinquenta anos depois, continuam chamando os dissidentes do golpe de terroristas), justificam as perseguições, prisões, condenações, banimentos, exílios e até a tortura (alguns ainda tratam o torturador do Exército, Brilhante Ustra, como herói) em nome do combate ao comunismo. São esses que estão no poder em cargos de destaque, não os militares que se converteram à democracia liberal.
Outra evidência é que, uma vez no governo, esses militares se comportam como uma corporação (por exemplo, lutando internamente para escapar da reforma da Previdência) e, o que é mais grave, atuam como uma espécie de partido informal militarista-bolsonarista.
Por outras vias, os que pediam – nas manifestações do impeachment – Intervenção Militar Já!, tiveram sucesso. E quem pode garantir que militares não estavam por trás dessa palavra de ordem?
Ou seja, estamos – no Brasil de 2019 – sob intervenção militar: uma intervenção “branca”, operada por meios legais, mas uma intervenção. Uma intervenção que ninguém está querendo ver e que pode ter consequências trágicas para nossa democracia (no mínimo tornando-a menos liberal).
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