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domingo, 20 de janeiro de 2019

Redescobrindo estudos ineditos (2): poder militar e economia nacional - Paulo Roberto de Almeida


Poder militar e economia nacional: argumentos esparsos

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 13 de julho de 2013;
Revisão: Brasília, 19 janeiro 2019

Os argumentos abaixo reproduzem parte de um debate que mantive, três anos atrás, com um colega de carreira, João Paulo Soares Alsina, que especializou-se em temas de estratégia, defesa e segurança nacional, por motivo da publicação de mais um livro desse excelente analista das questões relativas a assuntos de defesa. Meu próprio conhecimento dessas áreas é lacunar e imperfeito, pois nunca me dediquei, realmente, ao estudo sistemático de temas de defesa e segurança, ocupando-me bem mais de assuntos relativos às relações econômicas internacionais do Brasil, integração econômica e comércio e finanças internacionais. Creio, no entanto, dispor de algum conhecimento sobre essas interfaces disciplinares que envolvem o poder militar e o potencial econômico nacional, daí o conceito de “argumentos esparsos” do título.
As conexões entre o poder militar e a economia do país, estão, obviamente, intimamente entrelaçadas, e elas têm a ver, de certa forma, com a estratégia de desenvolvimento de um povo. Emprego estratégia num sentido largo, pois não creio que todo um povo, uma nação inteira, tenha “sentado” alguma vez para refletir sobre os caminhos que estão abertos para seu itinerário político e econômico. Mesmo os estadistas que eventualmente possam ter estado à frente da nação em alguns momentos decisivos de seu itinerário histórico podem ter alguma consciência da importância de escolher algumas vias, sobre outras alternativas, como as melhores para a prosperidade futura da nação, mas mesmo eles não controlam todos os elementos que entram na difícil equação do crescimento sustentado, com transformação produtiva e distribuição relativamente equitativa dos frutos desses crescimento, num ambiente de liberdades democráticas e pleno respeito dos direitos humanos.
Essa é uma equação complexa, que os povos vão cumprindo aos “trancos e barrancos”, para empregar uma frase de Darcy Ribeiro, mas que alguns povos fizeram melhor do que outros, em função de elementos estruturais – ligados à sua formação histórica – e de fatores contingentes, que são aqueles derivados das lideranças políticas e dos caminhos que estas imprimem à nação.
Olhando-se o mapa da prosperidade no mundo de hoje é evidente que alguns povos são mais prósperos do que outros, e outros, ainda, além de prósperos, também são poderosos, embora possa haver poderosos que não são prósperos, e prósperos que são débeis, militarmente. Mas, podemos dizer que existe uma correlação positiva, não mecânica, entre potência econômica e poderio militar, e creio que estes dois conceitos balizam este debate, que pode ser feito de maneira tópica e sistemática.

Fortalecimento da economia nacional antes do reforço do seu poder militar?
Nenhum processo que envolve um número complexo de variáveis – estamos falando da construção da prosperidade, como forma de se ter a base econômica para poder dispor de capacidade de projeção externa – ocorre naturalmente. Existem processos deliberados de construção de potência econômica e de poder militar – chamemo-los de “via bismarckiana” – e existem processos que respondem a tendências naturais, eventualmente impulsionados por lideranças clarividentes, mas que só podem “comandar” mudanças decisivas nos itinerários de seus povos respectivos a partir de certo acúmulo de condições favoráveis para responder aos estímulos e impulsos vindos de cima. Podemos chamar esta segunda via de “americana”, como hipótese.
A Alemanha, pela via bismarckiana, esteve na origem da três guerras que definiram o destino da Europa desde 1870, e que de certa forma também definiram o destino do mundo, ao precipitar a Europa na decadência com sua “segunda guerra de Trinta Anos”, o que a afastou do comando do mundo em favor de potências relativamente periféricas, como foram os EUA e a Rússia-URSS, mas por vias muito diferentes uma da outra. Houve uma via americana para a prosperidade, o que trouxe potencial econômico e poderio militar ao país, e houve uma via russa para os mesmos fatores, mas que passou pela autocracia, pelo escravismo stalinista, pelo imenso desperdício de recursos humanos e rebaixamento cultural de todo um povo, durante praticamente todo o século 20. Reconheçamos que a via americana foi mais positiva. Como foi essa via?
Em 1870 os EUA ainda estavam se recuperando de sua longa, cruel, mortífera guerra civil – que até hoje foi a que mais matou americanos, em qualquer conflito – e recém iniciavam o caminho para a sua prosperidade (o livro Economic Growth, de Robert Barro e Xavier Sala-i-Martin, com introdução disponível no site do MIT, dá os elementos factuais de seu crescimento desde 1870, com as alternativas possíveis). Na verdade, os EUA só se tornaram a primeira potência econômica a partir da última década do século 19, numa época em que a Alemanha já tinha superada a Grã-Bretanha como maior economia europeia e grande exportadora planetária.
Os Estados Unidos não parecer ter sido uma potência militar desde a 1a Guerra, pois acredito que isso só ocorreu com sua entrada na 2a Guerra justamente, e ainda assim a Alemanha permaneceu durante algum tempo como a principal máquina de guerra da guerra, possivelmente até 1943. Os EUA que venceram a Alemanha não foram a potência militar e sim a potência econômica (industrial), e a URSS que venceu a Alemanha nazista foi a horda de contingentes humanos que Stalin mandava para a frente de batalha, continuamente, não um oponente militar equivalente (os tanques ajudaram, mas teve muita ajuda ocidental, sem a qual a URSS não teria resistido à ofensiva alemã em 1941).
Os EUA salvaram a Europa ocidental duas vezes de uma derrota para a Alemanha, mas na Grande Guerra (1917-18) eles o fizeram ainda com base no número de soldados e no seu aprovisionamento, não porque fossem superiores estrategicamente. Eles tinham mais recursos, mas só entraram na guerra depois do afundamento do Lusitania e de algumas outras provocações alemãs (aliás, se, na Segunda Guerra, a Alemanha não tivesse declarado guerra aos EUA, três dias depois de Pearl Harbor, talvez o cenário militar na Europa fosse um pouco diferente, não como resultado, mas como desenvolvimento). Os EUA não tinham uma máquina de guerra eficiente até a Segunda Guerra, portanto, pois antes eles confiavam no seu isolamento do mundo, e na proteção natural dada por um território continental sobre dois oceanos, com uma marinha razoável, e um exército mais ou menos pífio.
Mesmo depois de serem a primeira potência econômica planetária, os EUA não investiram tanto quanto os europeus e o Japão em meios militares, pois não eram um império colonialista e não pretendiam dominar outros povos. Mais importante: não se sentiam ameaçados. Algumas perguntas podem ser feitas a esse propósito, envolvendo os Estados Unidos e o Brasil, a título hipotético.
OS EUA precisavam construir o seu potencial econômico para dispor de um formidável poderio militar? Não, tanto que o seu potencial econômico foi construído naturalmente, não da maneira bismarckiana, para serem preeminentes e poderosos, mas porque a sua formidável máquina produtiva se colocou em marcha, pela via dos mercados, não do governo, porque eles construíram, naturalmente, um modo inventivo de produção, que lhe trouxe riqueza, prosperidade, preeminência econômica, mas não militar, e assim foi até 1939 praticamente.
O Brasil precisa construir o seu potencial econômico? Certamente, não pelo PIB em si, mas pela prosperidade e bem-estar do seu povo, pois ele já tem o oitavo PIB mundial; mas seu povo continua miserável e o país tem um ridículo poderio militar.
O Brasil precisa construir o seu poder militar? Eu diria que não, pois ele não dispõe de poder econômico, e não tem nenhuma ameaça em vista, como não tinham os EUA, desde 1870 até 1941, praticamente (enfim, um pouco antes, mas os esforços não foram sistemáticos). Naquela época, e na cabeça do chanceler Rio Branco, a ameaça provinha da Argentina, daí o programa naval e outras coisas. Certo, mas isso não era uma ameaça à sobrevivência da nação, tanto que a construção do nosso poderia foi descontinuada, em parte por falta de meios econômicos, em parte porque o cenário podia ser contornado diplomaticamente, como Rio Branco sempre fez.
O Brasil precisa hoje fazê-lo? Minha resposta é negativa, mas compreendo que os militares prefiram uma resposta positiva a essa questão, o que faz parte da sua essência profunda. Eles não seriam militares se concordassem com um fraco poder militar. A questão está em saber que PIB sustenta o esforço para construir tal poder, sem mencionar a questão ainda mais importante que é a de saber que tipo de poder militar construir. Os militares provavelmente vão dizer que eles precisam de toda a panóplia militar, pois as ameaças são imponderáveis, e eu diria que a barreira do PIB seria nesse caso ainda maior. Recomento uma reflexão entre fins e meios, no plano estratégico.

O Brasil necessita, realmente, de um grande poder “duro”?
O poder duro das FFAA é relevante para o quê, exatamente, ou para quem, e em que condições, e para quais utilizações? O poder duro é relevante para nos transformar numa potência mundial? Ou seja, exagerando na comparação, ser um outro Paquistão, que tem a bomba atômica e um povo miserável, um Estado falido que não consegue assegurar sequer educação primária para as meninas?
Nós não conseguimos assegurar um padrão mínimo e decente para nossos estratos mais miseráveis, mas queremos ter um “poder duro”. Pois bem, o que faremos com ele? Paradas na nossa Praça dos Três Poderes, como se faz na Praça Vermelha? Isso é ridículo. Mesmo que o Brasil construa um “poder mais ou menos duro” apenas para atuar em operações de imposição da paz da ONU, ainda assim fica ridículo deixarmos gente miserável na frente interna para ter essa capacidade de projeção externa. Eu tenho minhas prioridades e elas passam antes pela prosperidade do povo brasileiro do que pelo “poder duro”. Este só se justificaria se tivéssemos ameaças, mas quais são elas, de onde provêm, quem nos quer mal e quer nos prejudicar? Estas são questões relevantes no debate sobre o “poder duro”: quem nos quer mal?
Pode estar na agenda dos militares, ou de certas elites, a construção desse “poder duro, mas dificilmente na de uma nação que ainda tem um PIB per capita muito atrás das nossas possibilidades. Tal pretensão me parece muito desconectada da realidade do país que nós somos. É possível, sim, ser um Paquistão nuclear, continuando a ser um Paquistão social e econômico, mas isso me parece patético e não muito desejável.

Quem construirá o “poder duro”? Uma decisão política ou a evolução econômica?
Investimentos nas FFAA sempre podem ser justificados, mas eu volto a me perguntar para o quê, exatamente? Qualquer planejamento para tal demora algo como 25 anos, e nesse período as tecnologias militares podem ter evoluído, mas as ameaças externas também. Os preparativos setoriais que foram feitos lá no começo podem não ser os melhores possíveis.
Gostaria de insistir na correção de uma concepção que me parece equivocada desde o início, a de que quem garante a segurança dos EUA e o poder militar americano é o Pentágono e os enormes gastos em defesa daquele país. Refuto isto, pois acredito que os EUA são poderosos A DESPEITO do Pentágono, não graças a ele. Quem garante o poderio militar dos EUA não é o Pentágono, e sim a professorinha de aldeia. O dia em que as FFAA (americanas ou brasileiras) precisarem se preparar para a defesa, ou mesmo para a guerra, em face de ameaças percebidas ou reais, elas vão precisar de engenheiros, tecnólogos, indústrias, cientistas, etc. Ou seja, aquilo que tem de ser programado, 25 anos antes ou mais, é a capacitação geral de todo um povo, não um exército formidável construído sobre a miséria relativa do seu povo.
Volto a dizer: os EUA só conseguiram mandar homens para o teatro europeu em 1917 porque já eram uma potência econômica há pelo menos 20 ou 30 anos, e já tinham feito seus pequenos experimentos guerreiros nas imediações (por circunstâncias, não porque estivessem naturalmente destinados a fazê-lo). O Brasil só foi ter um arremedo de poderio militar na guerra do Paraguai, e porque fomos obrigados a fazê-lo. Depois deixamos a coisa andar, mas os militares foram envolvidos na política e nunca mais deixaram de se envolver, até 1979, mais ou menos.
Agora acabou, mas isso também é irrelevante no plano do poderio militar. Os militares não foram decisivos nem na Alemanha, nem nos EUA, e sim os líderes civis, que levaram o povo a secundar suas decisões de aventuras militares.
E a China, que parece estar construindo o seu poderio militar sob instruções do PCC? Isso é certo, mas o PCC de Deng Xiaoping tratou primeiro de construir o poderio econômico do país, antes de se lançar na modernização das FFAA E o país atua num ambiente no qual a China já foi terrivelmente humilhada pelas potências ocidentais e esquartejada pelos militaristas japoneses. Ela não pretende mais ser humilhada como no passado. O Brasil tem esse cenário, precisa de um “poder duro”? Não creio.

As FFAA gastam mais com pessoal (inclusive inativos) que com equipamento
Não há como não concordar com essa realidade, o que talvez esteja ligado à relativa “irrelevância” das FFAA enquanto “poder duro”. Será que ela se ocupa mais dela mesma do que de seus objetivos constitucionais? Se trata da corporação mais segura do Brasil, a melhor organizada, a que não corre nenhum risco de vida,  a que tem a mais alta “desproporção contábil” entre contribuições previdenciárias e retornos de aposentadoria, justamente por causa desse investimento na remuneração, não no equipamento.
Concordo que se o investimento fosse de 3% do PIB talvez o equipamento e a preparação fossem melhores, mas qualquer economista sensato diria que as dotações orçamentárias das FFAA são e sempre serão gastos improdutivos, a não ser quando integrados nos circuitos produtivos nacionais. Mas por isso mesmo que digo que se trata antes de construir o poderio econômico, pois junto virão orçamentos melhores para as FFAA. O destaque orçamentário para as FFAA, nas condições do Brasil, sempre será feito em detrimento de outros gastos, que já são a porcaria que são, pois se gasta mais com os ricos, e os mais espertos (que são os mandarins da República, a classe média universitária, a burguesia do BNDES, os banqueiros da dívida pública, etc.) do que com o imenso contingente de jovens que não dispõem de condições adequadas de estudo. Eu sinceramente trataria da educação em primeiro lugar, e não apenas por destaques orçamentários, mas por uma revolução nos métodos e nos instrumentos. Essa é a verdadeira tragédia do Brasil, em face da qual a “pobreza” das FFAA me parece um falso problema, e uma reclamação a mais da parte dos mandarins de uniforme.

O cenário sempre será de restrições orçamentárias para as FFAA?
As FFAA não correm o risco de ficar mais “pobres” do que já são, pois como os universitários, os políticos, os magistrados, elas são bem organizadas, e conseguem, de vez em quando, “assaltar os cofres públicos”, e melhorar a vida dos seus, ainda que não o tal “poder duro”. Não se pense que não é assim, pois é exatamente assim: quando os lobbies vão a Brasília, implorar recursos nos ministérios, pedir proteção tarifária, convencer os parlamentares que a sua causa é “estratégica”, ou “social”, o dinheiro acaba saindo e tudo fica como está. Esse é um cenário que conhecemos muito bem: é o do cobertor curto, e todos disputando um naco do bolo, que é infelizmente muito pequeno.
Um planejamento orçamentário focado nos pobres e nos problemas reais do país deixaria todos eles à míngua – universitários, magistrados, banqueiros, industriais, militares – e cuidaria da educação em geral, mais da primária, secundária e técnica em particular. Foi isso que fez a Alemanha, durante dois séculos – Prússia e depois Alemanha – e conseguiu ser, primeiro o maior perturbador da paz europeia e mundial, e depois a principal potência produtiva do planeta, o que ela ainda é, de certa forma, sem ser mais bismarckiana.
Como toda a conversa em torno do declínio relativo dos EUA, e ele existe certamente no terreno industrial, eles ainda são a primeira potência econômica planetária, baseada sobretudo na economia da inteligência. Nossos militares ainda querem um pouco mais de “stalinismo industrial” – ou seja, uma base econômica essencialmente nacional –, mas como sempre, eles estão lutando batalhas passadas. Acho que já está na hora dos mandarins militares – já que os civis continuam indolentes, inconscientes, quando não corruptos – tomarem consciência disso e colaborarem, não bismarckianamente, para o progresso da nação. Acho que a via tem de ser americana, mas todos os nossos mandarins, inclusive os militares, acham que os mercados têm de ser “regulados” pela mão visível do Estado. Por isso mesmo vamos continuar nosso lento itinerário em direção da riqueza e da prosperidade. É muito mais fácil e rápido fazê-lo pelos mercados do que pelo Estado, mas muita gente não concorda com isso, infelizmente.

Estes argumentos são muito liberais? Provavelmente...
Eu não chamaria a minha visão dos problemas de desenvolvimento do Brasil de liberal, de mercadista, ou qualquer outra conotação ideológica. Já fui marxista, stalinista industrial, essas coisas, mas creio que nunca cheguei a ser um mandarim da República, ainda que objetivamente eu seja um da classe, hoje, mas não da espécie, sequer da família. Sou antes de tudo um bom observador do mundo, conhecimento adquirido em viagens, e um estudioso da história, especialmente a econômica. Acredito divergir radicalmente da maior parte dos nossos colegas, dos militares, dos nossos burgueses e de outros mandarins da República: tendo vindo da pobreza para uma situação aceitável com base no meu próprio esforço e na educação, acredito que as crianças do Brasil precisariam ter as mesmas oportunidades que eu tive de se educar e se enriquecer intelectualmente. Acredito que esse foi o caminho seguido pelos imigrantes nos EUA, sem qualquer planejamento estatal, apenas com algum discernimento sobre o que era relevante na vida privada e na vida pública.
Acredito que continuaremos a perder oportunidades de crescer, de construir potencial econômico e poderio militar porque insistimos em fazer as coisas pela via da superestrutura estatal, onde os recursos são dilapidados entre os que controlam o Estado. Acho que ganharíamos mais se começássemos, por uma vez, pela infraestrutura educacional, isto é, pelos mais pobres.

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 13 de julho de 2013;
Revisão: Brasília, 19 janeiro 2019

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