Imagem externa do Brasil mudou para pior
no novo governo, diz Benjamin Moser
Para autor americano, chefe do Itamaraty tem discurso de
'ufanista magoado' e usa termos de teor antissemita
FSP, 11.jan.2019 às 6h00
[RESUMO] Em carta aberta ao ministro
das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, autor norte-americano comenta
repercussão internacional das ideias enunciadas pelo novo chanceler em artigo recente.
Prezado ministro,
Há pouco mais de dois anos, o
ministério que o senhor hoje encabeça me outorgou o Prêmio Itamaraty de
Diplomacia Cultural. Foi um reconhecimento do meu trabalhoe trouxe consigo
uma obrigação de continuar trabalhando em prol do Brasil
—de ser algo como um amigo oficial do Brasil. E é nesta capacidade que lhe
escrevo.
Recentemente, o senhor
publicou uma matéria no meu idioma, o inglês, e no meu país, os Estados Unidos
(“Bolsonaro was not elected to take Brazil as he found it”, ou “Bolsonaro não
foi eleito para deixar o Brasil como o encontrou”, na Bloomberg, em 7/1). Se
respondo em português, é por dois motivos.
Primeiro, porque sua matéria
ilustra muito bem que saber a gramática ou o vocabulário de outra língua não
implica compreender suas sutilezas: como soa. Se tivesse maior noção do meu
idioma, seria de esperar que não houvesse publicado uma coisa que —digo
francamente— expõe o Brasil ao ridículo.
E essa é a segunda razão pela
qual lhe respondo em português. Apesar de não ser de nacionalidade brasileira,
o Brasil não me é de maneira nenhuma alheio. Desagrada-me profundamente vê-lo
alvo de risadas internacionais. Gostaria, pois, que esta conversa ficasse entre
nós —em português.
Em inglês, a sua vinculação da política externa com Ludwig Wittgenstein soa
bizarra. Suspeito que não seja sua intenção —que é, se estou lendo bem, de
deslumbrar o leitor com frases como “desconstrução pós-moderna avant la lettre
do sujeito humano e negação da realidade do pensamento”.
Sabe aquele estudante de
pós-graduação que encurrala a menina na festa falando de Derrida ou
Baudrillard?
Pois é.
Aliás, em inglês, proclamar
“não gosto de Wittgenstein” soa pretensioso, arrogante. Sabe aquele homem que,
diante de um Picasso, diz que sua filha de quatro anos poderia ter feito
melhor?
Pois é.
Mas, além do tom, qual é
mesmo seu problema com Wittgenstein? Vejo que não é sequer uma frase inteira,
mas uma parte de uma frase: “O mundo tal como o encontramos.”
O senhor lê isso como um
pedido —uma ordem, até— de aceitar tudo no mundo tal como é, de não tentar
mudar nada, de se comportar como se não tivesse vontade própria. Se acompanho a
sua lógica, é assim que o Brasil tem se comportado durante todos os governos,
de esquerda como de direita, que precederam o atual.
Para quem conhece a obra de
Wittgenstein —assim como para quem tem noções da história diplomática
brasileira—, isso pode soar inexato. Mas o senhor pretende romper um padrão que
tem impedido o surgimento da verdadeira grandeza do Brasil. O país, segundo o
senhor, antes disse: “Eu não acho nada. Eu não tenho ideias. Assim como o
sujeito desconstruído de Wittgenstein, eu não tenho um ‘eu’.”
Eu não caracterizaria o
trabalho de gerações de diplomatas brasileiros assim. Imagino que, em
português, possa soar desdenhoso. Mas estamos falando de como soa em inglês, e,
se muito ficou incerto na sua matéria, uma coisa ficou clara: sua vontade de
mudar a imagem do Brasil no mundo.
De fato, em poucos meses,
essa imagem já mudou bastante. Temo que não seja na direção que o senhor
pretende. Pois, em todos os meus anos de brasiliófilo, nunca vi tantas matérias
ruins sobre o Brasil surgirem na imprensa europeia e americana. Isso deve ser
motivo de preocupação para um chanceler. Porque o Brasil, apesar de seus
problemas, sempre desfrutou de um nome positivo no mundo.
O racismo, a homofobia e a
saudade da ditadura da nova administração têm sido fartamente comentados na
imprensa mundial. Em inglês, o tom dessa cobertura tem sido extremamente
negativo. Um chanceler deve poder responder num inglês sereno e compreensível e
explicar as razões que levam o novo governo a adotar tal e tal medida.
Quando se dirige a um público
internacional, uma coisa a evitar a todo preço é o emprego de termos
—“globalistas,” “marxistas,” “anticosmopolitas,” “valores cristãos”— que, em inglês,
têm fortes conotações antissemitas.
São extraídos do léxico de
conspiração global judaica, e, dada a história deste léxico, pessoas
civilizadas, tanto de direita como de esquerda, aprenderam a evitá-lo.
Quando se fala inglês, é
preferível, em geral, evitar falar de conspirações. Dá a impressão de ter
passado a noite em claro na internet decifrando os segredos das pirâmides.
Talvez seja por isso que suas descrições sobre o aquecimento global como trama
marxista tenham sido tão amplamente ridicularizadas na imprensa mundial.
Quem, em língua inglesa, quer
ser levado a sério evita tais caracterizações. E não é mesmo este o maior
desejo do senhor, o de ser levado a sério? É a única coisa que fica clara
debaixo da linguagem um tanto acalorada.
A novidade que o senhor
anuncia não é outra coisa senão a mais antiga emoção do conservador brasileiro:
o ufanismo magoado.
Este é o sentimento de quem
quer uma nação que esteja à altura da imagem —muitas vezes exagerada— que tem
de si próprio.
Se o senhor imagina que o
Brasil não é suficientemente respeitado, seria bom nos brindar com pelo menos
um exemplo; na minha experiência, vasta, do Brasil no âmbito internacional,
confesso que nunca percebi a falta de respeito.
Mas, mesmo que ela existisse,
seria bom lembrar que, em qualquer país, o respeito não se exige. Com paciência
e trabalho, se ganha.
Ninguém sabe melhor do que eu
os lados positivos que tem o Brasil. Mas, sabemos, brasileiros e estrangeiros,
que o Brasil também tem uma cara feia. E é essa cara que seu tom me traz à
mente. É o tom daquele patrão que grita “faça que tô mandando!” para a
empregada. Asseguro-lhe que não fica mais elegante em tradução inglesa.
Infelizmente, não é apenas
uma questão de tom. Desde o primeiro dia, este governo deu a impressão de querer
abusar das pessoas mais vulneráveis da sociedade. Todos os jornais do mundo têm
noticiado os ataques aos índios e à população LGBT, além da redução do salário
mínimo para os trabalhadores mais pobres.
É possível que haja
explicações razoáveis para tais medidas, mas confesso que até agora não as vi.
De novo, seria mais eficaz explicá-las com calma do que andar pelo mundo
proclamando que os brasileiros não são mais “robôs pós-modernos” e que não
suportarão mais “a opressão wittgensteiniana da morte-do-sujeito.”
Porque, ironicamente, é seu
medo de ver as pessoas zombarem do Brasil que fará... as pessoas zombarem do
Brasil. Deve ter visto a ministra Damares gritando que “menino veste azul e
menina veste rosa!” e notado como isso repercutiu pelo mundo. As suas
declarações também não ajudam a que as pessoas levem o Brasil a sério.
Se há um ponto em que estamos
em total acordo é que também não gosto de ver o Brasil ridicularizado. Por
isso, lhe encorajo a lembrar em nome de quem está falando. E de escolher com
mais tato, em português como em inglês, as suas palavras.
O senhor se descreve, no seu
Instagram, como “ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro”. Não é.
É ministro das Relações
Exteriores do Brasil.
Seria bom que se comportasse
com a dignidade que tal posição exige.
E se, no futuro, tiver uma
dúvida de inglês, pode sempre entrar em contato comigo.
Cordialmente,
Benjamin Moser
Prêmio Itamaraty de Diplomacia Cultural, 2016
Benjamin Moser, escritor norte-americano, é
autor da biografia ‘Clarice’ (Companhia das Letras) e de ‘Susan Sontag: Sua
Vida e Obra’, que sai no final do ano também pela Companhia das Letras.
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