Há recantos de Petrópolis que sugerem uma natureza benevolente – o trópico como poderia ter sido. Aqui não se acha aquela massa selvagem que, em tantos lugares do país, apavora estrangeiros e nativos (insetos ferozes, peixes carnívoros): trata-se do trópico turístico como o que se cultiva nos melhores “resorts” do Havaí ou de Bali (palmeiras, flores, macaquinhos).
Mas a harmonia natural não é o que de mais sugestivo fica da região. Petrópolis, mais do que qualquer outro lugar que eu conheça, carrega o peso de suicídios, exílios e derrotas de pessoas ilustres que, seduzidas pelas árvores e flores, buscaram refúgio ali, só para encontrar um fim amargo.
O magnata homossexual Alberto Santos Dumont, que inventou a aviação com a esperança de fomentar a fraternidade universal, escolheu morar em Petrópolis, numa casa que é hoje um curioso museu – e terminou tirando a própria vida no Guarujá, diz a lenda que angustiado por ver seu engenho empregado para fins bélicos.
Em Samambaia, nas escarpas da serra, no esplendor de sua casa modernista, a poeta americana Elizabeth Bishop perdeu seu grande amor, Lota de Macedo Soares, e afundou-se no alcoolismo.
Célebre
Hoje, o nome internacionalmente mais célebre entre os que ali se exilaram talvez seja Stefan Zweig. Nascido em 1881 numa família de judeus burgueses de Viena (seu pai era industrial têxtil; sua mãe descendia de uma família de banqueiros ítalo-austríacos), Zweig foi submetido a uma criação fria e à educação rigorosamente clássica destinada aos homens de seu tempo e condição social. Estudou filosofia na Universidade de Viena, onde se doutorou em 1904. Seu interesse artístico prevaleceu sobre sua formação austera, e ele se recusou a abraçar os negócios familiares, embora tivesse se mostrado desde cedo um herdeiro à altura de seu pai rico e enérgico.
Seu primeiro livro, uma antologia de poemas chamada Silberne Saiten (cordas de prata), foi publicado quando ele tinha 19 anos. Apesar de, ao longo de sua vida, ele nunca ter permitido uma reedição do volume, o livrinho anunciava o início de uma grande carreira que incluiria não só poesia mas também teatro e jornalismo, embora seja mais correntemente recordada pelas biografias e novelas.
Figuras proeminentes da cultura europeia, de Auguste Rodin a Sigmund Freud (além de amigo de Zweig, o psicanalista foi tema de um dos ensaios que compõem A Cura pelo Espírito, de 1932), elogiaram sua obra – em especial graças a escritos breves como “Medo” e “Carta de Uma Desconhecida”, que, ao lado de “24 Horas na Vida de uma Mulher” serão reunidos em Três Novelas Femininas [org. Alberto Dines, trad. Adriana Lisboa e Raquel Abi-Sâmara, Zahar, R$ 39,90, 176 págs.], a sair no mês que vem.
Na década de 1920, seus títulos publicados na Europa e nos Estados Unidos somavam milhões de exemplares, e ele se tornou o autor mais traduzido do mundo. Eram livros encantadores, no melhor sentido: eles enfeitiçavam o leitor.
Mesmo se seus temas nunca eram menos que grandiosos, não reside na temática o brilho da obra de Zweig: é o fascínio pelo autor o que explica sua popularidade duradoura. Seus livros podem ser vistos ao lado de revistas de celebridades e de livros de dieta em estações ferroviárias no interior da França, e em dezenas de países ele ainda é, mais de 70 anos após sua morte, possivelmente o mais popular dos escritores de sua geração.
Parte do encanto de Zweig vem de sua vida dramática e glamorosa. Se sua existência parece ter sido melancólica – dadas a data e o local de nascimento, dificilmente não o seria –, ela também pode ser considerada como extraordinariamente bem vivida.
Ele viu as tropas alemãs marcharem sobre a Bélgica e começarem a Primeira Guerra Mundial; ele viu o fim da guerra, quando o último monarca abandonou o antigo trono dos Habsburgo. Seu engajamento político – seu horror ao racismo e ao nacionalismo, sua dedicação a um ideal cosmopolita que desconhecesse fronteiras – faziam-no parecer à frente de seu tempo: só alguns anos após sua morte um ideário em certa medida baseado no seu tornou-se a base para a reconstrução da Europa.
Sua vida foi tão bem-sucedida que, sob certos aspectos, pode ser descrita como triunfante. Exceto pelo mesmo motivo que se abateu sobre tantas vidas mais comuns: a ascensão de Hitler.
Brasil
Quando a guerra estourou, Zweig teve mais sorte que muitos outros. Rico e famoso, ele não estava preso na Europa, por haver assumido a nacionalidade britânica, o que lhe dava plena e preciosa liberdade de movimento. Foi para os Estados Unidos e, mais tarde, para o Brasil, sobre o qual havia escrito o caloroso Brasil: Um País do Futuro [pref. Alberto Dines, trad. Kristina Michahelles, L&PM Pocket, R$ 19,90, 264 págs.]. Publicado em 1941, o livro agradou ao governo – e esse governo, que impunha tantas restrições a judeus bem mais necessitados de asilo do que Zweig, expediu-lhe um visto.
Ele foi para Petrópolis. Mas aquela cidade e o Brasil que ele vislumbrou como uma nova possibilidade para a civilização não foram o bastante. Após ver seu mundo colapsar sob um morticínio de proporções inimagináveis, o escritor e sua mulher, Lotte, deram cabo da própria vida durante o Carnaval de 1942.
Seu suicídio – somado à percepção de sua personalidade como depressiva e sexualmente ambígua – obscureceu muito do que se escreveu sobre Zweig. Seu curto período em Petrópolis acabou funcionando como uma estranha coda para sua história. Um ícone da cultura europeia exilado, inconsolável, para os confins da terra, em desespero, se mata: a morte de Zweig quase imediatamente abandonou a esfera do tormento pessoal, adquirindo um significado político, simbólico, do qual nunca se desvencilhou de fato.
Thomas Mann, dando voz ao que muitos calavam, o reprovou: “Ele não tinha consciência de sua responsabilidade perante centenas de milhares de pessoas para as quais seu nome era importante e diante das quais sua capitulação provavelmente teria um efeito deprimente? Perante os muitos outros, refugiados como ele, mas para os quais o exílio era uma experiência incomparavelmente mais dura que a sua, celebrado como ele era, e sem preocupações materiais?”. Enquanto a cultura europeia era massacrada – sugere o raciocínio – o mínimo que se esperava de seus expoentes era que não se massacrassem a si mesmos.
Essa carga simbólica, aliada aos aspectos pitorescos da vida de Zweig, atraiu levas de biógrafos. O primeiro problema com o qual se deparavam era o fato de que ele havia escrito uma autobiografia, O Mundo que Eu Vi – um dos melhores exemplos de livros de memórias do século 20 (o título será relançado em novembro no Brasil, também pela Zahar).
Nele, a força do estilo de Zweig se mostra plenamente. Sua argúcia para o detalhe eloquente, seu conhecimento do mundo e suas lembranças de grandes personalidades da cultura de seu tempo são amparadas por uma corrente emocional poderosa que ajuda o leitor a imaginar o inimaginável desespero de uma geração forçada a ver toda sua sociedade varrida pelo fanatismo e pela guerra.
Escrito quase inteiramente em uma temporada de poucos meses no vilarejo de Ossining, no Estado de Nova York, o livro recorda o continente ao qual o autor nunca retornaria. Zweig se concentrou tanto no trabalho para escrevê-lo que sua mulher chegou a temer por sua saúde. Embora descrito com detalhes vívidos, esse mundo perdido é só em parte lamentado: nenhum leitor chorará, por exemplo, a desaparição da repressão sexual que vigia na Viena pré-Freud.
Diante do tema, é surpreendente que o livro não seja mais sombrio, e a impressão que deixa é tal que quase se tem pena dos biógrafos de Zweig. Quem contaria sua história melhor do que ele próprio?
Biografias
Além de ficção e poesia, esse homem prolífico produziu uma grande quantidade de biografias, cobrindo uma galeria de personagens que soa quase disparatada e que inclui Maria Antonieta, Erasmo, Balzac e Napoleão.
A atração que essas figuras exerceram sobre Zweig e aquilo que as une, é que todas, sem exceção, resistiram à história e terminaram vitimados por ela. Suas trajetórias, quando lidas à luz do que aconteceria a seu biógrafo, ganham um tom assustador de profecia.
Maria Antonieta, a adolescente austríaca fascinada pela “joie de vivre”, designada a um papel à altura do qual nunca estaria, num lugar e num tempo que ela não conseguiu entender; Erasmo, em sua devoção trágica e paciente a um conceito de universalidade carcomido pela corrupção, má-fé e ambição; a imaginação grandiosa de Balzac, submetida a preocupações financeiras que se impuseram sobre o gênio artístico: esses personagens, vistos como um conjunto, formam um retrato tão poderoso de Zweig quanto o que surge de O Mundo que Eu Vi.
Uma sensação de vaticínio semelhante emerge da leitura de suas novelas e do único romance que publicou em vida – traduzido no Brasil como Coração Inquieto, o livro de 1939, hoje fora de catálogo, também foi produzido sob a sombra de Hitler.
Mas essa ideia de predestinação não toma conta da obra de Zweig como um todo. Quando o vemos como personagem, a tendência a ler sua vida de trás para frente é irresistível. Tudo é refratado pelo prisma petropolitano.
É um procedimento perfeitamente legítimo e foi adotado, por exemplo, por Alberto Dines no clássico Morte no Paraíso: a Tragédia de Stefan Zweig [Rocco, R$ 69,50, 594 págs.]. Contudo, em mãos menos hábeis que as de Dines, que há anos se dedica à obra de Zweig, o expediente favorece o perigo de fazer o que Zweig, em seus próprios escritos, não fez: lançar um olhar limitado sobre a vida de alguém que se dedicou a ampliar, e não a reduzir, as visões que oferecia em seus livros.
Risco
É nesse risco que incorre o novo livro do escritor norte-americano George Prochnik, The Impossible Exile [Other Press, R$ 48,90, e-book] (o exílio impossível). Apesar de se apresentar como uma biografia, o livro de Prochnik ostenta origens heterogêneas. Poderia ser descrito como relato de viagem (pela Áustria, pelo Brasil), romance (embora o tom se enquadre no de uma biografia ortodoxa, o livro não o é), reflexão sobre as raízes familiares do próprio biógrafo (como Zweig, o autor descende de judeus vienenses).
Como sugere o título, a ênfase recai sobre a experiência de Zweig como exilado – especialmente em Nova York, onde esteve entre 1940 e 1941 e onde ele se sentiu acuado pelos refugiados pobres e desesperados, oriundos de uma civilização cujo colapso ele narrava no livro que então escrevia, numa casa alugada em Ossining.
Por vários motivos, é uma escolha ousada a que Prochnik faz para meditar sobre o exílio.
A temporada de Zweig nos Estados Unidos é aparentemente menos relevante para sua vida do que os períodos transcorridos na Áustria, na França, na Inglaterra ou no Brasil. Mas foi nos EUA que ele escreveu seu famoso livro de memórias, última parada antes da jornada que o levaria à morte.
Prochnik evoca a cidade que Zweig conheceu: a taxa de criminalidade nova-iorquina à época, o clima, a irritação que o escritor sentia ao ver os espectadores da ópera lendo os libretos com diminutas lanternas. São detalhes que mostram quão desconcertante a cidade podia ser até para o mais cosmopolita dos expatriados.
Observando fotografias de viagens de Zweig antes da guerra, Prochnik frisa sua capacidade camaleônica para se mesclar a diferentes cenários como se a eles pertencesse. Chega a acusá-lo de não ter personalidade própria.
Deixando de lado questionamentos sobre como poderia um dos mais famosos escritores do mundo desaparecer contra qualquer pano de fundo, o que há de mais notável na experiência de Zweig, conforme relatada no livro, é que Nova York se impôs como o local com o qual ele não podia se fundir; aquele que teria dado a ele a mais dura noção de exílio.
Prochnik mostra o que significou, para Zweig, estar ali – quão difícil era para ele ser um dos “bem-aventurados”. Judeus refugiados na América, por definição, tinham mais sorte do que os que estavam sujeitos às tropas de Hitler. E, visto de fora, Zweig parecia ser o mais sortudo de todos.
Prenúncio
Enquanto o livro de Alberto Dines sobre Zweig no Brasil aproveita a história do escritor em Petrópolis para jogar luz sobre toda sua vida, o de Prochnik lê toda a trajetória de Zweig como prenúncio de seu suicídio na serra. E, assim, se concentra justamente nos aspectos menos interessantes de sua vida. A situação dos judeus europeus era tudo menos individual, e colocar ênfase numa questão que devastou milhões é enfatizar o que Zweig tinha em comum com tantas outras pessoas, em lugar de tentar entender o que faz dele extraordinário.
Não valeria a pena apontar essas falhas no livro de Prochnik, não fossem elas tão disseminadas ou provenientes de fonte tão ilustre: além de Thomas Mann dizer que Zweig dera um mau exemplo, Hannah Arendt condenara seu excesso de sensibilidade. Ao iluminar o que ele não era, narrativas como essa pintam o retrato de alguém fraco, sem caráter, assustadiço e nervoso, e pouco se preocupam em explicar por que, sete décadas após sua morte, sua figura exerce fascínio tão duradouro.
Quando Zweig se mostra integrado ao ambiente, Prochnik se refere à “artificialidade endêmica do caráter vienense” ou a “clichês inevitáveis sobre o desejo judaico de assimilação”. Define como ingenuidade suas “demandas imodestas por um mundo diferente” – sua convicção antissionista e contra qualquer outro tipo de nacionalismo; o cuidado feroz com que evitava linguagem ofensiva, até mesmo para falar de Hitler.
Talvez. Mas por que descrever esse escritor, tão admirado, como um “professor itinerante de sabedoria pacifista”, colocando-o apenas um degrau acima de um hare krishna de semáforo? Quando Zweig escreve que seu “objetivo seria um dia se tornar não um grande crítico ou uma celebridade literária, mas uma autoridade moral”, Prochnik se mostra confuso: “A ambição pode gerar perplexidade, mas Zweig falava a sério”. Mas o que haveria de causar perplexidade nessa intenção? Seria preferível aspirar à celebridade?
Rumores
Contribui para essa impressão a inclusão, no livro de Prochnik, de detalhes de cunho sexual que sugerem que Zweig era quase um pervertido: ficamos sabendo que “há rumores”, por exemplo, de que “Zweig saía à caça entre os rapazes sedutores do Rio”. Ou de que ele, em Viena, “se escondia entre arbustos perto da jaula dos macacos no zoo de Schönbrunn, à espera de mocinhas diante das quais saltar e se exibir”. Talvez. Mas por que somos expostos a boatos de mau gosto, para os quais não é oferecida qualquer prova ou corroboração? (Em especial se consideramos que, na página seguinte, Prochnik descreve outro amigo como “mais confiável” do que o que provera as histórias relatadas.) Zweig era conhecido no mundo todo; todo mundo dizia todo tipo de coisa sobre ele.
Se, tanto tempo depois de Zweig e sua mulher terem sido encontrados mortos em Petrópolis, ele ainda se mantém relevante, a resposta certamente está no seu trabalho – sempre vivo, sempre lido, sempre traduzido – mais do que nos detalhes em torno do triste desenlace de sua vida.
Apesar de ser tão modesto quanto generoso – Prochnik escreve que Zweig nunca deixou de olhar com humildade para seu próprio trabalho e sempre tinha na ponta da língua nomes cuja obra considerava maior que a sua –, chegar a ser o escritor mais traduzido do mundo não é pouca coisa.
Ler seus livros e conhecer sua vida nos traz mostras não de fraqueza, mas de uma vitalidade típica de um Balzac. Todos aqueles livros! Aquelas viagens! Aquelas mulheres! Até mesmo o suicídio, já há muito estabeleceu a psicanálise, é a escolha dos fortes, dos que não esperam pelo destino, mas se lançam a ele por seus próprios meios.
O que tinha Zweig que atraía a devoção de milhões de fãs, a admiração de Hermann Hesse? Que qualidades teria para que fosse escolhido a fazer a elegia de Freud em seu funeral? A fim de responder a essas perguntas, o livro de Prochnik precisaria iluminar todos os aspectos de seu trabalho, perpassar todos os seus livros e desafiar, mais do que aceitar, a modéstia aparente de suas declarações sobre sua própria trajetória.
Há muito é devida a Zweig uma revisão plena, que vá além dos textos críticos emergidos a par das recentes retraduções, nos Estados Unidos, de sua obra. Tal reavaliação deveria também ir além do que disse outro refugiado suicida, Klaus Mann – “Ele só teve uma ambição: mitigar a amargura do sofrimento humano ao ampliar a consciência de suas raízes e causas” –, e perguntar: não seria essa ambição grande o bastante?
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Benjamin Moser, 37, escritor americano, é autor de
Clarice (Cosac Naify). Seu texto nesta edição é uma versão adaptada para a
Folha de artigo publicado na revista
Bookforum