Em 2006, quando escrevi o trabalho abaixo, eu me encontrava no mais completo ostracismo no Itamaraty. Impedido de dirigir, por um veto da alta chefia da nova administração, os estudos de mestrado do Instituto Rio Branco – para cujo cargo tinha sido convidado pelo próprio diretor do IRBr – desde o início do governo lulopetista, em 2003, eu permaneci fora de qualquer cargo na Secretaria de Estado durante TODA a duração desse regime, só vindo a ser novamente convidado para exercer funções no Itamaraty a partir do impeachment do poste do megalomaníaco (e criminoso) líder da quadrilha que assaltou o Brasil e os brasileiros entre 2003 e 2016.
Estando fora do serviço diplomático direto, mas ainda sendo um funcionário de carreira do Serviço Exterior, eu evitei contrariar as normas diplomáticas publicando abertamente análises que contrariassem o Zeitgeist daquele momento.
Daí resulta que eu retornei a uma prática que só havia adotado durante a ditadura militar, ou seja, escrever sob noms de plume, o que fiz com gosto e liberdade, publicando vários artigos na imprensa escrita e nos meios eletrônicos sob outros nomes.
O que vai abaixo é um dos muitos exemplos da minha produção dos anos de "travessia do deserto", como eu classifico o meu longo (2003-2016) exílio interior, em paralelo a atividades acadêmicas que sempre mantive.
Tenho muitos outros, mas por enquanto vai este, que guarda relação tanto com os muitos artigos que publiquei neste meu livro de 2014:
Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014)
quanto com os que eu estou publicando agora, na sequência dele:
Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil, 2014-2018 (Curitiba: Appris, 2019)
Segue, portanto, uma das peças de meus "anos de chumbo" sob o lulopetismo diplomático.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de janeiro de 2019
Misérias da
diplomacia lulopetista
como a atual
política externa enfraquece o Brasil
9 de maio de 2006
Toda
política externa, como de resto qualquer política pública, fundamenta-se, como parece
óbvio, sobre valores e princípios. Ambos têm a ver com normas gerais, de
caráter constitucional, e com o chamado “interesse nacional”, tão difícil de
ser definido quanto são diversos, e por vezes divergentes, os objetivos
políticos, sociais e econômicos identificados com os diferentes grupos sociais
e movimentos políticos que compõem a sociedade nacional. Na prática, o cidadão
bem informado sabe identificar claramente onde se encontra o interesse nacional
quando confrontado a uma questão concreta, como, por exemplo, aquela relativa
aos interesses nacionais respectivos do Brasil e da Bolívia em torno da
exploração de gás naquele país.
Os
valores e princípios sobre os quais se fundamentou, historicamente, a política
externa brasileira foram sendo sedimentados ao longo de uma trajetória que se
estende de meados do século XIX, passa pelo Barão do Rio Branco, no início do
século XX, pela afirmação de autonomia na era da Guerra Fria e alcança um
período recente, quando governo e sociedade souberam construir uma “ferramenta
diplomática” adaptada às necessidades de desenvolvimento e de inserção soberana
na economia mundial.
Esses
valores e princípios estão sendo aberta e clandestinamente modificados e
deformados pela atual diplomacia que se pretende “ativa e altiva”. Trata-se, na
verdade, de diplomacia partidária e ideológica, que se distancia
significativamente das principais linhas de atuação, quando não dos valores e
princípios que sempre guiaram nossa política externa. Seus valores são
estranhos à sociedade brasileira e seus princípios são os de um grupo sectário
que pretende atrelar o país a fantasias mirabolantes há muito enterradas no
grande fracasso do socialismo.
Contrariamente
à propalada defesa da soberania e do interesse nacional — que a diplomacia partidária
falsamente pretende assegurar —, jamais se assistiu, em qualquer época, a tão
reiteradas manifestações de renúncia explícita e implícita da soberania e a
tantos desvios do interesse nacional como nos três últimos anos. A renúncia de
soberania começou, aliás, antes da inauguração do governo, quando o PT definiu,
preliminarmente e de maneira totalmente unilateral, que determinados países –
que não é preciso mencionar quais são – seriam os novos “parceiros
estratégicos” do Brasil. Independentemente de uma suposta ou real comunidade de
interesses entre os objetivos permanentes do Brasil e os desses países,
escolhidos em função do viés ideológico do PT, jamais se assistiu, nos anais da
diplomacia mundial, um governo pretensamente cioso da soberania nacional
declarar, de forma absolutamente gratuita, que tal ou qual país é seu “aliado”
em causas mundiais ou regionais. Isso é totalmente estranho a nossa tradição de
relações exteriores e certamente bizarro em termos de práticas diplomáticas
internacionais. Trata-se de uma “renúncia preventiva de soberania”.
Essa
renúncia de soberania manifestou-se concretamente, depois, em vários gestos
politicamente motivados e ideologicamente defendidos, adotados pela diplomacia
petista em total descompasso com os interesses nacionais e na linha oposta do
que foi sugerido ou defendido por empresários e exportadores. Mencione-se o
reconhecimento da China enquanto “economia de mercado”, gesto impensado e
ingênuo, assim como o tratamento leniente, quando não contrário aos interesses
das nossas indústrias, concedido às salvaguardas ilegais, arbitrárias e
unilaterais, adotadas pela Argentina contra produtos brasileiros de exportação.
Em nenhum momento o governo defendeu de modo claro e explícito os interesses
dos nossos exportadores, atacados e injustamente contidos em sua
competitividade comercial pelas ações protecionistas do governo argentino, a
mando de indústrias incapazes de conviver com as regras estabelecidas pelo
Mercosul.
A
diplomacia partidária do PT também se lançou numa furiosa campanha contra a
Alca, sob a alegação de que esse projeto de zona de livre-comércio hemisférico
colocava em risco o Mercosul e a própria economia brasileira, na verdade
rendendo-se às posições totalmente ideológicas de grupelhos antiglobalizadores
que passaram a ditar as orientações de nossa política comercial. Nunca se viu,
nos anais de nossa diplomacia e em anos e anos de negociações comerciais
multilaterais, delegações de técnicos e peritos na matéria serem constrangidas
de forma tão canhestra e intimidatória por “delegados” de movimentos como o
MST, a Via Camponesa, a Rede de Integração dos Povos e outros grupos de
militantes incorporados a essas delegações. Tais grupos, assim como setores da
própria diplomacia e mesmo do governo, mostraram o seu regojizo quando se
reconheceu que, de fato, eles tinham conseguido “implodir” a Alca.
As
consequências não tardaram: os Estados Unidos passaram a assinar acordos com
quase todos os países da América Latina, não apenas conquistando posições que
nossos negociadores foram incapazes de assegurar, como ameaçando os mercados
dos exportadores brasileiros em todos esses países. Essa atitude ideológica é
totalmente contrária aos interesses nacionais brasileiros e corre o risco de
custar caro aos nossos industriais e exportadores.
Uma
obsessão política mal orientada e mal inspirada dos responsáveis pela nossa
diplomacia também subordinou interesses concretos do nosso país à obtenção
pouco realista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU,
levando-nos a comprometer recursos que não tínhamos com a “compra”— ilusória
como depois se revelou — do apoio de países em desenvolvimento. Fomos também
levados a alinhar de forma ingênua nossas posições e demandas com países que,
por motivos diversos, enfrentavam obstáculos a esse objetivo em suas próprias
regiões, como o Japão e Índia, na Ásia e a Alemanha, na Europa. Essa obsessão
também precipitou um engajamento mal concebido na aventura haitiana: trata-se
de uma tragédia que pouco tem a ver com as tradicionais missões de paz da ONU e
está bem mais incluída na categoria da “construção de nações” ou “recuperação
de Estados falidos”, objetivos que certamente ultrapassam nossa modesta
capacitação financeira, militar e técnica.
Outra
obsessão mal pensada engajou novamente recursos humanos e materiais no
estabelecimento de um ilusório programa de “fome zero universal” que duplica
esforços já estabelecidos no âmbito de diversos órgãos da ONU – FAO, PNUD,
Programa Mundial de Alimentos, e muitos outros – e que redundou, pateticamente,
na introdução de uma nova taxa sobre passagens aéreas internacionais que
seremos dos poucos, junto com a França, a aplicar. O objetivo do PT,
originalmente, era contudo bem pior: o estabelecimento de uma taxa geral sobre
as transações financeiras internacionais cujo único resultado seria o de
encarecer um pouco mais a transferência de recursos para o próprio Brasil.
Raramente se viu tanta cegueira e irracionalidade.
No
plano regional, os equívocos e gestos mal pensados foram tantos e tão repetidos
que desfiá-los por inteiro significaria um rol imenso de bizarrices que faria
corar de vergonha o Barão do Rio Branco, se vivo estivesse. Começa pela
proclamação absolutamente indevida e anti-diplomática de uma pretendida
“liderança” brasileira na região, como se os países vizinhos estivessem
esperando essa autopromoção do Brasil a “líder natural” para saudá-la com
entusiasmo e entronizá-la no altar de uma preeminência regional “inconteste”.
Nunca se viu tanta inconsciência quanto nesse tipo de pretensão, aliás
desdobrada em atitudes de interferência nos assuntos internos de outros países,
com declarações pela imprensa dos responsáveis da diplomacia petista por
ocasião de crises políticas internas nesses países.
Acrescente-se
a isso manifestações de preferências políticas em campanhas eleitorais,
obviamente em favor de candidatos ditos “progressistas”, que partilham das
mesmas miopias ideológicas que o PT, um típico partido esquerdista
latino-americano, com sua quota tradicional, e totalmente ultrapassada, de antiamericanismo
e de anti-capitalismo. Não é preciso mencionar a vergonhosa atuação
presidencial e diplomática no caso da “nacionalização” dos recursos energéticos
da Bolívia, quando a submissão inaceitável de nossos dirigentes a interesses
econômicos estrangeiros – para não mencionar a inabilidade em face das
pretensões de um líder histriônico como Chávez – deixam de pertencer ao terreno
do ridículo para beirar os limites da traição à pátria.
Acrescente-se
que, sob a diplomacia partidária, o objetivo da integração, em primeiro lugar
no Mercosul, foi convertido de meio de modernização produtiva e de inserção
competitiva na economia internacional em objetivo exclusivo e obsessivo – como
tantos outros, aliás –, o que contaminou a agenda que vinha sendo pacientemente
construída desde os anos 1980. Em nome desse objetivo finalístico mal definido
e muito mal implementado, todas as concessões foram feitas. Invocou-se, como
pretexto, uma tão equivocada quanto canhestra “diplomacia da generosidade”, que
recomendava aos nossos importadores comprar produtos mais caros na região,
apenas para ajudar os vizinhos, em lugar de contemplar o interesse primário dos
nossos consumidores.
São
tantos os gestos infantis, tão repetidas as iniciativas equivocadas, as ações
politicamente motivadas e ideologicamente orientadas, que a diplomacia “ativa e
altiva” do governo petista merece ser rebatizada de ingênua e desastrosa.
Reverter
os efeitos dessa diplomacia partidária, que também deixa suas marcas no próprio
Itamaraty – com exemplos tão bizarros como o de uma “escola de reeducação de
diplomatas” funcionando na Secretaria-Geral –, não será tarefa fácil, pois os
equívocos já atingiram o prestígio da diplomacia brasileira no exterior.
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