Dado continuidade a esta série de trabalhos esparsos, nunca antes divulgados, vou reproduzir aqui o que eu escrevia ainda antes da campanha eleitoral de 2014, a partir de meu posto de observação nos Estados Unidos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de janeiro de 2019
Rumos
adequados à política externa brasileira na próxima década
Paulo Roberto de Almeida
Portland, Maine, 31 de maio de 2014
Quais
os rumos mais adequados à política externa brasileira na próxima década? Quando alguém se
questiona sobre “rumos adequados” para a política externa, a noção implícita,
ou mesmo a suposição direta, é a de que a política externa que foi seguida nos
últimos dez anos não foi exatamente adequada, ou pelo menos não tanto quanto
poderia, ou deveria ter sido. Pode ser que esta seja apenas uma suspeita sem
fundamento, e que, ao contrário do que possam pensar espíritos malévolos e
indivíduos mal-intencionados, a política externa que está aí, esta mesma que
esteve e está conosco pelos últimos dez anos e meio, foi a maior das maravilhas
do governo do nunca antes. De fato, como está no título do meu livro mais
recente, nunca antes na diplomacia brasileira tivemos uma política externa como
essa.
Mas também pode ser que,
ao falar de rumos adequados para a política externa, a intenção seja essa
mesma, ou seja: colocar em dúvida os propósitos, as intenções, os resultados, e
quem sabe até os fundamentos da diplomacia do nunca antes. De fato ocorreu no
Brasil, nos últimos dez anos, uma troca da diplomacia do Itamaraty, nossa velha
conhecida, pela política externa partidária dos companheiros das boas causas,
ainda que estas sejam perdidas ou simplesmente anacrônicas. Por isso mesmo,
permito-me formular nos parágrafos seguintes alguns argumentos que poderiam
sustentar uma hipotética política externa alternativa à dos companheiros, uma
que tenha rumos adequados ao país, já que a que está ai trouxe fundadas
desconfianças de que não serve a um país como o Brasil, que pode ser várias
coisas, menos certamente bolivariano.
Caberia então, antes de
falar do que poderia ser adequado para a política externa brasileira na próxima
década, começar pela simples identificação do que não foi adequado nessa política, durante a última década. A partir
daí talvez seja possível corrigir alguns dos erros, os desvios, os muitos
equívocos, as deformações, enfim tudo aquilo que, antes dos companheiros
chegarem ao poder, nunca tinha sido feito, mas que ele fizeram, de modo até
despudorado, como se fosse essa mesma a intenção, ou seja, perpetrar todas
essas iniciativas inadequadas, o que nos permite justamente estar agora
discutindo, numa espécie de balanço, os seus rumos inadequados, num arremedo de
“sessão descarrego” contra os maus espíritos, como se faz com alguns dos santos
mais conhecidos do candomblé.
Se poderia começar, por
exemplo, afastando qualquer retórica grandiloquente, dessas pelas quais se
proclama, a altos brados, que se está defendendo a soberania nacional, lutando
contra uma fantasmagórica dominação estrangeira, contra a submissão ao FMI, aos
especuladores de Wall Street, aos neoliberais de Washington e tantas outras
bobagens do gênero. Quem se enrola na bandeira da soberania, para enfrentar
moinhos imaginários, é porque tem um sério problema psicológico, e não tem, no
fundo, muita certeza de estar de fato defendendo o interesse nacional. O mais
provável é que continue em campanha eleitoral e fica escondendo sua falta de
imaginação com invectivas contra supostos inimigos da pátria, o que é, na
verdade, uma insegurança tremenda sobre o que fazer, de fato, para defender os
interesses nacionais. Ainda recentemente, um desses iluminados do partido da
soberania nacional voltou a agitar o fantasma de uma volta ao passado,
referindo-se continuamente ao neoliberalismo, como se um país dirigista e
estatizante como o Brasil tenha sido, algum dia, um país liberal, e que não se
sabe bem quais traidores da pátria andaram por aqui praticando as artes sempre
perversas do neoliberalismo. Que falta de imaginação, ou que falta do que
falar, justo do nosso velho fantasma do neoliberalismo. Devia ser numa
assembleia da UNE, certamente.
Vamos ser diretos: a
defensa dos interesses nacionais se faz com uma avaliação isenta, tecnicamente
fundamentada, economicamente embasada, da agenda que cabe implementar na frente
externa, sem arroubos, sem retórica vazia, sem grandes golpes de propaganda
enganosa. Durante os últimos dez ou doze anos, os companheiros no poder fizeram
exatamente isso: primeiro ficaram deblaterando contra quem os precedeu,
inventando uma tal de herança maldita que só existiu por profunda desonestidade
sub-intelectual, uma vez que a deterioração da situação econômica do Brasil,
durante os meses da campanha eleitoral de 2002 só existiu por que os mercados
temiam, justamente, os possíveis efeitos de uma política econômica
esquizofrênica que os aprendizes de feitiçarias econômicas do partido dos
companheiros tinham se encarregado de propagar durante os meses anteriores ao
pleito presidencial.
Uma vez no poder, eles
foram logo se empenhando na implosão da Alca, o projeto americano de uma zona
de livre comércio hemisférica, não porque tivessem conduzido brilhantes estudos
técnicos de simulação econômica sobre os efeitos de um tal acordo para o
Brasil, mas apenas porque ideologicamente eram contra tudo o que pudesse provir
do gigante do norte. Em seu lugar eles esperavam maravilhas de um hipotético
acordo entre a União Europeia e o Mercosul, ou até chegaram a propor um acordo
de livre comércio entre o bloco do Cone Sul e a China, como se esta fosse a
solução para todos os problemas externos do Brasil e do Mercosul. Deve-se
reconhecer que eles conseguiram o seu intento os companheiros, não exatamente o
livre comércio com a União Europeia – uma ilusão de ingênuos e de amadores – e
menos ainda tal tipo de arranjo com a China, mas obtiveram, de fato, a implosão
da Alca, transformada em dragão da maldade imperialista.
Os companheiros também
ficaram iludidos pela possibilidade de o Brasil ser admitido como membro
permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidos, uma verdadeira obsessão
para alguns, numa outra suprema demonstração de irrealismo e de total falta de
prioridades para a agenda externa do Brasil. Em nome desse objetivo, o supremo
mandatário saiu pelo mundo perdoando dívidas bilaterais de ditadores do
petróleo e prometendo apoio político para os mesmos inimigos das liberdades e
dos direitos humanos. Aliás, fazer amizade com ditaduras parece que se converteu
numa mania dos companheiros, sempre dispostos a tratar com complacência os
piores perpetradores de atentados aos direitos humanos e valores democráticos
no mundo. Antigamente, o Brasil apenas se abstinha quando das discussões e
votos a respeito dos casos mais politizados nessas matérias nas instâncias da
ONU: a partir de 2003, o país passou a votar ativamente com os violadores e
inimigos da democracia ao redor do mundo. Não se está aqui inventando nada:
basta conferir os votos envolvendo alguns desses países. Um embaixador político
companheiro numa dessas ditaduras até chegou a defender o fuzilamento de
simples balseiros que tentavam fugir da ilha-prisão da qual os companheiros
gostam tanto (a ponto de financiá-la fartamente nos dias que correm).
Um outro comportamento
inadequado do ponto de vista dos verdadeiros interesses do Brasil, sob qualquer
critério que se julgue, foi o abandono da agenda comercial do Mercosul, em
favor de uma agenda política que poucos progressos trouxe ao bloco; ao
contrário, fê-lo retroceder tremendamente nos últimos dez anos. Dizer que o
Mercosul não é só econômico ou não é só comercial, e que ele deve também
avançar nos terrenos político ou social, não constitui apenas uma impropriedade
semântica, mas representa um crime contra o bloco. O Mercosul é, antes de mais
nada, um tratado de integração comercial, e se fundamenta, basicamente, na
abertura econômica recíproca, na liberalização comercial, e na plena integração
produtiva do bloco ao resto do mundo, ponto. É isso que está escrito em seu
tratado constitutivo e é essa agenda pela qual os países deveriam se bater em
suas políticas comercial e industrial. Nada disso se fez na lula-década, ao
contrário. Durante todo esse tempo, o bloco só recuou na liberalização interna
e na abertura externa, voltando a ser o avestruz temeroso que nossos países
eram nos tempos pouco gloriosos do protecionismo comercial e da introversão
econômica.
Finalmente, os rumos
sensatos da diplomacia profissional foram bastante afetados pelo personalismo
presidencial, e tudo passou a girar em torno da figura retumbante do guia
genial dos povos, o grande líder das nações oprimidas pelo imperialismo, o
homem que iria comandar uma cruzada contra o unilateralismo arrogante dos
países hegemônicos, até mudar a relação de forças no mundo e inaugurar uma nova
geografia do comércio internacional. Em nome desses objetivos grandiloquentes,
várias iniciativas de grande envergadura foram tomadas, para as quais se
mobilizaram mundos e fundos, e recursos humanos em abundância, sempre com o
objetivo de exaltar a figura do chefe e seus discursos de sindicalista
universal. Tudo começou pela tentativa de se implantar um Fome Zero Universal,
quando sequer o brasileiro deu certo, e foi logo abandonado e substituído pela
assemblagem marota de todos os programas sociais existentes desde o governo
anterior, apenas rotulando-os com um novo nome e aumentando o poder de fogo do
curral eleitoral então criado. Sinceramente, não sei se deveria ser motivo de
orgulho nacional o fato de ter mais de um quinto da população do país numa
lista oficial de assistidos por esmolas do governo, como se isso fosse um sinal
de normalidade no quadro da comunidade internacional.
Bem, chega de inadequações
e de equívocos do passado. Cabe agora refletir sobre o que significa ter uma
política externa adequada para um país que pretende se inserir plenamente nos
circuitos da economia globalizada, não retrair-se defensivamente apenas porque
o Brasil perde competitividade, e se mostra incapaz de concorrer com outros
parceiros comerciais por não lograr ganhos de produtividade que dependem de um
diagnóstico correto dos problemas reais e uma prescrição conforme as
necessidades sentidas. A primeira condição para superar o estado lastimável em
que se encontra o Brasil atualmente é justamente saber traçar uma avaliação
adequada dos desafios a serem enfrentados e colocar-se corajosamente na
condição de propositor de novas medidas proativas, não ficar atribuindo ao
ambiente externo as razões de seu baixo desempenho no contexto internacional.
Quais são os principais
problemas enfrentados atualmente pelo Brasil? Eles estão, na frente interna, no
baixo crescimento, no recrudescimento da inflação, na infraestrutura medíocre,
na nossa insuficiente produtividade, que por sua vez se reflete, no plano
externo, na perda de competitividade da economia brasileira, na chamada
reprimarização da pauta exportadora – que diminuiu bastante em sua composição –
e na nossa dependência de alguns grandes compradores dos produtos primários de
exportação. O Brasil se tornou hoje bem mais dependente da China do que ele
jamais o foi, no passado, dos Estados Unidos, país com o qual sempre mantivemos
uma interface bastante diversificada, feita das exportações as mais variadas,
inclusive manufaturados, e que sempre nos abasteceu de know-how, tecnologia,
financiamentos, cooperação educacional, e também filmes de Hollywood e,
ultimamente, iPhones e iPads.
Aparentemente, mais até do
que esses problemas de ordem econômica, o Brasil parece ter perdido uma mercadoria
ainda preciosa na frente internacional, uma coisa que se chama credibilidade. É
isso que dá ficar apoiando ditaduras comunistas, violadores dos direitos
humanos, agressores dos valores democráticos e outros meliantes do mesmo tipo.
Vejam bem: temos consagrados na nossa Constituição alguns princípios que nos
são muito caros, pois lutamos muito, no passado, para assegurá-los na ordem
política interna e na nossa expressão externa: o pleno respeito dos direitos
humanos, dos valores democráticos, a condenação do terrorismo e a não
intervenção nos assuntos internos de outros países. E o que aconteceu nos
últimos dez ou doze anos? Segundo um “wikileaks” do Itamaraty, recentemente
divulgado pelo grupo Anonymous,
pedimos aos Estados Unidos que retirem Cuba da lista dos países que patrocinam
terroristas. Parece que somos aliados, justamente, de alguns dos piores regimes
do planeta que violam esses princípios e valores constantemente, e ainda hoje o
fazemos, numa superação da antiga hipocrisia – que parece ser normal quando
alguns desses temas são politizados na agenda internacional – em favor de um
apoio direto e solidário a essas ditaduras.
Mais grave ainda: nossa
Constituição consagra o princípio de que qualquer acordo gravoso para o país
tem de ser necessariamente aprovado pelo Congresso, para ser plenamente válido,
depois de formalmente ratificado. Não é isso que tem ocorrido nos últimos
tempos. Um outro princípio relevante da Constituição, que é a necessária
aprovação do Senado para operações financeiras externas, também tem sido
descurado em diversas ocasiões, por acaso envolvendo algumas das mesmas
ditaduras. Como é possível que empréstimos de órgãos públicos possam ser
classificados como secretos, e se eximirem, assim, do necessário escrutínio do
Congresso? Não se trata nem mais de só fazer favores a ditaduras corruptas, mas
de um desrespeito a todo o povo brasileiro – que alimenta esses empréstimos com
os seus impostos – bem como ao próprio poder legislativo, que deveria monitorar
as condições sob as quais são feitas esses generosos empréstimos a regimes
muito pouco frequentáveis nesse nosso planetinha redondo.
A credibilidade de nossa
política externa também tem sido posta à prova nesses episódios de
inadimplência negociadora: o país, que pertence a um bloco que outrora
pretendia ser um mercado comum, não consegue montar uma oferta exportadora, e
concessões nas importações, para as negociações entre o Mercosul e a União
Europeia. O bloco tampouco consegue dar início a novos processos negociadores
com parceiros promissores, e isso quando esses mesmos parceiros têm assinado
acordos de livre comércio ou de liberalização comercial com vizinhos mais
ousados, ou talvez mais inteligentes e mais abertos do que nós. Por que é que o
Brasil insiste nessa política de avestruz, se fechando ao comércio
internacional, atribuindo a outros as fontes de nossos velhos problemas
internos e pretendendo voltar a construir uma economia apenas baseada no
mercado interno, quando sabemos que esse tempo já passou? Será que os companheiros
no poder pretender voltar ao stalinismo industrial praticado em outras eras de
nosso itinerário econômico?
Quando é, finalmente, que
vamos parar de sustentar ditaduras miseráveis, e regimes inviáveis, e nos
relacionarmos normalmente com as maiores democracias de mercado, atendendo de
fato ao que nos prescreve a Constituição? Quando é que vamos deixar a
introversão de lado e nos integrarmos plenamente nos circuitos da globalização
contemporânea, sem mais esses pruridos defensivos que só tem atuado para diminuir,
cada vez mais, nossa participação no comércio internacional? Quando é, por fim,
que vamos deixar de lado essa diplomacia partidária, extremamente enviesada do
ponto de vista dos interesses nacionais, e voltar às boas tradições do
Itamaraty, baseadas numa análise isenta e objetiva das realidades externas, num
tratamento profissional, tecnicamente embasado, dos itens da agenda
internacional, e numa implementação consensual de questões que deveriam nos
integrar cada vez mais ao mundo como ele, não colocar-nos à margem, e por vias
obscuras, da grande integração global que se processa sob nossos olhos mas com
pouca participação do Brasil?
Está na hora de retificar
os rumos e de realmente adotar uma política externa que seja consentânea,
adequada e condizente com o que o Brasil passou a ser depois do Plano Real: uma
democracia, ainda que com muitas falhas, fundada numa economia de mercado, e
que deve procurar defender sua estabilidade interna e sua plena integração ao
mundo contemporâneo. O Itamaraty sabe como fazer, sempre fez, mas seria preciso
deixá-lo fazer.
Portland, Maine, 31 de maio de 2014
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