PROGRESSO E PODER
Notas sobre os
Condicionantes Históricos
do Desenvolvimento
Social
Paulo Roberto
de Almeida
Genebra,
16/05/1988
Todas
as sociedades organizam-se em relação mais ou menos estreita com o seu meio
ambiente, mas é nas chamadas sociedades primitivas que a "ditadura da
natureza" é mais marcada. Nas sociedades relativamente complexas, isto é,
dotadas de meios técnicos suscetíveis de transformar o meio ambiente, a
emancipação do Homem vis-à-vis a Natureza acarreta igualmente uma divisão
sexual e social do trabalho, base ulterior da divisão da sociedade em classes.
Todas
as sociedades históricas são, ou foram, sociedades divididas em classes
sociais, ou seja, sociedades organizadas com base em relações de dominação
política e de exploração do trabalho produtivo. Não há exemplo, na antropologia
ou na história comparadas, de sociedades históricas, isto é, dotadas da mola
propulsora do Progresso, que não tenham sido, ao mesmo tempo, sociedades
desiguais: nessa sociedades uma determinada categoria de pessoas detém a capacidade
de comandar outras pessoas e delas extrair recursos excedentes em termos de
produção econômica.
A
apropriação de excedentes econômicos (exploração) produzidos pela classe
trabalhadora e a imposição de uma forma qualquer de comando autoritário (dominação)
sobre o conjunto da população parecem obedecer a uma mesma lógica social: a
monopolização, por parte de uma categoria de pessoas, de determinados bens
raros, nesse caso representados pela propriedade e pelo poder. A concentração e
a centralização desses bens raros nas mãos de uma elite dominante deve ser em
seguida legitimada por algum tipo de racionalização, já que
eles não podem ser mantidos pelo emprego constante da violência
institucionalizada. Uma ideologia da dominação tende assim a acompanhar todas
as situações de desigualdade estrutural.
Nas
sociedades de classe modernas e contemporâneas, o Progresso assume
principalmente a forma do desenvolvimento econômico, cuja característica
essencial é a capacidade da sociedade de produzir inovações tecnológicas. Nas
civilizações materiais organizadas com base na propriedade privada e no livre
comércio (mercado), o desenvolvimento contínuo das forças produtivas deu origem
a um verdadeiro modo de produção inventivo, transformando o Progresso em rationale da vida econômica e social.
Embora
o Progresso nem sempre seja qualitativamente aferível, ele pode ser
quantitativamente mensurável, o que significa uma maior disponibilidade de bens
e serviços anteriormente raros; ele se traduz, igualmente, numa maior capacidade
em exercer um controle ampliado sobre o meio ambiente societal. O modo de
produção é tanto mais inventivo quanto ele conseguir transformar um maior
número de bens raros em produtos e serviços de consumo corrente: sua
funcionalidade social, em termos históricos, está precisamente nessa capacidade
em atribuir um valor de troca a uma gama relativamente ampla de necessidades
humanas.
Ao
disseminar mercadorias e transformar ecosistemas, o Progresso cria
desigualdades econômicas e sociais suplementares àquelas ordinariamente
existentes, mas que são em grande parte o resultado de uma maior divisão social
do trabalho e de uma crescente especialização de funções produtivas. O
Progresso cria igualmente desequilíbrios sociais e regionais, que se traduzem
não apenas em termos de obsolescência de meios de produção e de subutilização
de recursos humanos, mas também de marginalização de regiões inteiras e sua
subordinação econômica a centros mais desenvolvidos.
Nesse
sentido, as relações desiguais de apropriação de bens raros não ocorrem apenas
num âmbito puramente inter-classista ou intra-societal, mas prevalecem
igualmente num nível inter-societal, confrontando formações nacionais
desigualmente dotadas em recursos e diversamente inseridas num mesmo sistema
global. A exploração e a dominação não têm, assim, um caráter nacional
exclusivo, mas a aplicação desses dois princípios a nível transnacional
confunde-se, em muitos casos, com as relações desiguais que prevalecem
internamente entre classes sociais.
A
racionalização conceitual do Progresso histórico e social, ao coincidir no
tempo com a formação e o desenvolvimento dos Estados-nacionais (séculos
XVI-XVIII), impôs, a estes últimos, encargos e responsabilidades muito precisas
em relação ao desenvolvimento concreto de suas sociedades respectivas. O estado
do Progresso passou a exigir, cada vez mais, o progresso do Estado, tendência
apenas minimizada nas formações sociais que atravessaram um processo
relativamente completo de Nation making antes de ingressarem numa fase de State
building.
Na
época do Iluminismo, foram criadas legitimações doutrinárias e filosóficas para
a idéia do Progresso. Essas formulações ideológicas consubstanciaram-se, em
primeiro lugar, no pensamento liberal clássico, de que são exemplos os conceitos
de "mão invisível", de "vantagens comparativas" ou de
"laissez-faire " no plano econômico. A força doutrinária do
pensamento liberal contaminou também as elites dominantes de países eles mesmos
submetidos a alguma forma de exploração e de dominação, a tal ponto que a
expropriação direta de recursos (espoliação colonial) ou a apropriação indireta
de trabalho materializado (intercâmbio desigual) puderam ser justificadas pela
sua funcionalidade em relação ao princípio do progresso material das sociedades
envolvidas. Mesmo um igualitarista radical como Marx viu na instituição
colonial um grande fator de progresso histórico de sociedades mais atrasadas.
O
debate contemporâneo sobre as origens do atraso de sociedades outrora
colonizadas tendeu a ver na exploração e na dominação dessas sociedades uma das
molas propulsoras do Progresso nas formações dominantes. Em que pese a
contribuição adicional desses fatores, ao lado da exportação de excedentes
demográficos, para o avanço material das sociedades mais poderosas, as
alavancas mais significativas no processo de desenvolvimento econômico e social
dessas sociedades foram, e são, de ordem propriamente interna. Essas alavancas,
que constituem condições prévias ao desenvolvimento sustentado, derivam de um
conjunto de relações sociais condizentes com o modo inventivo de produção e
situam-se, por assim dizer, na própria raiz da organização social da produção
nessas sociedades. Inovação tecnológica e poder econômico constituem requisitos
necessários ao - e não efeitos do -
exercício da vontade imperial. A espoliação colonial e a dominação
mundial não podem ser implementadas sem a capacitação intrínseca do
pretendente, o que significa a existência de uma estrutura social e de recursos
materiais e humanos compatíveis com a voluntas
dominadora.
A
única forma de subtrair-se à exploração e à dominação de outrem, tanto no plano
nacional como no das relações inter-societais, parece assim situar-se na
auto-capacitação tecnológica e humana, o que vale dizer, dotar-se de seu próprio
modo inventivo de produção, base material e fonte primária de poder econômico e
político. A soberania, seja a individual ou a coletiva, deriva da faculdade de
organizar a exploração e a dominação em bases propriamente autônomas, ou seja,
criar o seu próprio fulcro de poder social. Em outros termos, a internalização
dos efeitos sociais e econômicos da exploração e da dominação só pode ser
obtida por meio da conversão de uma formação social em centro de seu próprio
sistema nacional, dotando esta última de sua respectiva periferia.
A
experiência histórica indica que o Progresso, em suas diversas formas
materiais, emana sempre dos diversos centros de poder econômico, e a eles
retorna indefectivelmente após ter cumprido sua missão histórica de amealhar
recursos adicionais para a sociedade originalmente dominante. Não parece haver,
pelo menos no horizonte histórico do sistema inter-estatal contemporâneo,
alternativas válidas de afirmação nacional: as sociedades ou nações que não
conseguirem transformar a exploração e a dominação em alavancas autônomas do
seu próprio progresso econômico estão condenadas (num sentido propriamente
hegeliano) a se tornarem meros objetos da História e não em seus atores.
O
discurso realista, de que estas notas constituem um mero exercício, encontra
sérias objeções morais a nível da praxis política - num contexto interno ou
externo - razão pela qual ele deve ser freado por princípios éticos suscetíveis
de serem defendidos por lideranças político-partidárias e estadistas
responsáveis. Não se deve esquecer porém de que ele constitui o fundamento
último e a razão secreta da atuação da maior parte dos Estados e elites
dominantes em todas as épocas históricas.
Paulo
Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais e Professor da UnB.
[Genebra, 16.05.88]
Relação
de Trabalhos nº 160.
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