Depois de ter terminado e apresentado minha tese do Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, em 1997, fiz um grande resumo de seu conteúdo, para divulgação e preparação para edição.
A própria Funag iria publicar essa tese, mas eu não concordei, pois eu tinha muito mais material de pesquisa do que foi possível apresentar na tese, por limitações do exercício.
Preferi esperar mais um pouco até que o trabalho pudesse ser editado de forma completa.
Hoje, a tese e suas adições posteriores, está inteiramente disponível em 3a edição da Funag, como informado abaixo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de janeiro de 2019
A diplomacia econômica
do Brasil em perspectiva histórica
Paulo Roberto de Almeida
1 de novembro de 1997
Tese do Curso de Altos
Estudos do Instituto Rio Branco
“Formação
da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no
Império,
Brasília, 2 junho 1997, 468 p.
Subsídios para matéria informativa
de caráter geral.
Tese
republicada em 3a. edição:
A
diplomacia brasileira é conhecida pela excelência de seus quadros e pela
notável constância de suas posições políticas. Mas, como terá sido seu
desempenho de longo prazo num setor que toca diretamente aos interesses maiores
da Nação: o desempenho na frente econômica? Na terminologia da economia
política, as relações econômicas internacionais do Brasil passam, entre o
início do século XIX e meados deste, de uma diplomacia
do primário, comprometida com a promoção de alguns poucos produtos de base
de sua pauta de exportação, para a crescente afirmação de uma diplomacia do secundário, voltada
essencialmente para a grande tarefa da industrialização substitutiva e da
capacitação tecnológica nacionais, antes de adentrar, no período recente, na
diversidade de temas e de interesses econômicos que poderão conformar, no
presente e no futuro, uma diplomacia do
terciário, isto é, da era dos
serviços, a qual parece caracterizar o mundo atual e o sistema contemporâneo de
relações econômicas internacionais.
Trabalho
de pesquisa histórica
Num
ensaio de “interpretação econômica” da história diplomática brasileira, tentei
traçar um amplo itinerário das etapas formadoras da diplomacia econômica no
Brasil, retraçando o itinerário das relações econômicas internacionais da Nação
durante o século XIX, desde a transferência da Corte em 1808 até o final do
período monárquico. Ainda estou dando continuidade a pesquisas de arquivo,
abordando agora o desenvolvimento do desempenho diplomático durante a era
republicana.
Este
ensaio histórico, apropriadamente intitulado “Formação da Diplomacia Econômica
no Brasil”, analisa em detalhe as primeiras etapas da diplomacia econômica
brasileira em áreas selecionadas: os tratados de comércio e a política
tarifária, o constante recurso aos empréstimos externos, o ingresso de
investimentos estrangeiros diretos, o contencioso com a Grã-Bretanha sobre o
tráfico escravo e os problemas encontrados pelo Estado monárquico para garantir
um fluxo regular de imigrantes livres (em face da política dos fazendeiros de
manutenção do trabalho escravo ou da simples “importação de braços para a
lavoura”, ainda que colonos europeus), bem como a precoce presença do Brasil em
incipientes foros “multilaterais” (União Geral dos Correios, União Telegráfica
Universal e União de Paris sobre propriedade industrial, no último terço do
século XIX).
O
trabalho não constitui, absolutamente, uma versão “economicista” da política
externa, não tenta construir uma “concepção materialista” da história
diplomática do Brasil, nem acredita que o itinerário das relações exteriores do
País possa ser descrito unicamente com base em nas relações econômicas
internacionais ou que a política internacional do Estado monárquico
constituísse uma espécie de sobredeterminação da ordem econômica mundial na
qual ela estaria inserida. Mas, acredito, da mesma forma como um eminente
historiador não marxista, Pierre Chaunu, que “tudo parte da história
econômica”.
Com
efeito, mesmo ostentando uma “opção preferencial” pela história econômica da
diplomacia brasileira, a tese chama a atenção contra qualquer determinismo
econômico ou desvio historiográfico: se a economia é inegavelmente o mais
importante fator na vida de uma nação, os eventos, a escolha das políticas
adotadas em casos concretos, as motivações e orientações gerais das relações
internacionais do Brasil, bem como os traços peculiares de sua política externa
“efetiva” não foram, majoritariamente ou predominantemente, determinados ou
moldados pela base material ou pelas relações econômicas internacionais do
País. As grandes questões da política externa brasileira, inclusive e
principalmente as de política econômica externa, sempre foram políticas e, como tal, receberam um
tratamento essencialmente político.
Aspectos
originais da diplomacia econômica
Esse
ensaio histórico sobre a formação da diplomacia econômica no Brasil, elaborado
por um profissional da diplomacia, trata, assim, de aspectos pouco abordados
nos velhos manuais de história diplomática (Delgado de Carvalho, Hélio Vianna)
ou mesmo nos clássicos trabalhos de história econômica (Caio Prado, Celso
Furtado): a diplomacia comercial, a diplomacia financeira (inclusive a do
Brasil enquanto credor dos países platinos), a diplomacia dos investimentos
(aqui incluído o problema da tecnologia proprietária, isto é, das patentes
industriais), aquilo que eufemisticamente se poderia chamar de “diplomacia da
mão-de-obra” (continuidade, enquanto tanto se pôde fazer, do tráfico escravo, e
atração de imigrantes europeus), bem como a emergente diplomacia “multilateral”
(a exemplo daquelas primeiras “uniões” técnicas dedicadas aos correios, à
telegrafia e à patentes). Um último capítulo de seu trabalho, que mereceria
certamente ser acolhido por uma editora comercial para mais ampla divulgação,
trata da própria conformação institucional do “instrumento diplomático”
brasileiro no século XIX.
Todos
esse campos oferecem interesse ao diplomata ou observador contemporâneo que
deseje colocar em perspectiva histórica questões ainda relevantes do
relacionamento econômico externo do País. Não é preciso, por exemplo, sublinhar
a importância continuada, e mesmo crucial, da diplomacia comercial e financeira
na história do desenvolvimento brasileiro, bem como para uma exitosa inserção
econômica internacional do Brasil contemporâneo. Da mesma forma, ninguém
disputaria o papel estratégico desempenhado pelos investimentos estrangeiros e
por aportes de tecnologia avançada no aggiornamento
da economia nacional. A diplomacia da força-de-trabalho constitui o que se
chamaria atualmente de “política de recursos humanos”: se hoje o Brasil deixou
de ser o grande “importador” de imigrantes que foi até meados deste século —
tornando-se, ao contrário, um “exportador” moderado de mão-de-obra — ele ainda
necessita do concurso do trabalho especializado vindo de centros mais
avançados, assim como ele envia, regularmente, estudantes e técnicos para
formação complementar no exterior.
No que
se refere, por sua vez, à diplomacia multilateral, parece óbvio que, em sua
vertente econômica, ela vem constituindo-se no campo de trabalho por excelência
de uma política externa que deve operar cada vez mais nos limites,
condicionalidades e desafios dos processos de globalização e de regionalização:
se a política externa bilateral ainda não esgotou suas possibilidades de
atuação, ela já não mais configura — salvo as exceções de praxe — o eixo
preferencial ou exclusivo da atuação diplomática do Brasil no plano global e
mesmo regional.
Quais
são as principais contribuições desse trabalho para o estudo da história
diplomática brasileira? Trata-se, presumivelmente, da primeira pesquisa
sistemática, relativamente completa, sobre o conjunto das relações econômicas
internacionais do Brasil no século XIX, apresentando, como tal, os principais
problemas constitutivos de uma diplomacia econômica ainda incipiente. O
trabalho discute as implicações dos problemas selecionados para análise — no
campo do comércio exterior, das finanças, dos investimentos, da mão-de-obra e
das organizações emergentes no campo técnico-econômico — para a política
externa brasileira e avalia como a diplomacia atuou nessas questões ao longo do
período monárquico. Finalmente, ele também constata o impacto dessas
experiências iniciais — algumas delas podendo ser consideradas pioneiras no
plano internacional — para a diplomacia e a política externa brasileira neste
século, detectando linhas de continuidade ou de ruptura.
O
trabalho de análise se dá através de uma visão de largo prazo e no quadro da
ordem econômica internacional do século XIX, inclusive no que se refere ao
contexto latino-americano, que pode servir de elemento comparativo no âmbito do
sistema econômico emergente da segunda revolução industrial. Essa visão foi
contruída por meio da leitura sistemática das fontes relevantes para esse
estudo, a saber, os relatórios da Repartição dos Negócios Estrangeiros e as
fontes primárias disponíveis no Arquivo Histórico Diplomático (no velho
Itamaraty do Rio de Janeiro). Mas, o trabalho também compila ou constrói
algumas dezenas de tabelas estatísticas, muitas delas a partir de fontes
dispersas, coloca em certos casos a informação quantitativa em perspectiva
histórica (em valores atualizados, por exemplo) ou comparativa (com países da
região ou mesmo “desenvolvidos”), traça alguns quadros analíticos sequenciais
(sobre os principais atos econômicos internacionais, por exemplo), unifica
informações dispersas na literatura (sobre as primeiras organizações econômicas
internacionais) e introduz o tratamento de algumas questões geralmente
descuradas nesse gênero de literatura (como a questão das patentes e do sistema
inventivo no século XIX).
No que
se refere à clássica dicotomia historiográfica entre ruptura e continuidade no
processo histórico, o trabalho apresenta ensinamentos sobre a notável
preservação das linhas de atuação política do Estado brasileiro, tal como
demonstrado pela vertente da diplomacia econômica no século e meio de vida
independente desde o final do Primeiro Império. Dentre as mais importantes
lições a serem retidas pelos historiadores estão, provavelmente, a aguda
consciência, por parte dos diplomatas profissionais, do atraso absoluto e
relativo do País no contexto da ordem econômica internacional e, de forma
conseqüente, a incessante busca de instrumentos operacionais e de alavancas
materiais, alguns deles de natureza diplomática, para impulsionar o progresso
da Nação com a plena preservação da soberania política.
O
discurso diplomático talvez pudesse ser classificado como “desenvolvimentista” avant la lettre, se a noção não fosse
anacrônica no contexto do século XIX; persiste, contudo, e como tal emerge das
páginas dos Relatórios e dos ofícios de um passado imperial hoje distante, uma
espécie de consciência “embrionária” sobre a defasagem de “civilização”, em
relação ao modelo europeu, a ser colmatada pela Nação brasileira. A clara noção
de que o Estado é a força unificadora de um projeto nacional que nunca existiu
de forma clara no seio da assim chamada sociedade civil é o outro elemento que
marcou, desde o século passado, a atuação da diplomacia econômica brasileira:
foi a burocracia pública enquanto tal — aristocrática, oligárquica ou
tecnocrática segundo as épocas — que marcou e impulsionou a presença do Brasil
nos mais diversos foros internacionais, e não necessariamente uma comunidade de
“homens de negócios”, uma “classe política” dotada de qualquer tipo de vocação
“weberiana” ou ainda a presença eventual de pretensos estadistas
“excepcionais”, num e noutro século, aliás inexistentes, à exceção do
interregno “bismarckiano” protagonizado por um ditador positivista (Vargas).
Foi a própria corporação de homens públicos extraídos de setores das elites que
alimentou e deu substância à atuação do Estado no plano do desenvolvimento
econômico e no da afirmação externa da Nação.
A
diplomacia econômica do século XIX
As especificidades do modo de inserção econômica
internacional do Brasil no século XIX, os processos negociadores e o
relacionamento econômico externo do País foram amplamente ilustrados pelos
casos de diplomacia econômica analisados neste ensaio histórico. As principais
características da estrutura do relacionamento econômico externo durante o
Império foram assim sumarizadas:
a) uma política comercial “instintiva”, mais empírica do que
doutrinal, marcada por uma “diplomacia evolutiva”, desde o livre-comércio
obrigatório, encontrado em sua “pia batismal”, a uma espécie de protecionismo
oportunista ou ocasional, menos motivado por preocupações industrializantes do
que de fato impulsionado pela precariedade da base fiscal do governo;
b) na área financeira externa, uma “diplomacia dos
empréstimos” que se desenvolveu ao longo de todo o período, derivada em grande
medida da irresponsabilidade do Estado na frente orçamentária, com a
dependência consequente de capitais estrangeiros; a “diplomacia dos créditos
externos” é, por sua vez, excessivamente restrita, em termos geográficos
(apenas países platinos) e em volume de recursos mobilizados, para justificar
sua inscrição como categoria específica da diplomacia econômica do Brasil;
c) uma dupla “diplomacia da mão-de-obra”, resultante da atestada
incapacidade das elites em reestruturar radicalmente a organização social da
produção, e que combinou tergiversações na questão do tráfico escravo e uma
tímida política de atração de colonos europeus;
d) a prática empírica de uma “diplomacia dos investimentos”,
refletida no atento acompanhamento dos progressos tecnológicos em curso na
Europa e nos Estados Unidos e numa prática ativa de atração de capitais
produtivos e de novos inventos para o País; ela é, no entanto, mais reativa do
que pró-ativa;
e) uma estrutura funcional-burocrática bastante eficiente na
defesa de seus interesses econômicos externos, com uma profissionalização
precoce do pessoal diplomático e um processo decisório amplamente interativo
com os interesses da elite dirigente, por força do regime parlamentarista em
vigor e da presença constante, aliás exclusiva, de representantes da classe
política na chefia da Secretaria de Estado;
f) a busca, finalmente, de uma forte presença diplomática em
todos os países importantes e em foros internacionais relevantes, de molde a
colocar o Brasil no mesmo plano das demais “potências” do concerto
internacional, conformando um exemplo de precoce diplomacia do multilateralismo
econômico, certamente singular na periferia.
Mas como explicar, por exemplo, que o Brasil tenha se
antecipado a muitos outros países “avançados” da Europa e da América do Norte,
em todo caso bem mais industrializados do que ele, na assinatura de convênios
constitutivos de alguns foros relevantes da modernidade capitalista: uniões
telegráfica e postal, consórcios para a construção de cabos submarinos,
organizações de defesa da propriedade intelectual? Sua estrutura econômica e
social era efetivamente atrasada, mas o fato é que sua diplomacia econômica —
ou sua diplomacia tout court — era extraordinariamente avançada para os
padrões da época, tanto do ponto de vista conceitual, como em termos de
participação e de representação.
Uma
diplomacia “fora do lugar”?
Teria ocorrido, no terreno da diplomacia econômica, e no da
política externa de modo geral, uma espécie de reprodução daquelas “idéias fora
do lugar” que a crítica literária e a sociologia política já detectaram em
relação à experiência brasileira no campo cultural e político? À primeira
vista, a analogia poderia parecer impertinente, mas não se poderia desprezar a
hipótese, na medida em que a sociedade brasileira conformava, no século XIX, um
exemplo raro, pelo menos no contexto dos demais países saídos da colonização
ibérica, de institucionalismo avançado — consagrado no liberalismo
parlamentarista — que se encontrava imerso numa estrutura social extremamente
desigual e intrinsecamente perversa do ponto de vista dos direitos humanos e
dos princípios da cidadania, pois que baseada no renitente escravismo e no
elitismo entranhado das classes dominantes.
Dever-se-ía, por outro lado, interpretar a precoce
participação brasileira nos foros embrionários da ordem global capitalista em
gestação no século XIX como uma manifestação de uma “diplomacia econômica fora
do lugar”, pois que correspondendo de maneira muito tênue ou quase nada à
capacitação tecnológica efetiva ou ao real potencial do País no campo
econômico? Em termos, pois que, no século XIX, as diferenças de níveis de
desenvolvimento, as disparidades de renda e o diferencial de intensidade
tecnológica ainda não eram muito nítidos no cenário capitalista em que se movia
a diplomacia “ornamental e aristocrática” do Brasil monárquico.
As idéias políticas e econômicas da
avançada e “progressista” ordem escravocrata brasileira do século XIX não
estavam tão fora do lugar quanto, na verdade, sua implementação efetiva, ou
seja, a capacidade da elite de traduzi-las na prática, de torná-las guias para
a ação, no penoso e desejado processo de equiparação do Brasil com as
“potências” da época, estas sim verdadeiramente avançadas do ponto de vista
econômico e social. O que realmente aparece como surpreendente na experiência
histórica da diplomacia econômica brasileira, tal como praticada ao longo do
século XIX, é sua grande capacidade analítica, sua organização avançada, sua
forte presença política e geográfica nos mais diferentes foros abertos ao
engenho e arte de seus representantes profissionais, num país que, finalmente,
estava longe de conformar um paradigma do capitalismo pioneiro ou um palco
ideal para o exercício das vantagens comparativas de um êmulo do “burguês conquistador” em sua versão
tropical.
Essa
contradição entre teoria e prática persistiu ao longo da história da diplomacia
econômica brasileira, a despeito das diferenças marcantes entre o século XIX e
o XX, sobretudo no terreno das políticas econômicas. Uma grande mudança em
relação ao cenário anterior é representado pelo caráter essencialmente
multilateral da maior parte dos arranjos econômicos concertados no mundo
interdependente de nossos dias. Com efeito, no século passado, os tratados
bilaterais de amizade, comércio e navegação — contendo ou não a cláusula de
nação-mais-favorecida — representavam o instrumento mais utilizado na vida
econômica externa dos países. Uma primeira regulação “multilateralista” das
relações internacionais foi tentada no contexto do chamado sistema de
Versalhes, mas, além de sua orientação revanchista e tipicamente
político-militarista, ele deixava a desejar na seleção dos instrumentos e
mecanismos mobilizados para fazer “reviver” o universo do padrão-ouro e o mundo
do livre-cambismo, de resto mais proclamados do que reais. Algumas conferências
foram convocadas, algumas reuniões mantidas sob a égide da Sociedade das
Nações, mas muito pouco pôde-se fazer no espaço histórico da “segunda Guerra de
Trinta Anos” em que parece ter vivido a Europa, e com ela grande parte do
mundo, entre 1914 e 1945.
Apenas
a partir da segunda metade deste século, e com maior vigor a partir dos anos
1960, os acordos multilaterais começaram a suplantar os instrumentos bilaterais
enquanto mecanismos reguladores da vida econômica das nações. Inaugurados
timidamente no último terço do século XIX, durante a fase do capitalismo
triunfante, mas interrompidos logo depois pelos desastres políticos, econômicos
e sociais das duas guerras mundiais e mais particularmente pelos fenômenos da
depressão e do protecionismo dos anos 30, os instrumentos multilaterais passam
a estar no centro da reconstrução da ordem econômica internacional, que começou
a ser elaborada, sob a égide da ONU, em bases essencialmente contratuais e
institucionalistas. Os países, sob a discreta pressão da potência hegemônica
nessa época, os Estados Unidos, “aceitam” transferir uma parte de suas
soberanias respectivas — ou melhor, de suas competências reguladoras — em favor
de uma administração concertada de alguns setores da vida econômica, sobretudo
no campo do comércio, das finanças e dos meios de pagamentos (e adicionalmente
no da regulação de alguns aspectos da vida produtiva, como o das relações de
trabalho, por exemplo).
Bretton
Woods (julho-agosto de 1944: criação do FMI e do Banco Mundial) é o marco
inicial desse processo “fundador” multilateral, que se desdobra igualmente em
múltiplas conferências econômicas: emergência do GATT, surgimento da UNCTAD,
criação da ONUDI e de diversos outros foros para inserir os países menos
avançados na economia mundial. As grandes mudanças nos cenários político e
econômico mundiais, nos anos 1980, com a fragmentação política do chamado
Terceiro Mundo, a emergência da Ásia e a derrocada econômica do mundo
socialista, acarretaram situações inéditas do ponto de vista das relações
internacionais, sobretudo em sua vertente econômica.
De modo
geral, as instituições de Bretton Woods, a OCDE e a nova Organização Mundial do
Comércio ganham relevância em relação à UNCTAD, que pretendeu ser, nos anos
1970, o principal foro negociador de uma “nova ordem econômica internacional”.
A OMC, por exemplo, passou a ser encarregada de administrar, desde 1995, os
resultados da mais complexa rodada de negociações comerciais multilaterais —
envolvendo agricultura, serviços, investimentos e propriedade intelectual, por
exemplo — já conhecida na história econômica contemporânea. O FMI e o BIRD se
vêm confrontados, cada um à sua maneira, a gigantescos fluxos de capitais
voláteis ou a necessidades insaciáveis de capitais para investimentos, num
contexto de instabilidade crescente dos mercados financeiros. A OCDE se lança
em iniciativas — como a negociação de um Acordo Multilateral sobre
Investimentos — que passam a evidenciar um novo papel negociador, ademais de
suas tradicionais funções enquanto foro de coordenação de políticas
macroeconômicas.
A
diplomacia econômica no século XX
Ao longo desse século e meio de atuação institucional, o
serviço exterior brasileiro, analisado em sua atuação “econômica”, parece ter
enfrentado com relativa eficiência os grandes desafios externos ao crescimento
econômico e à projeção internacional do País, logrando resultados positivos em
termos de desempenho diplomático. A experiência da diplomacia econômica
brasileira pode ser considerada como bastante relevante no contexto dos países
“periféricos” e certamente é muito diferente daquela observada nos países
vizinhos e mesmo na América Latina como um todo. O ensaio histórico resume,
novamente, as principais características da estrutura político-institucional do
relacionamento econômico externo do Brasil na atualidade, que guardam uma certa
conexão com os padrões vigentes no século XIX:
a) uma diplomacia comercial não mais “instintiva”, mas
bastante racional, muito pouco doutrinal e de fato “pragmática”, ainda marcada
por um caráter “evolutivo”, mas plenamente inserida num projeto desenvolvimentista,
recusando tanto a ideologia do livre-comércio como o protecionismo aberto e, à
diferença do século XIX, em nada motivada por preocupações fiscalistas, mas sim
por objetivos claramente industrializantes e de penetração de mercados;
b) na área financeira, uma “diplomacia dos empréstimos”
bastante cautelosa na definição do grau de exposição externa, derivada de
experiências de estrangulamento em certos períodos, o que acarretou um novo
sentido de responsabilidade da parte do Estado e de seus gestores na área
orçamentária, agora bastante conscientes do efeitos indesejados da incômoda
dependência antes existentes em relação aos capitais estrangeiros; o mesmo
poderia ser dito, com as ressalvas de praxe, da atuação do Brasil enquanto
credor;
c) uma “diplomacia da mão-de-obra” que não mais se traduz na
livre importação de “braços”, mas que é ineficiente, quando não desadaptada,
para a tarefa de importação de “cérebros”, privilegiando as formas clássicas de
cooperação internacional na formação e treinamento de recursos humanos e tendo
agora de dispender recursos escassos para montar um aparato eficaz para o
atendimento das muitas demandas resultantes da “exportação” de “braços”;
d) a prática ainda largamente empírica de uma “diplomacia
dos investimentos”, ou seja, a captura de frações por vezes significativas dos
capitais de risco internacionais, mais em virtude da atratividade do mercado
interno do que propriamente em função de uma política deliberada de
acolhimento, combinada a uma grande abertura em relação à modernidade
tecnológica, embora relutante, neste caso, em relação à remuneração da
tecnologia proprietária e dos direitos associados; nesse sentido, a permanência
é notável, mas as lições não são muito instrutivas, pois o País continua pouco
preparado para conceber, montar e desenvolver o que foi chamado de “modo
inventivo de produção”, mantendo sua atitude reativa nesse campo;
e) a preservação de uma estrutura funcional-burocrática
basicamente profissionalizada e funcionando sob padrões quase que weberianos de
eficiência administrativa; a ruptura histórica se dá no terreno da chefia da
Secretaria de Estado, com um menor apelo, que torna-se de certa forma
irregular, aos líderes civis e político-partidários, mas essa situação deriva
da constante instabilidade do regime republicano e de uma mudança fundamental
nos critérios de cooptação das elites e nos padrões de mobilidade ascensional
do estamento diplomático;
f) a busca, finalmente, de uma forte presença diplomática em
todos os foros internacionais relevantes e de um ativo relacionamento com os
parceiros economicamente mais importantes — o atual G-7 — com vistas à
maximização de ganhos no plano da inserção externa, de molde a colocar o Brasil
o mais próximo possível dos centros de decisão internacional: aqui também, a
continuidade espiritual e material com a diplomacia do século XIX é notável.
Velhas questões, novos desafios
O itinerário passado das relações econômicas internacionais
e das instituições intergovernamentais de cooperação que delas derivam, bem
como suas tendências evolutivas neste século e meio de construção de uma “ordem
econômica internacional”, tal como vistos, neste trabalho, pelo ângulo da
experiência histórica da diplomacia econômica do Brasil, ensinam talvez que o
processo de desenvolvimento deve ser, cada vez mais, pensado em escala global e
que nenhum país pode continuar a conceber suas políticas setoriais e
macroeconômicas numa perspectiva puramente nacional. O mundo do futuro pertence
tanto aos Estados nacionais — cujo pretendido “fim”, anunciado por alguns
profetas, não parece próximo de realizar-se — quanto às organizações
internacionais: como evoluirão as relações entre esses dois tipos de entidades
é uma questão ainda em aberto, inclusive para o Brasil, que participa de um
processo de integração,o Mercosul, que poderá, em última instância, influenciar
de maneira decisiva sua maneira de se relacionar com a comunidade
internacional.
Ainda que se possa concordar com o conhecido aforisma
segundo o qual a História só nos ensina que ela não nos ensina nada, a
avaliação secular do “instrumento diplomático” tal como conduzida neste
trabalho deixa certamente a impressão, e talvez mesmo a certeza, de um notável
senso de continuidade na política externa brasileira. Trata-se não apenas de
uma espécie de gratificação intelectual para os atuais herdeiros dos diplomatas
do Império, mas também de uma pragmática fonte de inspiração para aqueles que
devem conduzir, no limiar do século XXI, os destinos do Brasil no plano
internacional.
[590, 1º.11.97]
590. “A diplomacia
econômica do Brasil em perspectiva histórica”, Brasília, 1º novembro 1997, 11
pp. Resumo geral da tese de CAE, podendo servir de base a artigo sobre o livro.
Inédito.