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sábado, 26 de janeiro de 2019

Redescobrindo inéditos (11): Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (1997) - Paulo Roberto de Almeida

Depois de ter terminado e apresentado minha tese do Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, em 1997, fiz um grande resumo de seu conteúdo, para divulgação e preparação para edição.
A própria Funag iria publicar essa tese, mas eu não concordei, pois eu tinha muito mais material de pesquisa do que foi possível apresentar na tese, por limitações do exercício. 
Preferi esperar mais um pouco até que o trabalho pudesse ser editado de forma completa.
Hoje, a tese e suas adições posteriores, está inteiramente disponível em 3a edição da Funag, como informado abaixo.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de janeiro de 2019



A diplomacia econômica do Brasil em perspectiva histórica

Paulo Roberto de Almeida
1 de novembro de 1997
Tese do Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco
Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império, Brasília, 2 junho 1997, 468 p.
Subsídios para matéria informativa de caráter geral.
Tese republicada em 3a. edição:
Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império. 3ra. edição, revista; apresentação embaixador Alberto da Costa e Silva, membro da Academia Brasileira de Letras; Brasília: Funag, 2017, 2 volumes; Coleção História Diplomática; ISBN: 978-85-7631-675-6 (obra completa; 964 p.); Volume I, 516 p.; ISBN: 978-85-7631-668-8 (link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=907) e Volume II, 464 p.; ISBN: 978-85-7631-669-5 (link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=908).


A diplomacia brasileira é conhecida pela excelência de seus quadros e pela notável constância de suas posições políticas. Mas, como terá sido seu desempenho de longo prazo num setor que toca diretamente aos interesses maiores da Nação: o desempenho na frente econômica? Na terminologia da economia política, as relações econômicas internacionais do Brasil passam, entre o início do século XIX e meados deste, de uma diplomacia do primário, comprometida com a promoção de alguns poucos produtos de base de sua pauta de exportação, para a crescente afirmação de uma diplomacia do secundário, voltada essencialmente para a grande tarefa da industrialização substitutiva e da capacitação tecnológica nacionais, antes de adentrar, no período recente, na diversidade de temas e de interesses econômicos que poderão conformar, no presente e no futuro, uma diplomacia do terciário, isto é, da era dos serviços, a qual parece caracterizar o mundo atual e o sistema contemporâneo de relações econômicas internacionais.

Trabalho de pesquisa histórica
Num ensaio de “interpretação econômica” da história diplomática brasileira, tentei traçar um amplo itinerário das etapas formadoras da diplomacia econômica no Brasil, retraçando o itinerário das relações econômicas internacionais da Nação durante o século XIX, desde a transferência da Corte em 1808 até o final do período monárquico. Ainda estou dando continuidade a pesquisas de arquivo, abordando agora o desenvolvimento do desempenho diplomático durante a era republicana.
Este ensaio histórico, apropriadamente intitulado “Formação da Diplomacia Econômica no Brasil”, analisa em detalhe as primeiras etapas da diplomacia econômica brasileira em áreas selecionadas: os tratados de comércio e a política tarifária, o constante recurso aos empréstimos externos, o ingresso de investimentos estrangeiros diretos, o contencioso com a Grã-Bretanha sobre o tráfico escravo e os problemas encontrados pelo Estado monárquico para garantir um fluxo regular de imigrantes livres (em face da política dos fazendeiros de manutenção do trabalho escravo ou da simples “importação de braços para a lavoura”, ainda que colonos europeus), bem como a precoce presença do Brasil em incipientes foros “multilaterais” (União Geral dos Correios, União Telegráfica Universal e União de Paris sobre propriedade industrial, no último terço do século XIX).
O trabalho não constitui, absolutamente, uma versão “economicista” da política externa, não tenta construir uma “concepção materialista” da história diplomática do Brasil, nem acredita que o itinerário das relações exteriores do País possa ser descrito unicamente com base em nas relações econômicas internacionais ou que a política internacional do Estado monárquico constituísse uma espécie de sobredeterminação da ordem econômica mundial na qual ela estaria inserida. Mas, acredito, da mesma forma como um eminente historiador não marxista, Pierre Chaunu, que “tudo parte da história econômica”.
Com efeito, mesmo ostentando uma “opção preferencial” pela história econômica da diplomacia brasileira, a tese chama a atenção contra qualquer determinismo econômico ou desvio historiográfico: se a economia é inegavelmente o mais importante fator na vida de uma nação, os eventos, a escolha das políticas adotadas em casos concretos, as motivações e orientações gerais das relações internacionais do Brasil, bem como os traços peculiares de sua política externa “efetiva” não foram, majoritariamente ou predominantemente, determinados ou moldados pela base material ou pelas relações econômicas internacionais do País. As grandes questões da política externa brasileira, inclusive e principalmente as de política econômica externa, sempre foram políticas e, como tal, receberam um tratamento essencialmente político.

Aspectos originais da diplomacia econômica
Esse ensaio histórico sobre a formação da diplomacia econômica no Brasil, elaborado por um profissional da diplomacia, trata, assim, de aspectos pouco abordados nos velhos manuais de história diplomática (Delgado de Carvalho, Hélio Vianna) ou mesmo nos clássicos trabalhos de história econômica (Caio Prado, Celso Furtado): a diplomacia comercial, a diplomacia financeira (inclusive a do Brasil enquanto credor dos países platinos), a diplomacia dos investimentos (aqui incluído o problema da tecnologia proprietária, isto é, das patentes industriais), aquilo que eufemisticamente se poderia chamar de “diplomacia da mão-de-obra” (continuidade, enquanto tanto se pôde fazer, do tráfico escravo, e atração de imigrantes europeus), bem como a emergente diplomacia “multilateral” (a exemplo daquelas primeiras “uniões” técnicas dedicadas aos correios, à telegrafia e à patentes). Um último capítulo de seu trabalho, que mereceria certamente ser acolhido por uma editora comercial para mais ampla divulgação, trata da própria conformação institucional do “instrumento diplomático” brasileiro no século XIX.
Todos esse campos oferecem interesse ao diplomata ou observador contemporâneo que deseje colocar em perspectiva histórica questões ainda relevantes do relacionamento econômico externo do País. Não é preciso, por exemplo, sublinhar a importância continuada, e mesmo crucial, da diplomacia comercial e financeira na história do desenvolvimento brasileiro, bem como para uma exitosa inserção econômica internacional do Brasil contemporâneo. Da mesma forma, ninguém disputaria o papel estratégico desempenhado pelos investimentos estrangeiros e por aportes de tecnologia avançada no aggiornamento da economia nacional. A diplomacia da força-de-trabalho constitui o que se chamaria atualmente de “política de recursos humanos”: se hoje o Brasil deixou de ser o grande “importador” de imigrantes que foi até meados deste século — tornando-se, ao contrário, um “exportador” moderado de mão-de-obra — ele ainda necessita do concurso do trabalho especializado vindo de centros mais avançados, assim como ele envia, regularmente, estudantes e técnicos para formação complementar no exterior.
No que se refere, por sua vez, à diplomacia multilateral, parece óbvio que, em sua vertente econômica, ela vem constituindo-se no campo de trabalho por excelência de uma política externa que deve operar cada vez mais nos limites, condicionalidades e desafios dos processos de globalização e de regionalização: se a política externa bilateral ainda não esgotou suas possibilidades de atuação, ela já não mais configura — salvo as exceções de praxe — o eixo preferencial ou exclusivo da atuação diplomática do Brasil no plano global e mesmo regional.
Quais são as principais contribuições desse trabalho para o estudo da história diplomática brasileira? Trata-se, presumivelmente, da primeira pesquisa sistemática, relativamente completa, sobre o conjunto das relações econômicas internacionais do Brasil no século XIX, apresentando, como tal, os principais problemas constitutivos de uma diplomacia econômica ainda incipiente. O trabalho discute as implicações dos problemas selecionados para análise — no campo do comércio exterior, das finanças, dos investimentos, da mão-de-obra e das organizações emergentes no campo técnico-econômico — para a política externa brasileira e avalia como a diplomacia atuou nessas questões ao longo do período monárquico. Finalmente, ele também constata o impacto dessas experiências iniciais — algumas delas podendo ser consideradas pioneiras no plano internacional — para a diplomacia e a política externa brasileira neste século, detectando linhas de continuidade ou de ruptura.
O trabalho de análise se dá através de uma visão de largo prazo e no quadro da ordem econômica internacional do século XIX, inclusive no que se refere ao contexto latino-americano, que pode servir de elemento comparativo no âmbito do sistema econômico emergente da segunda revolução industrial. Essa visão foi contruída por meio da leitura sistemática das fontes relevantes para esse estudo, a saber, os relatórios da Repartição dos Negócios Estrangeiros e as fontes primárias disponíveis no Arquivo Histórico Diplomático (no velho Itamaraty do Rio de Janeiro). Mas, o trabalho também compila ou constrói algumas dezenas de tabelas estatísticas, muitas delas a partir de fontes dispersas, coloca em certos casos a informação quantitativa em perspectiva histórica (em valores atualizados, por exemplo) ou comparativa (com países da região ou mesmo “desenvolvidos”), traça alguns quadros analíticos sequenciais (sobre os principais atos econômicos internacionais, por exemplo), unifica informações dispersas na literatura (sobre as primeiras organizações econômicas internacionais) e introduz o tratamento de algumas questões geralmente descuradas nesse gênero de literatura (como a questão das patentes e do sistema inventivo no século XIX).
No que se refere à clássica dicotomia historiográfica entre ruptura e continuidade no processo histórico, o trabalho apresenta ensinamentos sobre a notável preservação das linhas de atuação política do Estado brasileiro, tal como demonstrado pela vertente da diplomacia econômica no século e meio de vida independente desde o final do Primeiro Império. Dentre as mais importantes lições a serem retidas pelos historiadores estão, provavelmente, a aguda consciência, por parte dos diplomatas profissionais, do atraso absoluto e relativo do País no contexto da ordem econômica internacional e, de forma conseqüente, a incessante busca de instrumentos operacionais e de alavancas materiais, alguns deles de natureza diplomática, para impulsionar o progresso da Nação com a plena preservação da soberania política.
O discurso diplomático talvez pudesse ser classificado como “desenvolvimentista” avant la lettre, se a noção não fosse anacrônica no contexto do século XIX; persiste, contudo, e como tal emerge das páginas dos Relatórios e dos ofícios de um passado imperial hoje distante, uma espécie de consciência “embrionária” sobre a defasagem de “civilização”, em relação ao modelo europeu, a ser colmatada pela Nação brasileira. A clara noção de que o Estado é a força unificadora de um projeto nacional que nunca existiu de forma clara no seio da assim chamada sociedade civil é o outro elemento que marcou, desde o século passado, a atuação da diplomacia econômica brasileira: foi a burocracia pública enquanto tal — aristocrática, oligárquica ou tecnocrática segundo as épocas — que marcou e impulsionou a presença do Brasil nos mais diversos foros internacionais, e não necessariamente uma comunidade de “homens de negócios”, uma “classe política” dotada de qualquer tipo de vocação “weberiana” ou ainda a presença eventual de pretensos estadistas “excepcionais”, num e noutro século, aliás inexistentes, à exceção do interregno “bismarckiano” protagonizado por um ditador positivista (Vargas). Foi a própria corporação de homens públicos extraídos de setores das elites que alimentou e deu substância à atuação do Estado no plano do desenvolvimento econômico e no da afirmação externa da Nação.

A diplomacia econômica do século XIX
As especificidades do modo de inserção econômica internacional do Brasil no século XIX, os processos negociadores e o relacionamento econômico externo do País foram amplamente ilustrados pelos casos de diplomacia econômica analisados neste ensaio histórico. As principais características da estrutura do relacionamento econômico externo durante o Império foram assim sumarizadas: 

a) uma política comercial “instintiva”, mais empírica do que doutrinal, marcada por uma “diplomacia evolutiva”, desde o livre-comércio obrigatório, encontrado em sua “pia batismal”, a uma espécie de protecionismo oportunista ou ocasional, menos motivado por preocupações industrializantes do que de fato impulsionado pela precariedade da base fiscal do governo;
b) na área financeira externa, uma “diplomacia dos empréstimos” que se desenvolveu ao longo de todo o período, derivada em grande medida da irresponsabilidade do Estado na frente orçamentária, com a dependência consequente de capitais estrangeiros; a “diplomacia dos créditos externos” é, por sua vez, excessivamente restrita, em termos geográficos (apenas países platinos) e em volume de recursos mobilizados, para justificar sua inscrição como categoria específica da diplomacia econômica do Brasil;
c) uma dupla “diplomacia da mão-de-obra”, resultante da atestada incapacidade das elites em reestruturar radicalmente a organização social da produção, e que combinou tergiversações na questão do tráfico escravo e uma tímida política de atração de colonos europeus;
d) a prática empírica de uma “diplomacia dos investimentos”, refletida no atento acompanhamento dos progressos tecnológicos em curso na Europa e nos Estados Unidos e numa prática ativa de atração de capitais produtivos e de novos inventos para o País; ela é, no entanto, mais reativa do que pró-ativa;
e) uma estrutura funcional-burocrática bastante eficiente na defesa de seus interesses econômicos externos, com uma profissionalização precoce do pessoal diplomático e um processo decisório amplamente interativo com os interesses da elite dirigente, por força do regime parlamentarista em vigor e da presença constante, aliás exclusiva, de representantes da classe política na chefia da Secretaria de Estado;
f) a busca, finalmente, de uma forte presença diplomática em todos os países importantes e em foros internacionais relevantes, de molde a colocar o Brasil no mesmo plano das demais “potências” do concerto internacional, conformando um exemplo de precoce diplomacia do multilateralismo econômico, certamente singular na periferia.

Mas como explicar, por exemplo, que o Brasil tenha se antecipado a muitos outros países “avançados” da Europa e da América do Norte, em todo caso bem mais industrializados do que ele, na assinatura de convênios constitutivos de alguns foros relevantes da modernidade capitalista: uniões telegráfica e postal, consórcios para a construção de cabos submarinos, organizações de defesa da propriedade intelectual? Sua estrutura econômica e social era efetivamente atrasada, mas o fato é que sua diplomacia econômica — ou sua diplomacia tout court  — era extraordinariamente avançada para os padrões da época, tanto do ponto de vista conceitual, como em termos de participação e de representação.

Uma diplomacia “fora do lugar”?
Teria ocorrido, no terreno da diplomacia econômica, e no da política externa de modo geral, uma espécie de reprodução daquelas “idéias fora do lugar” que a crítica literária e a sociologia política já detectaram em relação à experiência brasileira no campo cultural e político? À primeira vista, a analogia poderia parecer impertinente, mas não se poderia desprezar a hipótese, na medida em que a sociedade brasileira conformava, no século XIX, um exemplo raro, pelo menos no contexto dos demais países saídos da colonização ibérica, de institucionalismo avançado — consagrado no liberalismo parlamentarista — que se encontrava imerso numa estrutura social extremamente desigual e intrinsecamente perversa do ponto de vista dos direitos humanos e dos princípios da cidadania, pois que baseada no renitente escravismo e no elitismo entranhado das classes dominantes.
Dever-se-ía, por outro lado, interpretar a precoce participação brasileira nos foros embrionários da ordem global capitalista em gestação no século XIX como uma manifestação de uma “diplomacia econômica fora do lugar”, pois que correspondendo de maneira muito tênue ou quase nada à capacitação tecnológica efetiva ou ao real potencial do País no campo econômico? Em termos, pois que, no século XIX, as diferenças de níveis de desenvolvimento, as disparidades de renda e o diferencial de intensidade tecnológica ainda não eram muito nítidos no cenário capitalista em que se movia a diplomacia “ornamental e aristocrática” do Brasil monárquico.
As idéias políticas e econômicas da avançada e “progressista” ordem escravocrata brasileira do século XIX não estavam tão fora do lugar quanto, na verdade, sua implementação efetiva, ou seja, a capacidade da elite de traduzi-las na prática, de torná-las guias para a ação, no penoso e desejado processo de equiparação do Brasil com as “potências” da época, estas sim verdadeiramente avançadas do ponto de vista econômico e social. O que realmente aparece como surpreendente na experiência histórica da diplomacia econômica brasileira, tal como praticada ao longo do século XIX, é sua grande capacidade analítica, sua organização avançada, sua forte presença política e geográfica nos mais diferentes foros abertos ao engenho e arte de seus representantes profissionais, num país que, finalmente, estava longe de conformar um paradigma do capitalismo pioneiro ou um palco ideal para o exercício das vantagens comparativas de um êmulo do “burguês conquistador” em sua versão tropical.
Essa contradição entre teoria e prática persistiu ao longo da história da diplomacia econômica brasileira, a despeito das diferenças marcantes entre o século XIX e o XX, sobretudo no terreno das políticas econômicas. Uma grande mudança em relação ao cenário anterior é representado pelo caráter essencialmente multilateral da maior parte dos arranjos econômicos concertados no mundo interdependente de nossos dias. Com efeito, no século passado, os tratados bilaterais de amizade, comércio e navegação — contendo ou não a cláusula de nação-mais-favorecida — representavam o instrumento mais utilizado na vida econômica externa dos países. Uma primeira regulação “multilateralista” das relações internacionais foi tentada no contexto do chamado sistema de Versalhes, mas, além de sua orientação revanchista e tipicamente político-militarista, ele deixava a desejar na seleção dos instrumentos e mecanismos mobilizados para fazer “reviver” o universo do padrão-ouro e o mundo do livre-cambismo, de resto mais proclamados do que reais. Algumas conferências foram convocadas, algumas reuniões mantidas sob a égide da Sociedade das Nações, mas muito pouco pôde-se fazer no espaço histórico da “segunda Guerra de Trinta Anos” em que parece ter vivido a Europa, e com ela grande parte do mundo, entre 1914 e 1945.
Apenas a partir da segunda metade deste século, e com maior vigor a partir dos anos 1960, os acordos multilaterais começaram a suplantar os instrumentos bilaterais enquanto mecanismos reguladores da vida econômica das nações. Inaugurados timidamente no último terço do século XIX, durante a fase do capitalismo triunfante, mas interrompidos logo depois pelos desastres políticos, econômicos e sociais das duas guerras mundiais e mais particularmente pelos fenômenos da depressão e do protecionismo dos anos 30, os instrumentos multilaterais passam a estar no centro da reconstrução da ordem econômica internacional, que começou a ser elaborada, sob a égide da ONU, em bases essencialmente contratuais e institucionalistas. Os países, sob a discreta pressão da potência hegemônica nessa época, os Estados Unidos, “aceitam” transferir uma parte de suas soberanias respectivas — ou melhor, de suas competências reguladoras — em favor de uma administração concertada de alguns setores da vida econômica, sobretudo no campo do comércio, das finanças e dos meios de pagamentos (e adicionalmente no da regulação de alguns aspectos da vida produtiva, como o das relações de trabalho, por exemplo).
Bretton Woods (julho-agosto de 1944: criação do FMI e do Banco Mundial) é o marco inicial desse processo “fundador” multilateral, que se desdobra igualmente em múltiplas conferências econômicas: emergência do GATT, surgimento da UNCTAD, criação da ONUDI e de diversos outros foros para inserir os países menos avançados na economia mundial. As grandes mudanças nos cenários político e econômico mundiais, nos anos 1980, com a fragmentação política do chamado Terceiro Mundo, a emergência da Ásia e a derrocada econômica do mundo socialista, acarretaram situações inéditas do ponto de vista das relações internacionais, sobretudo em sua vertente econômica.
De modo geral, as instituições de Bretton Woods, a OCDE e a nova Organização Mundial do Comércio ganham relevância em relação à UNCTAD, que pretendeu ser, nos anos 1970, o principal foro negociador de uma “nova ordem econômica internacional”. A OMC, por exemplo, passou a ser encarregada de administrar, desde 1995, os resultados da mais complexa rodada de negociações comerciais multilaterais — envolvendo agricultura, serviços, investimentos e propriedade intelectual, por exemplo — já conhecida na história econômica contemporânea. O FMI e o BIRD se vêm confrontados, cada um à sua maneira, a gigantescos fluxos de capitais voláteis ou a necessidades insaciáveis de capitais para investimentos, num contexto de instabilidade crescente dos mercados financeiros. A OCDE se lança em iniciativas — como a negociação de um Acordo Multilateral sobre Investimentos — que passam a evidenciar um novo papel negociador, ademais de suas tradicionais funções enquanto foro de coordenação de políticas macroeconômicas.

A diplomacia econômica no século XX
Ao longo desse século e meio de atuação institucional, o serviço exterior brasileiro, analisado em sua atuação “econômica”, parece ter enfrentado com relativa eficiência os grandes desafios externos ao crescimento econômico e à projeção internacional do País, logrando resultados positivos em termos de desempenho diplomático. A experiência da diplomacia econômica brasileira pode ser considerada como bastante relevante no contexto dos países “periféricos” e certamente é muito diferente daquela observada nos países vizinhos e mesmo na América Latina como um todo. O ensaio histórico resume, novamente, as principais características da estrutura político-institucional do relacionamento econômico externo do Brasil na atualidade, que guardam uma certa conexão com os padrões vigentes no século XIX:

a) uma diplomacia comercial não mais “instintiva”, mas bastante racional, muito pouco doutrinal e de fato “pragmática”, ainda marcada por um caráter “evolutivo”, mas plenamente inserida num projeto desenvolvimentista, recusando tanto a ideologia do livre-comércio como o protecionismo aberto e, à diferença do século XIX, em nada motivada por preocupações fiscalistas, mas sim por objetivos claramente industrializantes e de penetração de mercados;
b) na área financeira, uma “diplomacia dos empréstimos” bastante cautelosa na definição do grau de exposição externa, derivada de experiências de estrangulamento em certos períodos, o que acarretou um novo sentido de responsabilidade da parte do Estado e de seus gestores na área orçamentária, agora bastante conscientes do efeitos indesejados da incômoda dependência antes existentes em relação aos capitais estrangeiros; o mesmo poderia ser dito, com as ressalvas de praxe, da atuação do Brasil enquanto credor;
c) uma “diplomacia da mão-de-obra” que não mais se traduz na livre importação de “braços”, mas que é ineficiente, quando não desadaptada, para a tarefa de importação de “cérebros”, privilegiando as formas clássicas de cooperação internacional na formação e treinamento de recursos humanos e tendo agora de dispender recursos escassos para montar um aparato eficaz para o atendimento das muitas demandas resultantes da “exportação” de “braços”;
d) a prática ainda largamente empírica de uma “diplomacia dos investimentos”, ou seja, a captura de frações por vezes significativas dos capitais de risco internacionais, mais em virtude da atratividade do mercado interno do que propriamente em função de uma política deliberada de acolhimento, combinada a uma grande abertura em relação à modernidade tecnológica, embora relutante, neste caso, em relação à remuneração da tecnologia proprietária e dos direitos associados; nesse sentido, a permanência é notável, mas as lições não são muito instrutivas, pois o País continua pouco preparado para conceber, montar e desenvolver o que foi chamado de “modo inventivo de produção”, mantendo sua atitude reativa nesse campo;
e) a preservação de uma estrutura funcional-burocrática basicamente profissionalizada e funcionando sob padrões quase que weberianos de eficiência administrativa; a ruptura histórica se dá no terreno da chefia da Secretaria de Estado, com um menor apelo, que torna-se de certa forma irregular, aos líderes civis e político-partidários, mas essa situação deriva da constante instabilidade do regime republicano e de uma mudança fundamental nos critérios de cooptação das elites e nos padrões de mobilidade ascensional do estamento diplomático;
f) a busca, finalmente, de uma forte presença diplomática em todos os foros internacionais relevantes e de um ativo relacionamento com os parceiros economicamente mais importantes — o atual G-7 — com vistas à maximização de ganhos no plano da inserção externa, de molde a colocar o Brasil o mais próximo possível dos centros de decisão internacional: aqui também, a continuidade espiritual e material com a diplomacia do século XIX é notável.

Velhas questões, novos desafios
O itinerário passado das relações econômicas internacionais e das instituições intergovernamentais de cooperação que delas derivam, bem como suas tendências evolutivas neste século e meio de construção de uma “ordem econômica internacional”, tal como vistos, neste trabalho, pelo ângulo da experiência histórica da diplomacia econômica do Brasil, ensinam talvez que o processo de desenvolvimento deve ser, cada vez mais, pensado em escala global e que nenhum país pode continuar a conceber suas políticas setoriais e macroeconômicas numa perspectiva puramente nacional. O mundo do futuro pertence tanto aos Estados nacionais — cujo pretendido “fim”, anunciado por alguns profetas, não parece próximo de realizar-se — quanto às organizações internacionais: como evoluirão as relações entre esses dois tipos de entidades é uma questão ainda em aberto, inclusive para o Brasil, que participa de um processo de integração,o Mercosul, que poderá, em última instância, influenciar de maneira decisiva sua maneira de se relacionar com a comunidade internacional.
Ainda que se possa concordar com o conhecido aforisma segundo o qual a História só nos ensina que ela não nos ensina nada, a avaliação secular do “instrumento diplomático” tal como conduzida neste trabalho deixa certamente a impressão, e talvez mesmo a certeza, de um notável senso de continuidade na política externa brasileira. Trata-se não apenas de uma espécie de gratificação intelectual para os atuais herdeiros dos diplomatas do Império, mas também de uma pragmática fonte de inspiração para aqueles que devem conduzir, no limiar do século XXI, os destinos do Brasil no plano internacional.

 [590, 1º.11.97]

590. “A diplomacia econômica do Brasil em perspectiva histórica”, Brasília, 1º novembro 1997, 11 pp. Resumo geral da tese de CAE, podendo servir de base a artigo sobre o livro. Inédito.


Redescobrindo inéditos (10): Politica externa paralela? (1990) - Paulo Roberto de Almeida

Depois de perder sua primeira campanha presidencial, em 1989, o líder do PT tomou duas iniciativas. Uma, a pedido, sob controle e direção estrita dos comunistas cubanos, foi a constituição do "Foro de São Paulo", uma espécie de Cominform do castrismo para poder não apenas manter sob sua estrita vigilância todos os partidos de esquerda da América Latina, mas também extrair recursos daqueles partidos amigos que por acaso estivesse no poder, uma vez que o socialismo estava, nessa época, fazendo água por todos os lados, e já se podia antever o fim do mensalão soviética que permitia à decrépita e improdutiva economia comunista cubana sobreviver em meio às agruras dos mercados mundiais.
Tomei conhecimento a posteriori desse Foro, e não tenho certeza de ter escrito algo a respeito, provavelmente não um trabalho específico, mas referências em outros textos.
A outra iniciativa foi fazer com que o PT e simpatizantes montassem um fantasmagórico "governo paralelo", que nunca funcionou, sejamos claro, mas, como sempre, o PT invariavelmente viveu mais de propaganda do que de trabalho real. Esse governo designou um chanceler paralelo, na pessoa do "filósofo" gramsciano Carlos Nelson Coutinho, que nunca soube entender de política internacional. Ele conhecia bem o marxismo, os trabalhos de Gramsci, coisas desse tipo, e, apenas porque tinha vivido no exterior, e devia falar espanhol e francês, pelo menos, fico a cargo da "política externa" do PT. Esta já estava redigido pelos apparatchiks do partido, com os habituais clichês esquerdistas-stalinistas, que eu já analisei em vários trabalhos meus.
Assisti a uma única "conferência" desse chanceler paralelo, quando ele veio à UnB para falar no quadro de algum colóquio anti-imperialista. Eu só ouvi bobagem. A maior, o que demonstrou a profunda ignorância desse "chanceler", foi atribuir a miséria e a guerra civil na Somália à "exploração imperialista", que esse infeliz país tinha recém saído de uma longa ditadura comunista, de Siad Barre, e nunca tinha permitido qualquer exploração imperialista daquela nação miserável, que logo depois entrou em guerra civil.
Desisti do governo paralelo do PT e o artigo abaixo, portanto, deve ser lido apenas como uma relíquia ingênua, quando eu achava que o PT era um partido sério.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de janeiro de 2019.


UMA POLITICA EXTERNA PARALELA ?

Paulo Roberto de Almeida
Montevidéu, 17 de julho de 1990

O líder do PT, Luís Inácio Lula da Silva, concretizou finalmente sua promessa de candidato derrotado à Presidência da República ao anunciar, em coalizão com alguns outros partidos de esquerda, a formação de um “governo paralelo” ao legalmente constituído, no que deve ser seguramente um dos poucos exemplos de shadow cabinet ao sul do Equador.
A implementação dessa iniciativa deve ser verdadeiramente saudada por todos os democratas sinceros, e não apenas por aquele punhado de parlamentaristas convictos – cada vez mais ameaçados pelos oportunistas de ocasião – que até agora parecia viver de um ideal quixotesco. O PSDB, único partido a assumir efetivamente a mensagem parlamentarista sem tê-la ainda traduzido em termos de programa concreto, deveria refletir seriamente sobre a saudável prática recém inaugurada.
O exercício responsável de uma “administração” paralela impõe a necessidade de ocupar virtualmente todos os terrenos abertos à formulação de propostas alternativas em termos de políticas públicas, algo assim como a tática de marcação homem a homem num campo de futebol. Se os ministros “atletas” estiverem realmente preparados para as funções designadas – armação, ataque e defesa de suas próprias posições – e não para um simples “jogo de cena”, a disputa passa então a assumir contornos mais emocionantes, algo mais do que chutes nas canelas dos adversários ou empurrões maldosos nas proximidades da área do contendor. Definir suas próprias posições em função da colocação das hostes inimigas, numa simples mímesis contrária, pode não ser muito eficaz como estratégia para ganhar a partida, além de conformar uma tática mais reativa do que passiva (que de resto corre o risco de não agradar à platéia cívica, que somos todos nós).
Dito isto, qual é exatamente o papel de um “ministro paralelo” para as relações exteriores do Brasil? O que significa ter uma “política externa alternativa”? Seguramente algo mais do que o endurecimento na questão da dívida externa, a mera oposição à “Iniciativa para as Américas” do Presidente Bush ou a busca de uma integração “não-capitalista” para as nações da América Latina, alegremente anunciados pelo líder do PT. O chanceler “paralelo” – designado na pessoa do eminente filósofo e professor Carlos Nelson Coutinho – precisará avançar um pouco mais em relação às propostas vagas até agora enunciadas por Lula para que sua missão possa realmente sair da “sombra” e projetar-se em termos de propostas concretas de relacionamento externo.
Comecemos pelo lancinante e ainda não resolvido problema da dívida externa (supondo-se realmente que esta espinhosa questão possa algum dia cair sob a responsabilidade de um Itamaraty “petista”). Será que Lula realmente acredita que basta declarar encerradas as negociações com os banqueiros privados para que os governos dos países credores se disponham a sentar-se numa mesa com o representante brasileiro e simplesmente conversar? Haveria, para começar, alguém do outro lado da mesa? Nosso chanceler “filósofo” – aliás um habitué do debate contraditório – sabe muito bem que em matéria de diálogo externo, assim como no futebol ou nas artes renhidas da dialética, é preciso pelo menos dois parceiros para concretizar-se a disputa. Se o adversário faz default, não dá nem para iniciar o jogo. Estariamos simplesmente numa posição de non starter, como já disse o James Baker para o imaginativo Bresser Pereira. Não parece razoável que Lula queira repetir a malfadada experiência de Alan Garcia: por enquanto ele deve estar apenas jogando para a platéia.
No que se refere à integração continental, o animus petista sempre foi mais receptivo, ainda que com o tradicional viés da “solidariedade anti-imperialista”. O problema é que a Iniciativa Bush parece ter vindo reacender essa tradicional atitude reativa, típica do complexo de inferioridade latino-americano em face de um Big Brother que nunca conseguiu pensar suas relações meridionais senão em termos de drogas e da ameaça cubano-soviética. Exemplo disso é a Declaração de São Paulo, na qual o PT e seus hermanos de izquierda da América Latina proclamam sua vontade de se opor por todos os meios à “integração imperialista”. Em face de países já escaldados pela retórica vazia de um “integracionismo” de políticas protecionistas e com o avanço irresistível da liberalização econômica externa e interna, a mensagem oposicionista dos partidos de esquerda corre mais uma vez o risco de cair no vazio.
O problema de muitos teóricos do PT – certamente não partilhado pelo chanceler designado – parece ser o de acreditar que exista algo como uma política externa com “caráter de classe” e que a atual representaria apenas os interesses das elites dominantes e de seus aliados estrangeiros. Sem querer cair nos mitos da “unanimidade” e do “apoio consensual” tributados à política externa oficial, não parece exagerado dizer que, na prática, os desentendimentos em torno da postura externa do Brasil são bem menores do que, por exemplo, em relação à política econômica interna e os custos sociais da luta anti-inflacionária.
Ainda que se possa argumentar que toda política institucional - e a externa não é exceção - reflete, de certo modo, a estrutura política e social e o sistema político em vigor no País, a grande questão nesse terreno é saber se, efetivamente, a política externa brasileira corresponde às necessidades da Nação e aos interesses de seu Povo. Não se trata apenas de dizer que as relações exteriores têm sido traçadas em gabinetes fechados, sem a necessária participação da sociedade, por exemplo, mas de verificar se as posições assumidas pelo Brasil externamente contemplam apenas os interesses de um grupo da sociedade, que manipula a máquina do Estado para servir seus fins particulares, ou se elas servem o grande objetivo do desenvolvimento, que é a verdadeira ideologia do povo brasileiro.
Com todos os percalços criados por governos hesitantes, ora excessivamente alinhados, ora ingenuamente “independentes”, a política externa até que tem respondido bem aos anseios da Nação, caracterizando-se por um “terceiro-mundismo” moderado e realista, mais conforme ao nosso perfil de País com um pé em cada mundo (até porque não cai bem em nossos tão discretos diplomatas qualquer discurso mais radical). Se o compromisso de nossas elites com o desenvolvimento econômico e social é meramente retórico, tal falha não pode ser creditada aos profissionais do Itamaraty, que não podem simplesmente transmutar sua ação na área externa em medidas internas de correção das desigualdades, desequilíbrios ou injustiças sociais mais gritantes. A política externa é, antes de mais nada, uma questão de política interna.
Nessas condições, o que significaria uma “política externa alternativa”: um militantismo internacional exacerbado para tentar convencer nossos colegas do Terceiro Mundo de que nossos interesses nacionais são os deles também? É evidente que não há respostas exclusivas a desafios externos que são basicamente comuns aos países em desenvolvimento: dívida, acesso a mercados e a novas tecnologias, integração econômica, etc. Mas, essas respostas não podem ser equacionadas, ao nível internacional, com base apenas em slogans. Elas requerem um pouco mais de consistência. Com a palavra nosso chanceler paralelo.


Montevidéu, 187: 17/07/1990