Retomo a publicação de diversos inéditos do passado jamais revelados publicamente, e nunca divulgados sob qualquer forma de publicação. Trato agora de um morto vivo, o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul, que visava "corrigir assimetrias no bloco", o que era um duplo equívoco como argumento nesse trabalho.
O problema do Focem
Hartford, 15 de agosto de 2014
Sumário:
1. O problema
2. Diagnóstico
3. Propostas
Assim como o Mercosul é o mais importante problema diplomático do Brasil, o Fundo de Convergência Estrutural (Focem) do Mercosulé o mais importante problema político do bloco, pelo menos para o Brasil. Suas principais implicações não são nem de ordem econômico-comercial, ou de recursos orçamentários, mas basicamente de ordem política, e elas tem origem, como outros equívocos monumentais da gestão amadora dos companheiros na política externa, numa incompreensão flagrante das realidades do Mercosul, ou das do próprio Brasil. Mais uma vez, a ideologia, junto com a incultura econômica, prevaleceu sobre a simples racionalidade instrumental, mas nem todos os pecados são devidos aos companheiros, ainda que tenham sido eles que tomaram a decisão de implantar esse monstro bizarro no corpo do Mercosul: contribuiu para isso a obsessão do ex-SG MRE, Samuel Pinheiro Guimarães, em querer converter o Mercosul numa obra de benemerência em favor dos sócios menores, em lugar de simplesmente atender ao que estava escrito no Tratado de Assunção. O fato é que o Brasil é a terceira renda per capita do bloco, e acabou assumindo quase quatro quintos do esquema de financiamento amador que acabou sendo criado sem qualquer estudo técnico.
1. O problema
O Focem parte de um duplo equívoco, ambos monumentais, mas que jamais tinham sido cometidos pelo Itamaraty ou pelos decisores econômicos brasileiros, nos primeiros doze anos do Mercosul: o de que os problemas da não integração acabada no bloco seriam devidos a supostas “assimetrias estruturais” entre os sócios, e o de que essas assimetrias poderiam ser corrigidas por ações pontuais dos Estados membros. Havia uma demanda, certo, dos outros sócios do Mercosul, quanto à redução dessas “assimetrias” dentro do bloco, para que ele pudesse avançar, argumento que o governo FHC e a diplomacia brasileira nunca aceitaram como válido para a implementação de medidas “corretoras”, obviamente a cargo do sócio maior, o Brasil. Os argentinos, particularmente, já vinham reclamando há muito tempo dessas assimetrias, primeiro de ordem cambial – mas quem tinha fixado o câmbio ao dólar foram eles, não o Brasil –, depois de natureza financeira – a existência de um banco generoso, como o BNDES, que eles não tinham, como se fosse culpa nossa a inexistência de mecanismos similares na economia vizinha –, finalmente o simples fato de o Brasil sozinho ser muito grande, o que é um fato, mais exatamente 60 a 70% do peso bruto da economia, do comércio, dos recursos, da amplitude do mercado interno – que permitiria “economias de escala” às indústrias brasileiras, como se o mercado interno não estivesse aberto às empresas dos demais também, permitindo-lhes as mesmas economias de escala.
O governo companheiro, vendo o bloco através de lentes equivocadamente comunitárias – em especial no tocante aos programas de reconversão setorial e de redução das desigualdades regionais existentes entre os países membros da UE – considerou que caberia ao Brasil assumir o papel da Alemanha, se apresentando, em 2004, como o provedor líquido de recursos num projeto de redução de “assimetrias estruturais” que supostamente estariam impedindo o MERCOSUL de se desenvolver de modo adequado. O Brasil propôs financiar o Focem, à razão de 70% dos montantes operacionais, que replica o que já está sendo feito, sem a expertise técnica, pelos organismos multilaterais e regionais de financiamento; o sistema é limitado – ainda que o Brasil tenha comprometido recursos bem mais amplos do que a sua parte de 70% nos muitos milhões oferecidos – e não reduzirá de modo significativo as assimetrias mais importantes, que são as de política econômica, não propriamente as de natureza geográfica ou de dotação de fatores.
2. Diagnóstico
Essa incorporação acrítica de um modelo europeu, transpondo ao cenário do Mercosul um modelo que se acredita similar (ou funcionalmente equivalente) ao do conceito europeu de “coesão social”, foi feita sem que se aferisse economicamente sua necessidade ou sem que os fundamentos técnicos dessa posição fossem devidamente assentados. A “diplomacia da generosidade” dos companheiros simplesmente se dobrou aos “argumentos” dos demais sócios, em especial da Argentina, de que o bloco não poderia avançar na presença das “profundas assimetrias” que supostamente separavam os países membros; os companheiros também acataram a “sugestão” de que caberia ao Brasil a principal responsabilidade pela superação das assimetrias. A finalidade prática do Focem foi duplicar o trabalho de entidades multilaterais de financiamento, com base numa seleção basicamente política dos projetos a serem beneficiados com o seu apoio financeiro. Não existe nenhuma evidência de que o Focem conseguirá atenuar as “assimetrias estruturais” – que são o resultado de condições existentes nos mercados de forma quase permanente, ou de vetores ainda mais resistentes a ações governamentais de reduzido escopo transformador ou de impacto financeiro modesto – e pode, ao contrário, introduzir novas deformações nos sistemas de financiamento a projetos de desenvolvimento.
3. Propostas
O Focem é um erro, e o pior é que foi cometido voluntariamente pelo Brasil. Como os demais países se aproveitam disso para colocar seus projetos pouco vendáveis ao BID e ao BIRD, ou mesmo à CAF, é evidente que eles não vão querer se desfazer de tão generosa fonte de financiamento, além do mais pouco exigente, entregue a um punhado de burocratas da diplomacia, sem maior expertise técnica na análise dos projetos ou sem qualquer discernimento para fazer uma análise de custo-benefício. O argumento de que ele representa muito pouco do PIB do Mercosul, sendo, portanto, insuscetível de corrigir qualquer “assimetria”, fantasmagórica ou real, parece difícil liquidar essa bizarrice sem atuar de maneira unilateral, e pouco generosa. Talvez o Brasil pudesse repassar o encargo para a Unasul, que conta com outros inconscientes e inconsistentes políticos e econômicos tão despreparado quanto foram os companheiros.
A Unasul, teoricamente, deveria se ocupar de integração física, nas estruturas existentes ou em outras a serem propostas pelo Brasil, com o que se poderia encerrar mais um episódio de trapalhadas companheiras, com custos voluntariamente assumidos pelo Brasil. A rigor, se o Mercosul deixou de ser exclusivamente econômico e comercial, e também passou a ser político e social, como argumentam os companheiros, cabe traduzir essa imensa revolução na prática e eliminar mais esse monstro metafísico que faz parte da herança maldita dos companheiros.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 15/08/2014
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