O que eu pensava do Brics em 2014?
Continuo pensando o
mesmo
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: revisão de trabalho; finalidade: esclarecimento público]
Em 2014,
depois de ter feito dois ou três trabalhos sobre o Brasil no Brics – o que me
rendeu profunda e acrescida inimizade do antigo chanceler lulopetista –, eu fui
convidado por um acadêmico português a colaborar num livro em preparação sobre
esse grupo meio esquizofrênico (sim, penso isso dessa coisa). Hesitei um pouco,
pois eu me encontrava há mais de dez anos numa espécie de exílio interior, para
não dizer ostracismo completo, na diplomacia, trinta anos depois de uma
carreira razoavelmente bem sucedida, a não ser por essa “pedra no meio do
caminho” que representou o regime lulopetista, que por boas e más razões me
deixou no deserto durante TODA a duração dos governos mais corruptos que jamais
ocuparam o poder no Brasil.
Acabei
aceitando, e escrevi o trabalho aqui referido, disponível livremente aos
interessados:
2600. “Brasil no Brics”, Hartford, 16 Abril 2014, 33 p.
Contribuição a obra sobre o Brics do
ponto de vista do Brasil. Publicado In: Jorge Tavares da Silva
(ed.), Brics e a Nova Ordem Internacional (Casal de Cambra: Caleidoscópio; Aveiro: Mare Liberum, 2015,
320 p.; ISBN: 978-989-658-279-1; p. 71-115). Academia.edu (link: https://www.academia.edu/10200076/108_Brasil_no_Brics_2015_).
Agora, em
janeiro de 2019, ratifico, confirmo, reafirmo, apoio, continuo sustentando
TODOS os argumentos por mim defendidos nesse ensaio, sobretudo os de natureza
política e diplomática. O texto mereceria, obviamente, alguma atualização
quanto aos dados, pois muita coisa mudou desde 2014, não exatamente em relação
ao que eu penso – pois continuo pensando exatamente igual – mas em relação à
própria dinâmica dos Brics e às mudanças ocorridas no sistema mundial –
sobretudo nos últimos dois anos – e no Brasil, pois tivemos um processo de
impeachment, um governo de transição (que os lulopetistas chamaram sempre de
"governo golpista"), e agora estamos ao início de um novo governo,
supostamente oposto em quase tudo aos governos anteriores, mas que parece
manter, fundamentalmente, a mesma postura quanto ao Brics. Eu não, eu continuo
mantendo a minha posição e ela está claramente expressa na última seção desse
trabalho, que os interessados podem acessar no link fornecido: https://www.academia.edu/10200076/108_Brasil_no_Brics_2015_.
Quanto à
atualização, eu faria apenas duas, uma relativa aos "regimes"
políticos do Brasil, a outra em relação à matriz SWOT relativa ao Brasil,
justamente em função dessas mudanças (que aliás ainda não vieram). Apresento
abaixo essas duas atualizações (indicadas em vermelho, para destacar a diferença
em relação a 2014).
Quadro 1
Constituições e regimes políticos no Brasil,
1824-2019
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Constituições
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Tipo de instituição
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Características
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1a.: 1824
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Outorgada; longa duração, 65 anos de
regime parlamentar
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Pedro
I dissolve a Constituinte; quatro poderes, inclusive o Moderador, exclusivo
do imperador, podendo dissolver a câmara; voto censitário;
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2 a.: 1891
|
Promulgada; emendada, eleições
fraudadas
|
Regime
republicano federativo, autonomia dos estados; presidencialismo de 4 anos,
sem reeleição; voto restrito aos alfabetizados; Estado laico;
|
3 a.: 1934
|
Promulgada; representação corporativa
|
Centralização,
nacionalismo econômico; direitos sociais e laborais; direito de voto às
mulheres; analfabetos continuam excluídos;
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4 a.: 1937
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Outorgada; fecha o Congresso
|
Autoritária,
inaugura o Estado Novo: fechamento do congresso, dissolução dos partidos;
centralização
|
5 a.: 1946
|
Promulgada por Assembleia
Constituinte
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Tensão
entre a maioria presidencial e o Congresso, de base proporcional, fragmentado
pelo aumento do número de partidos e coalizões heteróclitas;
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Emenda: 1961 Plebiscito: 1963
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Regime parlamentar; Volta ao
presidencialismo
|
Crise
política de substituição presidencial contornada por um governo de gabinete:
instabilidade; plebiscito opera retorno ao presidencialismo; novas crises;
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Golpe 1964; Ato Institucional
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Primeiro Ato (sem número), seguido de
outro: 1965
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Regime
autoritário iniciado com golpe militar em 1964; novo ato dissolve os partidos
políticos; eleições indiretas para presidente e governadores;
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6 a.: 1967
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Outorgada; Comissão Juristas
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Decretos-leis
diretamente aplicáveis; eleições para presidente por colégio eleitoral:
generais presidentes
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Emenda: 1969
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Outorgada por Junta Militar
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Novas
restrições no sistema político, por meio de atos institucionais outorgados
pelo regime militar;
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7 a.: 1988
|
Promulgada: 315 artigos, 573 parag.
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Retorno
ao regime democrático, descentralização; voto do analfabeto; extremamente
prolixa;
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Plebiscito consultivo: 1993
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Tipo de regime e forma de governo
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Previsto
nas disposições transitórias da CF-1988: confirma governo republicano e
presidencialismo;
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Emenda: 1997
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Reeleição
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Cargos
majoritários; mandato presidencial de 4 anos.
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1988-2018
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100 emendas à CF
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Acréscimos e correções; detalhamento excessivo.
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2002
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Eleição de Lula: PT chega
ao poder
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Pode ser caracterizado como mudança de regime em função das muitas
transformações que se seguiram.
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2003-2010
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2 mandatos de Lula com
apoio popular e muita corrupção
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Início do regime mais corrupto da história do Brasil, populista
econômico, socialmente distributivista e destrutivo no plano
político-institucional; sucesso.
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2011-2016
|
Mais do mesmo: inépcia,
corrupção
|
Eleição e reeleição de Dilma Rousseff: sucessora e destruidora dos
governos do PT, por incompetência.
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2016-2018
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Impeachment: fase de transição
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Governo reeleito (2014) do PT é denunciado por casos de corrupção;
impeachment, eleições divisivas.
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2019-202?
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Governo de direita: Jair
Bolsonaro
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Início de um governo declaradamente de direita: mudanças
anunciadas, ainda não implementadas.
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Elaboração: Paulo Roberto
de Almeida (atualizada até 19/01/2019).
|
No que se refere à matriz
de “fortalezas” e “fraquezas” do Brasil, nos quadros doméstico e internacional,
muito pouca coisa mudou, do lado dos fatores objetivos de suas vantagens
comparativas e das várias “desvantagens” auto-infligidas, sobretudo no campo da
produtividade e da educação, que continuam – e aparentemente continuarão por
muito tempo ainda – medíocres, com chances mínimas de alterações positivas nos
próximos anos, a menos de uma mudança radical na mentalidade das elites, que
são elas mesmas de uma mediocridade exemplar. Eis o meu quadro ligeiramente
modificado:
Quadro
2
Quadro
SWOT para o Brasil
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Ambiente
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Fatores Positivos
|
Fatores Negativos
|
Interno
|
Grande território; diversidade e
abundância de recursos naturais; fontes diversificadas de energia
(renováveis, em grande parte); bônus demográfico (mas
menor proporção de ativos); regime democrático; expansão da economia
de mercado; população receptiva à globalização; talentos individuais
disponíveis; unidade cultural, mesma língua, sem conflitos religiosos;
federalismo atuante; relativa estabilidade
econômica; riscos sociais moderados; flexibilidade adaptativa da população e
grande tolerância nos costumes e nos modos de
vida.
|
Exploração predatória dos recursos
naturais; baixa capacidade tecnológica de transformação; matriz energética
sendo “poluída” por novos recursos em fósseis; mercado interno ainda de baixa
renda; crescimento acelerado do número de velhos; altos custos previdenciários
e de gastos com saúde; sistema político disfuncional e democracia de baixíssima qualidade; altos níveis de tributação
regressiva; aumento da delinquência, dos particularismos culturais, raciais e
de gênero; gastos públicos elevados; baixa produtividade pela má educação;
burocracia estatal ineficiente.
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Externo
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Enorme capacidade para expandir a oferta
de produtos básicos, sobretudo alimentares; agricultura capitalizada,
produtividade garantida por P&D e administração conectada a mercados;
lições das crises financeiras e da dívida externa trouxeram menor dependência
e altas reservas internacionais; atração de IED, pelas oportunidades de
mercado; mão-de-obra sendo formalizada; prêmio de risco reduzido e depois aumentado, rebaixado
no grau de investimento; diplomacia profissional qualificada, convivendo com diplomacia partidária e eventuais intrusões amadoras.
|
Uso extensivo, mais do que intensivo, dos
recursos naturais; políticas setoriais (industrial e comercial) incompatíveis
com aumento da oferta externa; má infraestrutura de exportação; baixo
coeficiente de abertura externa; poupança interna insuficiente; oferta
externa de baixo valor agregado, baixa elasticidade; mão-de-obra protegida,
cara; baixa competitividade externa; inserção reativa na globalização;
volatilidade das políticas econômicas externas, defensivas; política externa: da esquerda à direita, com liberalização comercial e abertura econômica externa.
|
Elaboração: Paulo Roberto de Almeida,
03/03/2014 e revisão em 19/01/2019.
|
No que se refere,
finalmente, a meus argumentos políticos, em relação às posturas dos governos
brasileiros no campo da política externa, e especificamente no tocante à
chamada “diplomacia Sul-Sul”, confirmo inteiramente meus argumentos de 2014, como expressos nas duas últimas
seções desse meu trabalho, como transcrevo seletivamente a seguir:
(...)
5. A
política externa brasileira desde 2003 e sua atuação
no âmbito do Brics
Como típico partido
esquerdista latino-americano, a “política internacional” do PT sempre foi
marcada por um anti-imperialismo instintivo e por um antiamericanismo infantil,
o que sempre o colocou do lado dos adversários do grande irmão hemisférico,
quaisquer que fossem eles. Também fazia parte dessa postura um apoio de
princípio às “lutas dos povos oprimidos” contra as “potências hegemônicas”, e
um compromisso de forma e de substância com os autoproclamados regimes
progressistas ou de esquerda, na região e fora dele. Deve-se igualmente
considerar os laços íntimos mantidos por vários dos seus dirigentes, saídos da
guerrilha contra o regime militar, com os dirigentes cubanos, além de diversos
outros vínculos cultivados com partidos e movimentos de esquerda ao redor do
mundo, mesmo quando fossem ditaduras que de outro modo sufocavam os direitos
dos trabalhadores que o partido dizia defender no Brasil.
Antes mesmo de assumir o
poder, Lula e o PT já prometiam conduzir uma política externa alinhada com
essas teses típicas dos movimentos esquerdistas dos anos 1960 e 70, mas que
tinham sido restauradas e colocadas sob um novo formato depois da queda do muro
de Berlim, entre outros mecanismos através do Foro de São Paulo, criado em
1990, sob a iniciativa aparente do PT, mas de fato controlada totalmente pelos
dirigentes comunistas cubanos. Tendo visitado a China um ano antes de sua
vitória eleitoral de 2002, Lula prometia estabelecer, de modo preventivo e
unilateral, uma aliança estratégica com a República Popular, que ele imaginava
que viria a ser o grande parceiro das causas políticas internacionais do PT no
governo. Aliás, antes mesmo de se instalar no comando do Estado, Lula já
movimentava a diplomacia brasileira em apoio a seu amigo Chávez, que enfrentava
grandes dificuldades com a oposição política a seu modelo socialista,
requerendo, e obtendo, do governo FHC um navio inteiro carregado de
combustíveis, para romper uma longa greve dos funcionários da companhia estatal
venezuelana de petróleo. Não admira, assim, que todas as demais iniciativas
diplomáticas de seu governo tenham sido no sentido de apoiar esse tipo de
regime, na região e no mundo, e de se contrapor, numa linha coincidente com o
regime comunista cubano, à maior parte das políticas inspiradas ou sustentadas
pelos Estados Unidos, na região ou alhures (como no caso da invasão do Iraque,
por exemplo).
O primeiro mandato do
presidente Lula foi marcado, no plano externo, por seus esforços intensos para
criar mecanismos exclusivamente sul-americanos de coordenação política – os
quais resultaram na criação da Unasul, embora não no formato talvez desejado
pela diplomacia do seu governo – e por iniciativas tomadas no âmbito da chamada
diplomacia Sul-Sul: criação do grupo Ibas, as cúpulas presidenciais entre
sul-americanos e chefes de Estado e de Governo dos países árabes e africanos,
além da busca de parcerias estratégicas com um número seleto de atores
“não-hegemônicos”, tidos como suscetíveis de responder a acenos no sentido de
“mudar a relação de forças no mundo” e de criar uma “nova geografia do comércio
internacional”. O mesmo determinismo geográfico marcou a maior parte de suas
viagens ao exterior, repetidas dezenas de vezes no contexto sul-americano e uma
dúzia de vezes em direção do continente africano, além dos parceiros
estratégicos na Ásia e em outras regiões.
As iniciativas tinham como
propósito reforçar o atingimento dos três principais objetivos diplomáticos do
governo Lula, como tais proclamados desde o primeiro dia do seu primeiro
mandato: a) o primeiro e o mais obsessivo era o de conquistar uma cadeira
permanente no Conselho de Segurança da ONU (pretensão, aliás, que nunca figurou
nos documentos políticos do partido, tendo sido mais bem impulsionados pelos
diplomatas que serviam ao seu governo); b) reforçar e ampliar o Mercosul,
fazendo dele o núcleo de um espaço econômico integrado na América do Sul, e
secundariamente uma espécie de fortaleza antiamericana nos planos político,
comercial e estratégico; c) concluir as negociações comerciais da Rodada Doha,
num sentido favorável às teses brasileiras, ou seja, obter uma ampla
liberalização dos mercados agrícolas (o que sempre figurou na agenda da
diplomacia profissional), ao mesmo tempo em que se afirmava a necessidade (já
em consonância com a ideologia econômica do partido) de preservar a “soberania
econômica” do país e assegurar “espaços de liberdade para a tomada de decisões
sobre políticas nacionais de desenvolvimento” (Almeida, 2012).
O projeto de se constituir
o Bric “diplomático” sequer entrou em cogitação durante o primeiro mandato de
Lula, embora a sigla estivesse “à disposição” desde 2001 e que as relações com
seus integrantes designados já estavam sendo impulsionadas nos planos bilateral
e plurilateral. Com efeito, paralelamente a essa consolidação das parcerias
estratégicas (previamente definidas), a diplomacia de Lula deu enorme importância,
durante o primeiro mandato, às ações desenvolvidas no âmbito do Ibas, embora
com objetivos mais vinculados ao desenvolvimento e a cooperação trilateral –
ademais de certa coordenação na agenda multilateral – do que propriamente à
grande ambição de estabelecer uma competição com o grupo hegemônico no
ordenamento mundial tradicional. A ideia do Bric foi amadurecendo lentamente, à
medida que o bloco virtual recebia a atenção dos investidores internacionais, a
partir, justamente, dos fatores selecionados na sua atratividade de origem: as
oportunidades de retornos ampliados com base nas dimensões demográficas e nas
dinâmicas de mercados em crescimento rápido. O Brasil não se caracterizava
especialmente por taxas elevadas de crescimento econômico, tanto quanto um
ambiente de negócios desimpedido era apenas parcialmente válido no caso do
Brasil, mas a forte personalidade de Lula, e sua ativa diplomacia, compensavam
os magros resultados apresentados pelo país em termos de crescimento e de
abertura aos investimentos.
Quando a iniciativa
finalmente frutificou, já no segundo mandato de Lula, com a plena aceitação do
acrônimo Bric e sua rápida apropriação política pelos chanceleres da Rússia e
do Brasil, a diplomacia do governo Lula se movimentou rapidamente para consolidar
o que, até então não era apresentado nem como grupo, nem como bloco, mas como
um simples foro de conversações e de convergência política em direção de
objetivos comuns no plano da agenda mundial. Essa convergência, justamente, se
revelou mais complicada do que as promessas iniciais. Diferentemente do Ibas,
mas animado por propósitos semelhantes, os quatro membros do Bric, no que se
refere à sua primeira agenda de trabalhos, em nível ministerial, buscavam uma
coordenação para um posicionamento comum em relação a diferentes temas em
debate no cenário mundial, em especial no terreno econômico, que era o elemento
pelo qual eles foram distinguidos pelo economista do banco de investimentos que
propôs a sigla, ou seja, a capacidade de serem grandes mercados emergentes,
suscetíveis de acolher oportunidades de ganhos ampliados para os investidores
globais.
Para a diplomacia de Lula,
os objetivos principais eram de natureza política, a exemplo do não obscuro e
pouco discreto desejo de conseguir uma cadeira permanente no CSNU. Nesse
terreno, não houve, porém, unidade de propósitos no Bric no tocante à reforma
da Carta da ONU e à ampliação de seu Conselho de Segurança, para a grande
frustração dos dois candidatos a cadeiras permanentes, o Brasil e a Índia. Os quatro
Brics tampouco obtiveram perfeita coordenação econômica no que se refere a
temas inscritos na agenda das reuniões técnicas, ministeriais ou de cúpula do
G20 financeiro, entre eles o da reforma das instituições de Bretton Woods ou as
medidas a serem adotadas com relação a questões sensíveis para certos países,
mas de interesse de alguns membros do Bric, como por exemplo o da chamada
“guerra cambial”, terreno no qual nunca foram registrados resultados tangíveis,
inclusive em virtude de uma oposição não coincidente dos dois membros mais
poderosos do G20, os EUA e a China. Essa coordenação parece se afigurar ainda
mais problemática a partir da incorporação, um ano depois da primeira cúpula,
da África do Sul, com o que o grupo passou a ser conhecido como Brics. O Brasil
não era, a princípio, favorável a essa nova adesão, preferindo preservar uma
diferenciação do Bric em relação ao Ibas, mas teve de se dobrar aos interesses
da China nesse particular. (...)
(...)
Independentemente dessas
contradições em questões tópicas ou em temas setoriais, é um fato que a
diplomacia do PT se sente mais à vontade no âmbito do Brics do que no diálogo
com as potências do G7, embora o primeiro grupo tenha tido um desempenho
modesto na promoção de uma agenda alternativa à oferecida pelos países
avançados, mais concentrados na liberalização ampliada dos mercados, na defesa
de regras mais estritas para propriedade intelectual e para investimentos e
fluxos financeiros, e em meio ambiente, do que nas questões do desenvolvimento,
do acesso à tecnologia e na abertura (mas seletiva) dos mercados agrícolas,
como pretendem os países em desenvolvimento, em primeiro lugar o Brasil, a
Índia e a África do Sul. Dentre os temas do G20 financeiro, tem havido certo
consenso no seio dos Brics – exceto pela questão cambial – quanto à reforma de
foros e instituições dessa área, como o poder de voto nas organizações de
Bretton Woods, bem como a preservação da soberania nacional nos fluxos
financeiros (como controles de capitais e intervenções cambiais, por exemplo).
Esta é, provavelmente, uma das poucas áreas em que pode existir convergência
entre os Brics, a despeito de diferenças notórias em várias outras.
De fato, os Brics possuem,
na economia mundial, um peso bem maior do que o seu poder de voto conjunto nas
instituições de Bretton Woods, embora estas considerem outros critérios, que
não apenas o PIB – como a participação no comércio e nas reservas
internacionais –, para fins de cálculo do volume de cotas requeridas nas
tomadas de decisão. Esta é provavelmente a razão essencial para que, por
ocasião da cúpula de Fortaleza, realizada em julho de 2014, tenha sido aprovada
a criação de um banco dos Brics (com capital autorizado de US$ 100 bilhões,
subscrito à razão de 50%, dividido igualmente entre eles) e de um fundo
contingente de reservas destinado a empréstimos emergenciais (pelo valor total
de US$ 100 bilhões, com quase a metade integralizado pela China). A rigor,
nenhum dos Brics necessitaria, por motivos estritamente econômicos, dos
recursos dessas duas novas instituições, a menos que seja para contornar os
requerimentos técnicos mais exigentes para os projetos que são financiados pelo
Banco Mundial e para aceder a uma nova fonte de capitais não condicionados a
políticas de ajuste no modelo do FMI; em ambos os casos, trata-se,
fundamentalmente, de uma decisão política, que tem a ver com o prestígio
internacional dos Brics, e com a utilização do banco para projetos de
desenvolvimento em direção de países que talvez não possam ser adequadamente
assistidos pelas instituições de Washington.
O poder econômico real e a
capacidade financeira de alavancagem operacional desses dois novos
instrumentos, que confirmam certa consolidação institucional do Brics, residem
evidentemente na China, que deverá moldar a maior parte das regras de gestão e
de mobilização de capitais segundo seus próprios interesses nacionais. De toda
forma, vários países da América Latina – e um número expressivo deles na África
– têm na China um grande, em muitos casos o maior, parceiro comercial, posição
que vai se estendendo igualmente aos terrenos financeiro e de investimentos.
Assim, seja no caso do Brasil, seja no de outros países, que buscam
compreensivelmente apresentar a parceria com a China como constituindo um
relacionamento igualitário, tanto a direção, quanto a forma e o conteúdo da
agenda de relacionamentos são determinados em grande medida pelo país asiático.
Tal realidade também se reflete no plano plurilateral do Brics.
6.
Conclusões: o que busca o Brasil nos Brics?; o que deveria, talvez, buscar?
Esta é uma pergunta que
não pode ser respondida com esse sentido unitário, ou nacional, que está
subentendido pelo conceito de país (ou de Estado). Como é o caso de grande
parte das, senão de todas as, iniciativas de política externa tomadas no âmbito
da diplomacia brasileira entre 2003 e 2016, não
se pode dizer, exatamente, que elas tenham sido concebidas por seu staff diplomático,
ou que elas correspondessem a determinado
consenso nacional em torno das opções escolhidas, das políticas adotadas, das
ações empreendidas, em âmbito regional, bilateral, pluri ou multilateral. Não;
elas são claramente o resultado de escolhas do partido hegemônico,
superficialmente temperadas por alguns formalismos diplomáticos, mas
profundamente impregnadas por conceitos, objetivos e metodologias diretamente
produzidas a partir da Weltanschauung
partidária do PT, expressando, basicamente, suas concepções políticas (em
alguns casos, até, suas práticas semiclandestinas, que se desdobram
paralelamente à ação do Estado brasileiro. Esta é uma constatação que pode ser
feita a partir de uma análise do discurso e da prática da diplomacia brasileira
entre 2003 e 2016, ainda que tenham sido
elaboradas basicamente – por vezes até inteiramente – no âmbito institucional das
relações exteriores oficiais, mas elas expressavam
um profundo sentido partidário, como jamais ocorreu antes no Brasil.
É sob essa perspectiva que
cabe interpretar a participação do Brasil do PT no
Brics, bem como as modalidades adotadas para definir políticas puramente
diplomáticas, ou de natureza econômica, ou ainda com certo sentido social ou
cultural, conforme seja o caso dos temas na agenda. Seria possível conceber o
Brasil no Brics sob um outro tipo de governo? Provavelmente sim, ainda que as
escolhas, os discursos e as opções políticas e diplomáticas pudessem ser
outros, parcialmente ou totalmente diferentes das iniciativas que foram sendo
tomadas desde meados da década passada, e que se materializaram no tipo de
participação que o governo do PT vem imprimindo à ação do Brasil no Brics. As
alternativas às políticas efetivamente adotadas no Brics, eventualmente tomadas
por um governo diferente – de inspiração liberal clássica, possivelmente, ou
mesmo social-democrática da vertente reformista capitalista – talvez não fossem
tão radicalmente diferentes quanto as preferidas por um governo declaradamente
socialista (como ainda se pretende o PT), mas uma última reflexão sobre o
sentido do Brics, o que ele representa no mundo, e sobre os países que o integram,
pode oferecer uma plataforma conceitual para algumas reflexões conclusivas
sobre o papel do Brasil no Brics.
A primeira constatação a
ser feita é que o grupo, ou bloco, ou foro, é tão desigual, ou “assimétrico”,
quanto parece ser o Nafta, o acordo de livre comércio da América do Norte, com
a diferença que o Nafta aspira apenas a ser o que ele é, um acordo de livre
comércio, e não um instrumento para a coordenação de posições no plano
internacional. A China – como parece ser o caso dos EUA no Nafta – representa,
de certo modo, “metade” dos Brics para os componentes mais relevantes desse
grupo (economia, finanças, crescimento, investimento, etc.), ainda que Rússia,
por um lado, e Índia e Brasil, por outro, tenham certo peso na conformação dos
temas e formato das agendas dos encontros ministeriais e de cúpula, tanto
quanto nos termos das declarações aprovadas. Esta é uma realidade que se
coaduna com a presente fase de nova “guerra fria econômica”, em substituição à
velha Guerra Fria geopolítica que existia na era bipolar (...). Pode-se dizer
do Brics algo semelhante ao que Nixon havia dito ao ditador brasileiro, quando
de sua visita a Washington em 1972: “Para onde se inclinar o Brasil, se
inclinará a América Latina”. Exagerado, certamente, mas não é difícil concluir,
igualmente, que o Bric dificilmente poderá escapar do que se pode chamar de uma enorme
“sobredeterminação chinesa”.
A diplomacia do PT no
governo procurou fazer do Brics uma grande
alavanca de sua presença internacional, talvez como compensação por algumas
frustrações no plano regional da América do Sul, onde sua liderança nunca foi
acolhida de forma consensual; ao contrário, ela sofreu a oposição velada, mas
concreta, da Argentina, bem como de outros países, mesmo aqueles considerados
aliados no terreno das simpatias ideológicas, como poderia ser o caso da
Venezuela ou da Bolívia. Embora a consulta e coordenação de posições nos Brics
tampouco seja isenta de fricções e de interesses diferenciados, o grupo tem
procurado mostrar ao mundo uma frente comum que busca se apresentar como uma
alternativa à velha preeminência econômica e diplomática do G7 (que voltou ao formato anterior, em vista dos percalços da
Rússia no G8, como resultado de suas ações no entorno imediato, como no caso da crise política da Ucrânia).
A questão relevante para a
diplomacia brasileira, não suficientemente discutida seja no âmbito
profissional do seu corpo de servidores do Itamaraty, seja no plano da opinião
pública responsável (mídia, academia) ou da sociedade, de modo geral, é a de
saber se as iniciativas anteriores do governo
petista podem atender a todos os critérios,
constitucionais inclusive, que deveriam pautar as relações exteriores do Brasil
no âmbito multilateral e no quadro de suas relações bilaterais. Dois componentes
importantes dentre o conjunto de valores e princípios pelos quais o Brasil se
deve guiar em suas relações externas – mas regularmente e consistentemente
“esquecidos” ou obscurecidos pelo Brics, em suas reuniões e declarações – são
as dimensões dos direitos humanos e da democracia, temas que muito marcaram a
sociedade brasileira na sua longa trajetória de saída do regime autoritário dos
militares (1964-1985) para a igualmente lenta consolidação de sua democracia
política, mas que é ainda muito frágil no respeito aos direitos humanos, ou a
simples direitos elementares dos seus muitos cidadãos de condição social
modesta. Um tipo de preocupação ainda válido em 2019.
Democracia e direitos
humanos são moeda corrente nos encontros do G7, como de resto nos foros euro-atlânticos,
de modo geral, mas são bem mais raros, se por acaso aparecem, nos encontros do
Brics. Dos quatro integrantes originais do Bric, os dois ex-socialistas
apresentam características autoritárias, resultado de um legado de séculos de tradição
totalitária, e que ainda não evoluíram para democracias de verdade (e talvez
demorem a fazê-lo). Os outros dois apresentam trajetórias democráticas mais ou
menos consolidadas, ainda que com deficiências de funcionamento e de justiça
social, mas também são as economias de mercados que mais se aproximam dos
padrões capitalistas de organização. O quinto membro, já no quadro do Brics,
emergiu há menos de uma geração de uma longa história de segregação racial e de
Apartheid social, que ainda parecem pesar no seu processo de desenvolvimento e
de construção de uma nova institucionalidade; no plano social, ele parece longe
do ideal de uma sociedade inclusiva, de características multirraciais, como é,
por exemplo, o Brasil.
O Brasil, de todos eles,
era o que possuía as estruturas capitalistas mais avançadas, embora a China
venha fazendo enormes progressos nessa direção, podendo ser considerada,
atualmente, e sob certos aspectos, mais “capitalista” do que o próprio Brasil.
No plano do seu ordenamento social, o Brasil ostenta a mais moderna dentre as
sociedades do Brics: inclusiva, multirracial, religiosamente diversa e
tolerante, e aberta a todos os influxos externos da globalização capitalista. O
Brasil também parece ser a sociedade mais integrada – nos planos linguístico,
cultural, étnico e, talvez, religioso – o que permite, em princípio, melhores
formas de administração política, sem rupturas institucionais, com condições
mais favoráveis para a continuidade de sua modernização. O grau relativamente
avançado de democratização social – a despeito dos enormes defeitos de sua
superestrutura política, excessivamente marcada pela corrupção – pode tornar
mais lento o ritmo de crescimento econômico e os processos de adaptação aos
novos ambientes globais, mas isso também pode contribuir para uma maior coesão
em torno dos objetivos nacionais (...). Infelizmente, a educação de qualidade
ainda não parece fazer parte desses objetivos nacionais prioritários, e é isso
que torna mais lento o crescimento do Brasil, por representar uma enorme bola
de ferro amarrada aos vetores dos ganhos de produtividade.
Pode o Brics, enquanto
grupo, enquanto organização que parece tender a maior grau de formalização,
contribuir para o avanço político, econômico, social, espiritual, de seus
membros, individualmente, ou em conjunto? Talvez, mas conviria receber com
algum ceticismo sadio tais pretensões, que não parecem fazer parte da
“ideologia” dos Brics, se algo desse gênero existe como substrato “filosófico”
aos objetivos políticos e diplomáticos desse novo foro de consulta e
coordenação relativamente sui generis. Todo foro de consulta e coordenação
política é, por princípio, positivo nas diversas dimensões sobre as quais ele
atua, uma vez que reforça laços de cooperação e diminui, no mesmo plano de inserção
internacional, os pontos de fricção que porventura possam existir entre eles,
ou entre eles, como bloco, e outros membros da comunidade internacional. Mas
cabe reconhecer igualmente que a aproximação entre os Brics, e sua atuação
enquanto grupo, não se deu exatamente em torno de uma grande plataforma comum
de objetivos e valores voluntariamente compartilhados – como podem ter sido,
por exemplo, em suas respectivas esferas, a aliança atlântica e a integração
europeia – mas em razão de ganhos políticos e diplomáticos, de cálculos de
oportunidade que foram feitos pelos dirigentes dos países membros, em função de
uma determinada conjuntura da ordem internacional e de alguns traços
estruturais de suas próprias sociedades, de suas economias e de suas formações
políticas. O que une os Brics, portanto?
O que parece unir todos os
membros do Brics – ou pelo menos seus dirigentes atuais – numa mesma plataforma
comum de ação são duas características contingentes, que talvez possam ser
alteradas num futuro de médio prazo. No plano interno, eles parecem partilhar
da crença que os poderes do Estado são capazes de corrigir ou, caso necessário,
até a se contrapor a tendências ou ao fluxo “natural” dos comportamentos dos
mercados. Em outros termos, existe uma aposta implícita no sentido de que seus
próprios governos encontram-se em condições de influenciar decisivamente a ação
dos agentes primários dos mercados, o que pode, talvez, ser verdade para suas
respectivas empresas nacionais, mas se torna especialmente problemático no caso
de grandes empresas transnacionais, em especial considerando-se a natureza da
interdependência econômica contemporânea e dos circuitos da integração
produtiva e comercial.
No plano externo, eles têm
a pretensão de contrapor sua própria interpretação do que seja a democratização
das relações internacionais e o tratamento da agenda mundial de assuntos
correntes de forma diferente, em alguns casos oposta, ao que vem sendo
oferecido pelas tradicionais potências do G7, consideradas, implícita ou explicitamente,
como potências “hegemônicas”. A declaração emitida ao final do primeiro
encontro de cúpula (2010) estabelece claramente que os chefes de Estado estão
comprometidos com “o apoio a uma ordem mundial multipolar mais democrática e
justa, baseada no primado do direito internacional, da igualdade, do respeito
mútuo, da cooperação, na ação coordenada e na tomada de decisão coletiva de
todos os Estados.” Além disso, eles “reiteram seu apoio aos esforços políticos
e diplomáticos para resolver pacificamente as controvérsias nas relações
internacionais”.
Trata-se, obviamente, de
uma declaração tipicamente diplomática, que poderia ser igualmente subscrita
pelos países membros do G7, ou por quaisquer outros grupos regionais.
Observe-se, porém, a não referência a elementos que poderiam aparecer em
declarações do G7, como por exemplo a defesa dos direitos humanos, das
liberdades democráticas, ou de uma economia aberta à interdependência global.
Como pode ficar evidente pelas ações dos governos atualmente responsáveis nos
membros do Brics, nenhum desses países pode ser considerado, na superfície ou
nos seus fundamentos profundos, uma democracia liberal de mercado, e todos eles
partilham de uma crença comum que a economia deve, sim, ser submetida a regras
de ordenamento, ou de regulação, que contenha tendências “naturais” de mercado
que são, de uma forma ou de outra, consideradas “nefastas” do ponto de vista
dos objetivos políticos ou sociais que seus dirigentes pensam dever implementar
para salvaguardar seus objetivos enquanto Estados ativos na definição das
políticas nacionais de desenvolvimento que seus líderes pensam impulsionar
internamente. Algo pode mudar no Brasil, mas resta a
ver...
Este parece ser o “código
secreto” dos Brics, não explicitamente revelado em suas ações e muito menos em
suas declarações, mas implicitamente compreendidos nas iniciativas diplomáticas
que eles tomam, conjuntamente ou individualmente. Poderia ser diferente?
Talvez, mas seria preciso supor outros tipos de governança na China e na Rússia,
principalmente, e secundariamente na Índia e no Brasil, subsidiariamente na
África do Sul, para conceber uma ação conjunta dos Brics de forma ligeiramente
ou radicalmente diferente da que vem sendo adotada pelo grupo desde sua
emergência formal enquanto foro de coordenação política e diplomática. No que
se refere ao Brasil sob a hegemonia do Partido dos
Trabalhadores e da figura de Lula, a participação do Brasil no Brics correspondia ao que vinha
sendo feito em outras esferas e outros contextos, nos planos regional,
bilateral ou multilateral. O sentido do Estado como “corretor” dos
desequilíbrios dos mercados, o papel dirigente da vanguarda esclarecida a
organizar a sociedade e guiar os passos dos cidadãos no emaranhado da
burocracia estatal (mas controlada pelo partido), a suposição de que o mundo é
composto por interesses conflitantes em face dos quais algumas iniciativas
devem ser tomadas com algum sentido de exclusão – como numa concepção econômica
equivalente ao chamado jogo de “soma zero” –, todas essas características cabiam no sentido da anterior
ação diplomática tomada pelo governo do PT para sua participação no Brics e
também para diversas outras iniciativas de caráter regional ou plurilateral. Cabe ver o que mudará.
O Brics, na verdade, era uma das poucas iniciativas adotadas, ou
“incorporadas”, pelo governo do PT, não resultando diretamente de seu
planejamento político, pelo menos não diretamente. Mas ele correspondia inteiramente ao que partido teria feito
se lhe fosse dada oportunidade de conceber uma forma de ação diplomática que
melhor expressasse sua concepção do mundo e determinadas iniciativas políticas
no âmbito internacional. Se o Brics não foi feito para o PT, precipuamente, o
PT se encaixou bem no espírito político e
diplomático do Brics, pelo menos em seu formato político atual, com a
“ideologia” que lhe é implícita nas declarações e ações de seus dirigentes.
Pode ser que o mundo
esteja, efetivamente, no limiar de uma nova ordem internacional, que se
pretende multipolar, democrática, respeitadora das soberanias nacionais, com
total autonomia dos Estados sobre suas jurisdições respectivas (e algumas até
mais além). Se este é o caso, a História de fato não terminou, e o mundo ainda
conhecerá novas astúcias da razão a guiar os passos dos dirigentes políticos
das novas potências emergentes. Será o Brasil uma delas? Talvez, mas a História
justamente não terminou...
Referências
seletivas (sem
as demais remissões bibliográficas):
Relação de
Originais n. 2600; Publicados n. 1162.
[1a versão: Hartford, 16 de Abril de 2014;
2a versão: Hartford, 21 de Julho de 2014;
Revisão formal: 16 de Janeiro de 2015]
===========
Continuidade em 19/01/2019:
O que foi transcrito
acima, retirado das duas últimas seções do trabalho de 2014-2015, ainda corresponde
a muito do que penso, atualmente, embora eu talvez devesse efetuar uma revisão
completa de alguns elementos relativos à participação do Brasil nesse grupo,
assim como em demais foros e instâncias das relações exteriores do país, tal
como essa participação pode se exercer a partir do novo governo, eleito em
outubro de 2018 e inaugurado em 1/01/2019. Sinto entretanto não poder exercitar
esses meus dotes analíticos, uma vez que ainda não estão fixados, de forma
definitiva, em sua atual (janeiro de 2019) configuração, a real postura
diplomática desse novo governo, que carece ainda de uma exposição mais clara, bem
mais completa, e transparente, dos seus principais vetores de funcionamento, de
seus princípios de funcionamento, de seus novos valores e prioridades para a
política externa do país e para a operacionalização de sua diplomacia,
aparentemente em fase de grandes mudanças organizacionais e até, se ouso dizer,
“espirituais”.
Se, e quando, essa nova
diplomacia for claramente exposta, em especial em relação ao Brics, terei
prazer – o que considero até uma obrigação, mas puramente no plano intelectual,
sem qualquer conotação funcional ou profissional – em expressar minha opinião
sobre essas novas orientações, como aliás sempre fiz, em todas as etapas de
minha já longa carreira diplomática, e bem mais do que isso, no decorrer de
toda a minha vida acadêmica e intelectual. Até lá...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de janeiro de 2019
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