Poder
militar e economia nacional: argumentos esparsos
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 13 de julho de 2013;
Revisão: Brasília, 19 janeiro 2019
Os argumentos abaixo reproduzem
parte de um debate que mantive, três anos atrás, com um colega de carreira,
João Paulo Soares Alsina, que especializou-se em temas de estratégia, defesa e
segurança nacional, por motivo da publicação de mais um livro desse excelente
analista das questões relativas a assuntos de defesa. Meu próprio conhecimento
dessas áreas é lacunar e imperfeito, pois nunca me dediquei, realmente, ao
estudo sistemático de temas de defesa e segurança, ocupando-me bem mais de
assuntos relativos às relações econômicas internacionais do Brasil, integração
econômica e comércio e finanças internacionais. Creio, no entanto, dispor de
algum conhecimento sobre essas interfaces disciplinares que envolvem o poder
militar e o potencial econômico nacional, daí o conceito de “argumentos
esparsos” do título.
As conexões entre o poder militar e
a economia do país, estão, obviamente, intimamente entrelaçadas, e elas têm a
ver, de certa forma, com a estratégia de desenvolvimento de um povo. Emprego
estratégia num sentido largo, pois não creio que todo um povo, uma nação
inteira, tenha “sentado” alguma vez para refletir sobre os caminhos que estão
abertos para seu itinerário político e econômico. Mesmo os estadistas que
eventualmente possam ter estado à frente da nação em alguns momentos decisivos
de seu itinerário histórico podem ter alguma consciência da importância de
escolher algumas vias, sobre outras alternativas, como as melhores para a
prosperidade futura da nação, mas mesmo eles não controlam todos os elementos
que entram na difícil equação do crescimento sustentado, com transformação
produtiva e distribuição relativamente equitativa dos frutos desses
crescimento, num ambiente de liberdades democráticas e pleno respeito dos
direitos humanos.
Essa é uma equação complexa, que os
povos vão cumprindo aos “trancos e barrancos”, para empregar uma frase de Darcy
Ribeiro, mas que alguns povos fizeram melhor do que outros, em função de
elementos estruturais – ligados à sua formação histórica – e de fatores
contingentes, que são aqueles derivados das lideranças políticas e dos caminhos
que estas imprimem à nação.
Olhando-se o mapa da prosperidade no
mundo de hoje é evidente que alguns povos são mais prósperos do que outros, e
outros, ainda, além de prósperos, também são poderosos, embora possa haver
poderosos que não são prósperos, e prósperos que são débeis, militarmente. Mas,
podemos dizer que existe uma correlação positiva, não mecânica, entre potência
econômica e poderio militar, e creio que estes dois conceitos balizam este
debate, que pode ser feito de maneira tópica e sistemática.
Fortalecimento da
economia nacional antes do reforço do seu poder militar?
Nenhum processo que envolve um número
complexo de variáveis – estamos falando da construção da prosperidade, como
forma de se ter a base econômica para poder dispor de capacidade de projeção
externa – ocorre naturalmente. Existem processos deliberados de construção de
potência econômica e de poder militar – chamemo-los de “via bismarckiana” – e
existem processos que respondem a tendências naturais, eventualmente
impulsionados por lideranças clarividentes, mas que só podem “comandar”
mudanças decisivas nos itinerários de seus povos respectivos a partir de certo
acúmulo de condições favoráveis para responder aos estímulos e impulsos vindos
de cima. Podemos chamar esta segunda via de “americana”, como hipótese.
A Alemanha, pela via bismarckiana,
esteve na origem da três guerras que definiram o destino da Europa desde 1870,
e que de certa forma também definiram o destino do mundo, ao precipitar a
Europa na decadência com sua “segunda guerra de Trinta Anos”, o que a afastou
do comando do mundo em favor de potências relativamente periféricas, como foram
os EUA e a Rússia-URSS, mas por vias muito diferentes uma da outra. Houve uma
via americana para a prosperidade, o que trouxe potencial econômico e poderio
militar ao país, e houve uma via russa para os mesmos fatores, mas que passou
pela autocracia, pelo escravismo stalinista, pelo imenso desperdício de
recursos humanos e rebaixamento cultural de todo um povo, durante praticamente
todo o século 20. Reconheçamos que a via americana foi mais positiva. Como foi
essa via?
Em 1870 os EUA ainda estavam se
recuperando de sua longa, cruel, mortífera guerra civil – que até hoje foi a
que mais matou americanos, em qualquer conflito – e recém iniciavam o caminho
para a sua prosperidade (o livro Economic
Growth, de Robert Barro e Xavier Sala-i-Martin, com introdução disponível
no site do MIT, dá os elementos factuais de seu crescimento desde 1870, com as
alternativas possíveis). Na verdade, os EUA só se tornaram a primeira potência
econômica a partir da última década do século 19, numa época em que a Alemanha
já tinha superada a Grã-Bretanha como maior economia europeia e grande
exportadora planetária.
Os Estados Unidos não parecer ter
sido uma potência militar desde a 1a Guerra, pois acredito que isso
só ocorreu com sua entrada na 2a Guerra justamente, e ainda assim a
Alemanha permaneceu durante algum tempo como a principal máquina de guerra da
guerra, possivelmente até 1943. Os EUA que venceram a Alemanha não foram a
potência militar e sim a potência econômica (industrial), e a URSS que venceu a
Alemanha nazista foi a horda de contingentes humanos que Stalin mandava para a
frente de batalha, continuamente, não um oponente militar equivalente (os
tanques ajudaram, mas teve muita ajuda ocidental, sem a qual a URSS não teria
resistido à ofensiva alemã em 1941).
Os EUA salvaram a Europa ocidental
duas vezes de uma derrota para a Alemanha, mas na Grande Guerra (1917-18) eles
o fizeram ainda com base no número de soldados e no seu aprovisionamento, não
porque fossem superiores estrategicamente. Eles tinham mais recursos, mas só
entraram na guerra depois do afundamento do Lusitania e de algumas outras
provocações alemãs (aliás, se, na Segunda Guerra, a Alemanha não tivesse
declarado guerra aos EUA, três dias depois de Pearl Harbor, talvez o cenário
militar na Europa fosse um pouco diferente, não como resultado, mas como
desenvolvimento). Os EUA não tinham uma máquina de guerra eficiente até a
Segunda Guerra, portanto, pois antes eles confiavam no seu isolamento do mundo,
e na proteção natural dada por um território continental sobre dois oceanos,
com uma marinha razoável, e um exército mais ou menos pífio.
Mesmo depois de serem a primeira
potência econômica planetária, os EUA não investiram tanto quanto os europeus e
o Japão em meios militares, pois não eram um império colonialista e não
pretendiam dominar outros povos. Mais importante: não se sentiam ameaçados. Algumas
perguntas podem ser feitas a esse propósito, envolvendo os Estados Unidos e o
Brasil, a título hipotético.
OS EUA precisavam construir o seu
potencial econômico para dispor de um formidável poderio militar? Não, tanto
que o seu potencial econômico foi construído naturalmente, não da maneira
bismarckiana, para serem preeminentes e poderosos, mas porque a sua formidável
máquina produtiva se colocou em marcha, pela via dos mercados, não do governo,
porque eles construíram, naturalmente, um modo inventivo de produção, que lhe
trouxe riqueza, prosperidade, preeminência econômica, mas não militar, e assim
foi até 1939 praticamente.
O Brasil precisa construir o seu
potencial econômico? Certamente, não pelo PIB em si, mas pela prosperidade e
bem-estar do seu povo, pois ele já tem o oitavo PIB mundial; mas seu povo
continua miserável e o país tem um ridículo poderio militar.
O Brasil precisa construir o seu
poder militar? Eu diria que não, pois ele não dispõe de poder econômico, e não
tem nenhuma ameaça em vista, como não tinham os EUA, desde 1870 até 1941,
praticamente (enfim, um pouco antes, mas os esforços não foram sistemáticos). Naquela
época, e na cabeça do chanceler Rio Branco, a ameaça provinha da Argentina, daí
o programa naval e outras coisas. Certo, mas isso não era uma ameaça à
sobrevivência da nação, tanto que a construção do nosso poderia foi
descontinuada, em parte por falta de meios econômicos, em parte porque o
cenário podia ser contornado diplomaticamente, como Rio Branco sempre fez.
O Brasil precisa hoje fazê-lo? Minha
resposta é negativa, mas compreendo que os militares prefiram uma resposta
positiva a essa questão, o que faz parte da sua essência profunda. Eles não
seriam militares se concordassem com um fraco poder militar. A questão está em
saber que PIB sustenta o esforço para construir tal poder, sem mencionar a
questão ainda mais importante que é a de saber que tipo de poder militar
construir. Os militares provavelmente vão dizer que eles precisam de toda a
panóplia militar, pois as ameaças são imponderáveis, e eu diria que a barreira
do PIB seria nesse caso ainda maior. Recomento uma reflexão entre fins e meios,
no plano estratégico.
O Brasil necessita,
realmente, de um grande poder “duro”?
O poder duro das FFAA é relevante
para o quê, exatamente, ou para quem, e em que condições, e para quais
utilizações? O poder duro é relevante para nos transformar numa potência
mundial? Ou seja, exagerando na comparação, ser um outro Paquistão, que tem a
bomba atômica e um povo miserável, um Estado falido que não consegue assegurar
sequer educação primária para as meninas?
Nós não conseguimos assegurar um
padrão mínimo e decente para nossos estratos mais miseráveis, mas queremos ter
um “poder duro”. Pois bem, o que faremos com ele? Paradas na nossa Praça dos
Três Poderes, como se faz na Praça Vermelha? Isso é ridículo. Mesmo que o
Brasil construa um “poder mais ou menos duro” apenas para atuar em operações de
imposição da paz da ONU, ainda assim fica ridículo deixarmos gente miserável na
frente interna para ter essa capacidade de projeção externa. Eu tenho minhas
prioridades e elas passam antes pela prosperidade do povo brasileiro do que
pelo “poder duro”. Este só se justificaria se tivéssemos ameaças, mas quais são
elas, de onde provêm, quem nos quer mal e quer nos prejudicar? Estas são
questões relevantes no debate sobre o “poder duro”: quem nos quer mal?
Pode estar na agenda dos militares,
ou de certas elites, a construção desse “poder duro, mas dificilmente na de uma
nação que ainda tem um PIB per capita muito atrás das nossas possibilidades.
Tal pretensão me parece muito desconectada da realidade do país que nós somos.
É possível, sim, ser um Paquistão nuclear, continuando a ser um Paquistão
social e econômico, mas isso me parece patético e não muito desejável.
Quem construirá o
“poder duro”? Uma decisão política ou a evolução econômica?
Investimentos nas FFAA sempre podem
ser justificados, mas eu volto a me perguntar para o quê, exatamente? Qualquer
planejamento para tal demora algo como 25 anos, e nesse período as tecnologias
militares podem ter evoluído, mas as ameaças externas também. Os preparativos
setoriais que foram feitos lá no começo podem não ser os melhores possíveis.
Gostaria de insistir na correção de
uma concepção que me parece equivocada desde o início, a de que quem garante a
segurança dos EUA e o poder militar americano é o Pentágono e os enormes gastos
em defesa daquele país. Refuto isto, pois acredito que os EUA são poderosos A
DESPEITO do Pentágono, não graças a ele. Quem garante o poderio militar dos EUA
não é o Pentágono, e sim a professorinha de aldeia. O dia em que as FFAA
(americanas ou brasileiras) precisarem se preparar para a defesa, ou mesmo para
a guerra, em face de ameaças percebidas ou reais, elas vão precisar de
engenheiros, tecnólogos, indústrias, cientistas, etc. Ou seja, aquilo que tem
de ser programado, 25 anos antes ou mais, é a capacitação geral de todo um
povo, não um exército formidável construído sobre a miséria relativa do seu
povo.
Volto a dizer: os EUA só conseguiram
mandar homens para o teatro europeu em 1917 porque já eram uma potência
econômica há pelo menos 20 ou 30 anos, e já tinham feito seus pequenos
experimentos guerreiros nas imediações (por circunstâncias, não porque
estivessem naturalmente destinados a fazê-lo). O Brasil só foi ter um arremedo
de poderio militar na guerra do Paraguai, e porque fomos obrigados a fazê-lo.
Depois deixamos a coisa andar, mas os militares foram envolvidos na política e
nunca mais deixaram de se envolver, até 1979, mais ou menos.
Agora acabou, mas isso também é
irrelevante no plano do poderio militar. Os militares não foram decisivos nem
na Alemanha, nem nos EUA, e sim os líderes civis, que levaram o povo a secundar
suas decisões de aventuras militares.
E a China, que parece estar
construindo o seu poderio militar sob instruções do PCC? Isso é certo, mas o
PCC de Deng Xiaoping tratou primeiro de construir o poderio econômico do país,
antes de se lançar na modernização das FFAA E o país atua num ambiente no qual
a China já foi terrivelmente humilhada pelas potências ocidentais e
esquartejada pelos militaristas japoneses. Ela não pretende mais ser humilhada
como no passado. O Brasil tem esse cenário, precisa de um “poder duro”? Não
creio.
As FFAA gastam mais
com pessoal (inclusive inativos) que com equipamento
Não há como não concordar com essa
realidade, o que talvez esteja ligado à relativa “irrelevância” das FFAA
enquanto “poder duro”. Será que ela se ocupa mais dela mesma do que de seus
objetivos constitucionais? Se trata da corporação mais segura do Brasil, a
melhor organizada, a que não corre nenhum risco de vida, a que tem a mais alta “desproporção contábil”
entre contribuições previdenciárias e retornos de aposentadoria, justamente por
causa desse investimento na remuneração, não no equipamento.
Concordo que se o investimento fosse
de 3% do PIB talvez o equipamento e a preparação fossem melhores, mas qualquer
economista sensato diria que as dotações orçamentárias das FFAA são e sempre
serão gastos improdutivos, a não ser quando integrados nos circuitos produtivos
nacionais. Mas por isso mesmo que digo que se trata antes de construir o
poderio econômico, pois junto virão orçamentos melhores para as FFAA. O
destaque orçamentário para as FFAA, nas condições do Brasil, sempre será feito
em detrimento de outros gastos, que já são a porcaria que são, pois se gasta
mais com os ricos, e os mais espertos (que são os mandarins da República, a
classe média universitária, a burguesia do BNDES, os banqueiros da dívida
pública, etc.) do que com o imenso contingente de jovens que não dispõem de
condições adequadas de estudo. Eu sinceramente trataria da educação em primeiro
lugar, e não apenas por destaques orçamentários, mas por uma revolução nos
métodos e nos instrumentos. Essa é a verdadeira tragédia do Brasil, em face da
qual a “pobreza” das FFAA me parece um falso problema, e uma reclamação a mais
da parte dos mandarins de uniforme.
O cenário sempre será
de restrições orçamentárias para as FFAA?
As FFAA não correm o risco de ficar
mais “pobres” do que já são, pois como os universitários, os políticos, os
magistrados, elas são bem organizadas, e conseguem, de vez em quando, “assaltar
os cofres públicos”, e melhorar a vida dos seus, ainda que não o tal “poder duro”.
Não se pense que não é assim, pois é exatamente assim: quando os lobbies vão a Brasília,
implorar recursos nos ministérios, pedir proteção tarifária, convencer os
parlamentares que a sua causa é “estratégica”, ou “social”, o dinheiro acaba
saindo e tudo fica como está. Esse é um cenário que conhecemos muito bem: é o
do cobertor curto, e todos disputando um naco do bolo, que é infelizmente muito
pequeno.
Um planejamento orçamentário focado
nos pobres e nos problemas reais do país deixaria todos eles à míngua –
universitários, magistrados, banqueiros, industriais, militares – e cuidaria da
educação em geral, mais da primária, secundária e técnica em particular. Foi
isso que fez a Alemanha, durante dois séculos – Prússia e depois Alemanha – e
conseguiu ser, primeiro o maior perturbador da paz europeia e mundial, e depois
a principal potência produtiva do planeta, o que ela ainda é, de certa forma,
sem ser mais bismarckiana.
Como toda a conversa em torno do
declínio relativo dos EUA, e ele existe certamente no terreno industrial, eles
ainda são a primeira potência econômica planetária, baseada sobretudo na
economia da inteligência. Nossos militares ainda querem um pouco mais de “stalinismo
industrial” – ou seja, uma base econômica essencialmente nacional –, mas como
sempre, eles estão lutando batalhas passadas. Acho que já está na hora dos
mandarins militares – já que os civis continuam indolentes, inconscientes,
quando não corruptos – tomarem consciência disso e colaborarem, não
bismarckianamente, para o progresso da nação. Acho que a via tem de ser
americana, mas todos os nossos mandarins, inclusive os militares, acham que os
mercados têm de ser “regulados” pela mão visível do Estado. Por isso mesmo vamos
continuar nosso lento itinerário em direção da riqueza e da prosperidade. É
muito mais fácil e rápido fazê-lo pelos mercados do que pelo Estado, mas muita
gente não concorda com isso, infelizmente.
Estes argumentos são
muito liberais? Provavelmente...
Eu não chamaria a minha visão dos problemas
de desenvolvimento do Brasil de liberal, de mercadista, ou qualquer outra conotação
ideológica. Já fui marxista, stalinista industrial, essas coisas, mas creio que
nunca cheguei a ser um mandarim da República, ainda que objetivamente eu seja
um da classe, hoje, mas não da espécie, sequer da família. Sou antes de tudo um
bom observador do mundo, conhecimento adquirido em viagens, e um estudioso da
história, especialmente a econômica. Acredito divergir radicalmente da maior
parte dos nossos colegas, dos militares, dos nossos burgueses e de outros
mandarins da República: tendo vindo da pobreza para uma situação aceitável com
base no meu próprio esforço e na educação, acredito que as crianças do Brasil
precisariam ter as mesmas oportunidades que eu tive de se educar e se
enriquecer intelectualmente. Acredito que esse foi o caminho seguido pelos
imigrantes nos EUA, sem qualquer planejamento estatal, apenas com algum
discernimento sobre o que era relevante na vida privada e na vida pública.
Acredito que continuaremos a perder
oportunidades de crescer, de construir potencial econômico e poderio militar
porque insistimos em fazer as coisas pela via da superestrutura estatal, onde
os recursos são dilapidados entre os que controlam o Estado. Acho que
ganharíamos mais se começássemos, por uma vez, pela infraestrutura educacional,
isto é, pelos mais pobres.
Paulo
Roberto de Almeida
Hartford, 13 de julho de 2013;
Revisão: Brasília, 19 janeiro 2019