Consulado-geral na cidade poderia evitar
mudança dramática na nossa política externa
Rubens Barbosa, presidente do Irice
O Estado de S. Paulo, 26 de
fevereiro de 2019 | 04h30
Durante a campanha eleitoral, o
candidato Jair Bolsonaro disse que, se eleito, iria transferir a Embaixada do
Brasil de Tel-Aviv para Jerusalém: “Israel é um Estado soberano, que decide
qual é sua capital, e nós vamos segui-lo”. A promessa respondia à reivindicação
da comunidade evangélica, que apoiava fortemente o candidato.
Depois de eleito, o presidente
decidiu dar prioridade às relações com Israel e se comprometeu a concretizar a
transferência a ninguém menos que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que
em entrevista disse que a “questão não é se, mas quando”. Posteriormente,
Bolsonaro recuou ao afirmar que “essa não é uma questão de honra” e “por ora”
não haveria transferência, o que deve ter estimulado o vice-presidente Hamilton
Mourão a receber duas delegações árabes e observar publicamente que “não haverá
mudança da embaixada para Jerusalém”. O chanceler Ernesto Araújo qualificou
declarações anteriores e notou que a decisão seria “parte de um processo de
elevação do patamar da relação com Israel, isso, sim, uma determinação,
independente da mudança ou não da embaixada”. A comunidade evangélica reagiu e
deixou saber que vai cobrar a decisão presidencial para concretizar a
transferência.
Como era previsível, a ideia
causou reação em diversas frentes. Na área diplomática, porque representaria
uma guinada radical na política externa brasileira, que desde 1947 se mantém
coerente com o apoio da política de uma solução negociada para o conflito
Israel-Palestina, com a implementação da política de dois Estados, com a
criação também do Estado Palestino. Caso venha a concretizar-se, o Brasil
ficará em Jerusalém ao lado apenas da Guatemala, que se alinhou automaticamente
aos EUA. Por outro lado, a Liga Árabe e a União das Câmaras Árabes de comércio
manifestaram preocupação com essa eventual decisão e uma comitiva ministerial
brasileira teve visita ao Egito cancelada.
Na área econômica houve reação
mais explícita, com menção à perspectiva de as exportações brasileiras de
frango e carne bovina poderem vir a ser suspensas. O Ministério da Agricultura
e associações de produtores manifestaram apreensão quanto às consequências
negativas para as exportações brasileiras e a balança comercial.
Nas prioridades para os primeiros
cem dias de governo, o Itamaraty incluiu a visita presidencial a Israel e o
interesse em ampliar a colaboração nas áreas de defesa, segurança e tecnologia.
E em pronunciamento recente nas Nações Unidas, o representante alterno
brasileiro reafirmou a política do Itamaraty de dois Estados, indicando que
nada havia mudado.
O governo brasileiro tem assim nas
mãos uma questão delicada a resolver, procurando evitar ao mesmo tempo um
desgaste desnecessário com Israel e uma perda significativa para o agronegócio.
Qualquer que seja a decisão do governo, não está em questão o interesse em
elevar o nível do relacionamento bilateral com Israel, mantendo a posição
tradicional de excelente relação bilateral.
Nesse contexto, cabe mencionar um
antecedente histórico que poderia ajudar na busca de uma solução de compromisso
para essa questão. O Brasil tem uma relação histórica com Israel, desde que o
então presidente da Assembleia-Geral da ONU, Oswaldo Aranha, coordenou
pessoalmente a aprovação da resolução de 1947 que determinou a criação dos
Estados e Israel e da Palestina.
No governo de Juscelino
Kubitschek, com Macedo Soares como chanceler, foi instalada a representação
diplomática com a criação da legação do Brasil na capital, Tel-Aviv. Em 27 de
março de 1958, a legação foi elevada ao status de embaixada. Como medida de
rotina diplomática, e a fim de evitar contrariar a política dos dois Estados,
por decreto de 22 de abril do mesmo ano o governo brasileiro decidiu criar um
consulado-geral em Jerusalém. Em 1993, com Itamar Franco e Celso Amorim, o
decreto foi revogado. O posto, assim, nunca chegou a ser efetivamente aberto.
A exposição de motivos que
justificava a criação do consulado-geral, publicada nos jornais na época,
causou controvérsia por imprecisões diplomáticas sobre as peculiaridades da
disputa regional. Na consulta realizada ao governo de Tel-Aviv sobre a abertura
do consulado foi afirmado que não seria objetada a criação de “uma seção
consular” da embaixada, o que contrariava a decisão anunciada pelo governo de
Juscelino Kubitschek, que talvez tenha motivado a não designação de pessoal
para o posto. Indagado sobre as razões que levaram o governo brasileiro a abrir
o consulado-geral em Jerusalém, Macedo Soares disse que foi “por razões
espirituais, políticas e diplomáticas”. Mencionou também que “a existência de
uma repartição consular brasileira” significava “a presença de milhões de
católicos brasileiros na Cidade Santa”, que “a principal missão dos consulados
é a defesa e o amparo de brasileiros que se acham no exterior” e, no caso de
Israel, “de peregrinos que se encontravam naquela cidade”.
A recriação do consulado-geral em
Jerusalém poderia ser uma solução para evitar uma mudança dramática de diretriz
de política externa de mais de 60 anos. Essa solução - amparada em precedente
histórico - seria até melhor, do ponto de vista brasileiro, do que outras
soluções, como a criação de um escritório comercial em Jerusalém, a exemplo do
que fez a Austrália. Ao anunciar o estabelecimento do escritório, o
primeiro-ministro australiano manteve a coerência de sua administração e
confirmou sua posição favorável à política de dois Estados.
Apresentada de maneira apropriada,
o governo israelense e a comunidade evangélica entenderiam a decisão do Brasil,
coerente com sua tradicional atitude, compreendendo as dificuldades internas
para alterar uma política tão consolidada e evitar o isolamento internacional.
*RUBENS
BARBOSA É PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO
EXTERIOR (IRICE)
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