3478. “Tobias Barreto: um intelectual em sua própria
escola de inteligência”, Brasília, 16 junho 2019, 11 p. Ensaio
intelectual-biográfico sobre Tobias Barreto, com base nas obras disponíveis e
na biografia de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Tobias Barreto: uma biografia intelectual do insurreto sergipano e sua
biblioteca com livros alemães no Brasil do século XIX (Curitiba: Juruá,
2018), para servir como alocução no discurso de admissão ao Instituto Histórico
e Geográfico do Distrito Federal. Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/40050575/Tobias_Barreto_um_intelectual_em_sua_propria_escola_de_inteligencia).
Aqui, a parte inicial desse texto:
Tobias Barreto: um intelectual em sua própria escola de
inteligência
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: ensaio sobre Tobias Barreto; finalidade: texto para posse no IHG-DF]
Tobias Barreto foi uma personalidade
múltipla: latinista, poeta, jornalista, jurista, orador, político, filósofo,
sociólogo, darwinista, feminista, panfletário, abolicionista, polemista, adepto
do culturalismo, anticlerical, um dos raros germanistas brasileiros e uma
capacidade rara de combinar todas essas qualidades numa inteligência aberta aos
mais variados conhecimentos disponíveis em sua época, tudo isso num período
finalmente bastante curto, praticamente as últimas duas décadas e meia do
regime monárquico, em que pese sua precocidade como poeta e jornalista.
Impossível cingir a enormidade de sua produção num ensaio breve como este que
se oferece, daí a seleção de alguns traços apenas de sua contribuição
intelectual, a que mais apresenta persistência e relevância na perspectiva
diacrônica que é a nossa, aos 180 anos de seu nascimento, em 1839, e aos 130
anos de seu falecimento, em 1889.
Na apresentação de um de
seus biógrafos, um jornalista sergipano da primeira metade do século XX, em
obra publicada no exato centenário de seu nascimento, pode-se ler uma síntese
magistral do que ele representou para o pensamento brasileiro:
Tobias Barreto
ocupa no mapa geral da cultura brasileira um lugar do mais alto relevo. A sua
obra é uma espécie de linha divisória entre duas épocas. A sua vida, com as
circunstâncias em que ela decorreu, apenas em parte explica o seu pensamento.
Este, realmente, muito raro descia até aquela. Enquanto a vida estava
mergulhada num ambiente de miséria, de incompreensão, de necessidade, o
pensamento estava entregue às cogitações mais altas do estudo, divulgação e
análise do que o espírito humano vinha realizando. Foi um homem que, na falta
de ambiente em que pudesse desenvolver-se, construiu um ambiente particular
onde lhe fosse possível respirar à vontade. [Omer Mont’Alegre, Tobias Barreto. Rio de Janeiro: Vecchi
Editor, 1939]
Sua principal
característica intelectual é precisamente esta: a de ter sido único,
absolutamente solitário no panorama da inteligência nacional, a ponto de
podermos dizer que ele era a sua própria escola de pensamento, jamais igualada
posteriormente. Nasceu na monarquia, ao final das regências, converteu-se em
republicano, mas faleceu antes da derrocada do Segundo Reinado, em 26 de junho
de 1889, e a despeito de ser originário do Sergipe, onde se formou precocemente
em Latim e exerceu suas primeiras armas na poesia e no jornalismo em sua terra
natal, fez-se famoso no Recife, onde se exerceu como professor, depois de uma
vida atribulada, sempre em meio a dificuldades materiais. Como germanista, nos
planos da filosofia, da sociologia, do direito, foi um dos poucos no Brasil,
talvez único no Nordeste. Mas, como ressaltou Arnaldo Godoy, autor da melhor
biografia intelectual sobre o “insurreto sergipano”, “Tobias era um germanista
que jamais fora à Alemanha, nem mesmo saíra do Nordeste...”. Quando residente
em Escada, cidade próxima do Recife, fundou um jornal em alemão, “do qual era
provavelmente o único leitor”. [Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Tobias Barreto: uma biografia intelectual do
insurreto sergipano e sua biblioteca com livros alemães no Brasil do século XIX.
Curitiba: Juruá, 2018, p. 30 e 53; nessa magnífica obra, um capítulo de 50
páginas é inteiramente dedicado a examinar os autores alemães constantes da
biblioteca de Tobias Barreto ou referidos em sua atividade intelectual.]
Como mulato e
abolicionista não foi o único, nem o maior, dessa pequena tribo de lutadores
pela emancipação dos escravos, mas foi, provavelmente, o mais agitado dos
agitadores literários e políticos numa conjuntura de agitação social no Brasil,
um intelectual dotado de grande densidade intelectual quando comparado a outros
homens de letras e de pensamento no Brasil do Segundo Império, bem mais
dominado pelo francesismo literário e político da belle époque. Numa época em
que o catolicismo romano era a religião oficial do Estado, não hesita em entrar
em polêmica contra a Igreja e contra os dogmas religiosos do catolicismo, não
uma única vez, mas várias. Abolicionista, democrata, libertário, republicano,
contra o patrimonialismo tradicional da sociedade escravocrata – que aliás
perdurou na República –, Tobias Barreto pode ser considerado como situado na
vanguarda do pensamento brasileiro, e não apenas ao final do regime monárquico,
mas exercendo influência em direção ao futuro da República, que ele todavia não
chegou a conhecer.
É propriamente incrível a
intensidade, a variedade, a profundidade de sua produção intelectual em pouco
mais de três décadas de vida ativa, o que se reflete nos dez volumes de suas
“obras completas”, editadas sob a responsabilidade do governo do Sergipe, 1925-26,
reeditados em sete volumes meio século mais tarde, ademais dos muitos volumes
esparsos, organizados por admiradores tão distinguidos quanto Silvio Romero,
Graça Aranha, Paulo Mercadante e Antonio Paim. Em sua vida, apenas uma dúzia de
seus escritos, dos quais dois em alemão, vieram a público, mas as obras
póstumas e edições posteriores cobrem uma biblioteca inteira, numa volumetria
quase tão importante quanto sua famosa “biblioteca alemã”, objeto de um artigo
de Vamireh Chacon, na Revista Acadêmica,
da Faculdade de Direito do Recife (1971), da qual Tobias Barreto foi professor,
mas apenas por pouco mais de sete anos.
Clovis Beviláqua, o
redator final do Código Civil (que levava vários anos em preparação) e o mais
longevo consultor jurídico do Itamaraty, escreveu sobre o papel de Tobias
Barreto como renovador dos estudos jurídicos no Brasil: “Em Filosofia do
Direito, Tobias Barreto adotara a escola de [Rudolf von] Jhering e Hermann
Post, que refletiam no Direito, a teoria genealógica de [Charles] Darwin e [Ernest]
Haeckel. Não era, porém, espírito que se limitasse a reproduzir as lições dos
mestres. Filiado ao monismo, sabia extrair desse sistema filosófico a
interpretação exata do fenômeno jurídico.” Beviláqua considera que a campanha
que Barreto dirigiu contra o Direito Natural, em seus Estudos de Direito, e em Questões
Vigentes (Obras Completas, vol.
IX, 1926), constitui uma das partes mãos brilhantes de sua obra; transcreve
ele: “É preciso bater cem vezes e cem vezes repetir: o Direito não é filho do
céu, é, simplesmente, um fenômeno histórico, um produto cultural da
humanidade.” [Clovis Beviláqua, “Tobias Barreto e a renovação dos estudos
jurídicos no país”, in: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, Tobias Barreto (1839-1889): bibliografia e
estudos críticos. Salvador, 1990, p. 38-44; cf. pp. 39 e 40] Barreto lia e
escrevia em alemão, além de dominar várias outras línguas, entre elas inglês,
francês, italiano, russo, grego e, obviamente, latim.
Antonio Paim, no mesmo
volume de estudos críticos, apresenta a trajetória filosófica de Tobias
Barreto, do “surto de ideias novas” do final dos anos 1860, que buscava
argumentos em Comte, Renan e Taine, chega ao culturalismo dos anos finais,
passando pela recusa do comtismo e da “religião da humanidade” e pela fase
monista (haeckeliana) da constituição da Escola do Recife, que evolui para o
neokantismo. O germanismo de Tobias Barreto constitui o objeto de um estudo de
Paulo Mercadante, que ele atribui ao seu naturalismo científico e não a
qualquer subserviência acrítica aos grandes filósofos e juristas alemães de sua
época. Este pensador, autor de um famoso estudo sobre a consciência
conservadora no Brasil, coordenou com Antonio Paim dois volumes de estudos de
filosofia de Tobias Barreto, publicados pelo Instituto Nacional do Livro, do
MEC, em 1966, reeditados em 1977. Mercadante ainda se debruçou sobre uma
reavaliação de Barreto na cultura brasileira (1972) e Paim a ele dedicou vários
de seus escritos, tanto em seu livro de História
das Ideias Filosóficas no Brasil (1967), quanto um volume inteiro sobre A filosofia da Escola do Recife (1966).
Arnaldo Godoy enfatiza, em
seu capítulo sobre a biblioteca alemã de Tobias Barreto, e baseado no volume de
Estudos de Direito, de suas Obras
Completas, como ele chegou ao darwinismo pela via dos juristas alemães que ele
mais admirava:
Tobias citou
recorrentemente Ernest Haeckel, especialmente quanto ao tema da dificuldade de
se construir uma ciência social de natureza substancialmente descritiva.
Haeckel era admirador de Charles Darwin (1809-1882), que Tobias também
assimilou ao estudar Rudolf von Jhering (1818-1892). Tobias foi um veiculador
do darwinismo social no Brasil, resultado de sua admiração intelectual perene
que o pensador sergipano tinha para com autores como Haeckel e Jhering,
introdutores de Darwin nas ciências sociais aplicadas. [Godoy, op. cit., pp.
204-5]
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