Escrevi o prefácio depois de ter montado a brochura, como consta da postagem anterior, aqui linkada:
3895. “Prefácio ao livro José Guilherme Merquior: um intelectual brasileiro, Brasília, 19 abril 2021, 6 p. Agregado à brochura composta sob n. 3894. Divulgado no blog Diplomatizzando (20/04/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/04/prefacio-ao-livro-jose-guilherme.html).
terça-feira, 20 de abril de 2021
Prefácio ao livro José Guilherme Merquior: um intelectual brasileiro - Paulo Roberto de Almeida
Prefácio ao livro José Guilherme Merquior: um intelectual brasileiro
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org; http://diplomatizzando.blogspot.com)
A despeito de ter sido colega de José Guilherme Merquior durante aproximadamente 13 anos de nossas carreiras respectivas, nunca o conheci pessoalmente, nunca nos cruzamos em postos ou na Secretaria de Estado, nunca nos encontramos ocasionalmente, e nem ele deve ter ouvido falar de um secretário ainda nos primeiros escalões funcionais, quando ele já tinha sido elevado à casta dos brâmanes, ou seja, ministro de primeira classe, mais comumente chamado de embaixador (que é um título apenas reservado aos chefes de postos). Vejamos: ele ingressou na carreira em 1963, no auge da Política Externa Independente, e atravessou todo o regime ditatorial, tendo sido elevado ao último escalão da carreira ainda sob o regime militar, quando eu entrei para ela, via concurso direto – não pelo Instituto Rio Branco – já numa fase declinante do regime, quando eu participava ativamente, mas de forma discreta, das campanhas pela anistia, redemocratização, eleições diretas.
Ele deve ter sido fichado como “esquerdista” logo no início da ditadura, tendo respondido a inquérito logo no início da “devassa” do regime de 1964. Eu estou fichado nos registros do SNI – Arquivo Nacional de Brasília – como “diplomata subversivo”, por ter apoiado a campanha do candidato opositor do general Figueiredo nas “eleições” indiretas de 1978, o general Euler Bentes Monteiro (alguém ainda se lembra dele). Só voltei a escrever artigos políticos com o meu próprio nome ao final da ditadura e um dia vou recolher esses textos publicados sob outros nomes. Não sei se Merquior chegou a fazer o mesmo, mas sabemos de pelo menos um artigo seu censurado pelo novo regime, logo em setembro de 1964, quando do falecimento de San Tiago Dantas, o patrono da formatura de sua turma no Instituto Rio Branco, em 1963, como nos relatou José Mário Pereira no pungente e afetivo testemunho que ofereceu ao livro coordenado pelo embaixador Alberto Costa e Silva, O Itamaraty na Cultura Brasileira (2001). Também tive alguns textos censurados aqui e ali, inclusive sob a “democracia”, mas eu nunca dei muita bola para esses mandarins que se julgam donos da verdade oficial: a partir de certo momento passei a publicar sem mais me submeter a esses humilhantes pedidos de autorização.
Creio ter entrevisto Merquior de soslaio, ou seja, fugazmente, uma única vez, entre 1986 e 1987, no gabinete de meu chefe à época, o embaixador Rubens Antonio Barbosa, ao início, portanto, da Nova República, quando o já respeitadíssimo intelectual, conhecidíssimo nos meios dedicados à cultura e à inteligência, pontificava nas polêmicas públicas como o pourfendeur das esquerdas naquela transição para a democracia tutelada do governo Sarney, e quando ele aparecia como um dos protegidos do novo regime, para figurar, mais adiante, como ghost-writer do candidato Collor de Mello, e possível candidato a ser o seu possível chanceler. Ele foi sabotado pelos próprios diplomatas, como já tinha sido o caso de seu chefe em Londres, e amigo dileto, o embaixador Roberto Campos.
Na época, eu era apenas um modesto segundo secretário e tinha recém voltado de meu doutoramento no exterior, em cuja tese, sobre as revoluções burguesas, pude citar o seu conceito de “carisma burocrático” que fazia parte da tese defendida na London School of Economics, Rousseau and Weber: two essays in the theory of legitimacy, que li assim que foi publicada; não me senti à vontade para entrar na sala, apresentar-me, e cumprimentá-lo pelo inovador derivativo do conceito original weberiano de carisma, sobretudo aplicado ao regime bolchevique, que também fazia parte de meus estudos e reflexões. A partir dessa época, passei a seguir suas publicações, que felizmente para mim, se concentraram bem mais nas minhas “afinidades eletivas”, a sociologia política e o desenvolvimento e as liberdades em países da América Latina do que as primeiras obras no terreno da crítica literária.
Eu já conhecia As Ideias e as Formas (1981), assim como A Natureza do Processo (1982) e O Argumento Liberal (1983), mas não me interessei pelo Foucault (de cuja reedição vim a participar recentemente (2021), e só vim a ler O Marxismo Ocidental mais tarde. Quando servi em Paris, em 1993-95, e passei a frequentar as reuniões semanais do Centre d’Études sur le Brésil Contemporain, na Maison des Sciences de l’Homme (no Boulevard Raspail), animadas por Ignacy Sachs, senti o enorme impacto que Merquior havia deixado naquele círculo de estudos, em função da sua famosa palestra sobre os “cent ans de bilan historique” do Brasil, que ele havia feito ali em 1990, poucos meses antes de morrer, em janeiro seguinte. A professora Katia Mattoso, titular da Chaire d’Histoire du Brésil na Sorbonne – e que me convidou para algumas palestras para os seus alunos – também me falou da imensa tristeza que se abateu sobre todos os amigos do Brasil na França pelo fatídico passamento de um dos maiores intelectuais brasileiros que tinham frequentado aquelas paragens desde os anos 1960 e 70. Eu também andei pela Europa nos anos 1970, mas andava do outro lado da cerca, ou seja, participando da oposição ao regime militar, que naquela época era representada pelo Front Brésilien d’Information(tenho artigos dessa época ainda não recuperados em sua autoria legítima).
Minha interação com Merquior foi, portanto, mínima, ou inexistente, e pouco eu conhecia sobre sua trajetória, além dos livros lidos, e só vim a conhecer um pouco mais tarde, quando os seus amigos diplomatas organizaram, em 1992, uma pequena obra em sua homenagem, cerca de um ano depois de seu triste e precoce falecimento. A despeito dessa brutal interrupção numa trajetória intelectual que se anunciava brilhante – tanto no cenário acadêmico propriamente brasileiro, como, e principalmente, no âmbito internacional, pois que Merquior publicava diretamente em francês e crescentemente em inglês –, pode-se dizer que Merquior produziu lasting effects, efeitos permanentes sobre o debate de alta qualidade sobre os grandes temas políticos e filosóficos das últimas décadas do século XX, quando o mundo se libertava da “prisão geopolítica” da Guerra Fria e se preparava para adentrar no mundo novo do “fim da História”.
Seu derradeiro livro, Liberalism, Old and New, publicado já depois de sua morte (mas certamente não o último, pois a É Realizações empreendeu reedições, inclusive de inéditos), foi objeto apenas de uma curta resenha de minha parte, para o boletim (agora revista) da Associação dos Diplomatas Brasileiros (ADB), com cuja seção “Prata da Casa” – dedicada a livros de diplomatas – eu conduzi solitariamente durante uma década e meia; mas eu não tinha empreendido nenhum outro trabalho de maior escopo sobre suas obras, até que a assunção da direção do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI) do Itamaraty me retirou dessa injusta desatenção. Assim que tomei posse, em agosto de 2016, inclui entre meus “pet projects” a preparação de uma terceira edição da estupenda obra dirigida pelo embaixador Alberto da Costa e Silva, O Itamaraty na Cultura Brasileira (Instituto Rio Branco, 2001; Francisco Alves, 2002), cuja lista de diplomatas intelectuais era justamente concluída pele afetuoso testemunho de seu amigo e editor José Mário Pereira, da Topbooks.
Minha primeira ideia foi a de apenas corrigir alguns poucos deslizes ortográficos da primeira edição, incluir meia dúzia de diplomatas falecidos depois de Merquior – começando por Roberto Campos, no próprio ano de 2001, passando por Lauro Escorel, Vasco Mariz, Sérgio Correa da Costa, Wladimir Murtinho e terminando por Meira Penna –, arrumar uma iconografia compatível com a beleza daquela edição do Instituto Rio Branco e arrumar dinheiro para levar adiante o empreendimento (cabe registrar que o IPRI não tem orçamento de qualquer tipo, sequer personalidade jurídica independente). Mas, no fundo, eu achava que, a despeito da emotiva homenagem feita a Merquior por José Mário, sua obra não tinha sido objeto de um exame circunstanciado, como foi o caso para todos os demais autores inscritos naquele “Olimpo” intelectual do Itamaraty, segundo a seleção feita pelo poeta e africanista Costa e Silva (Vinícius de Moraes, por sinal, foi um privilegiado, pois recebeu não apenas um, mas dois capítulos, como poeta e como compositor, o que é inteiramente justo). Decidi, então, começar um ensaio circunscrito à obra de sociologia política de Merquior – uma vez que me confesso incapaz de analisar sua obra de crítica literária ou mesmo filosófica – para incluir como um segundo capítulo dedicado a Merquior na terceira edição, assim como a dupla homenagem feita a Vinícius na edição original.
Mas o mundo gira, a Lusitana roda e o Brasil se perde nas estradas da política: quando finalmente o livro estava praticamente pronto – ainda que eu continuasse a lutar desesperadamente para lograr recursos para uma nova e bela edição “de luxo” –, a política resolveu enveredar por novos caminhos. Com a eleição de um governo declaradamente anti-intelectual, eu tinha certeza de que meus dois anos e meio de divertimentos intelectuais à frente do IPRI, como de fato vieram a termo logo no início da nova administração. O que fiz, então? Consultei os autores participantes da nova edição quanto à possibilidade de esquecer aquela reedição e fazer um novo livro, separado, tentativamente chamado de “Intelectuais a serviço da diplomacia brasileira”, no qual constaria meu longo ensaio analítico da obra de Merquior, ademais de outros capítulos incluindo inclusive intelectuais que serviram à diplomacia sem serem necessariamente da carreira, como foram os da obra original.
O fato é que a pandemia paralisou um pouco todas as iniciativas editoriais, e eu mesmo comecei a fazer livros em formato digital. Em alguns momentos, efetuei postagens sobre Merquior e a reedição de seus livros pela É Realizações, no blog Diplomatizzando. E assim chegamos ao “ano Merquior” como intitulei uma das primeiras postagens de 2021, ao chegarmos aos trinta anos de sua morte e aos 80 anos de seu nascimento. Foi assim que decidi juntar materiais esparsos numa primeira “brochura” – que não ouso chamar de “coletânea”, pois que não reúne os requisitos para tal –, apenas para não deixar passar em branco a data de 22 de abril, descobrimento do Brasil e de nascimento do maior intelectual brasileiro, bem mais do que o maior entre os diplomatas. Dizer “brasileiro” é até redutor, no caso de Merquior, pois sua obra, seu pensamento, seu trabalho de crítica literária e filosófica possuem dimensão universal, pelo menos no âmbito da academia que viceja, verseja e traceja os embates intelectuais que tocam nessas várias áreas do conhecimento de alto nível que passa do mundo “apenas” acadêmico para o dos círculos políticos e literários.
Não considero este volume uma obra acabada, longe disso, e nem pode ele ser considerado uma obra, apenas uma “recolta” de textos dispersos, de Merquior e de seus admiradores ou críticos, textos relativamente desconhecidos do grande público, pois que praticamente não divulgados – salvo alguns poucos, os da Academia Brasileira de Letras e o do já citado livro de 2001 –, ou jamais publicados para o público “at large”. Ele constitui a base de uma merecida homenagem que deve ser ampliada no futuro imediato. De minha parte, adoto o seguinte ponto de partida no seguimento do imenso trabalho desenvolvido por Merquior – se isso é possível – e que deveria ter tido continuidade nos 30 anos seguintes ao anos de sua morte, em 1991: o que teria ele escrito depois de Liberalism, Old and New? Quais teriam sido os seus novos temas, ou como teria ele enfrentado as novidades da terceira onda de globalização, depois da implosão da União Soviética e da irresistível ascensão da China? Como ele estaria contemplando, hoje, a ascensão da nova direita, burra, até estúpida e autoritária, sendo que ele defendia um social-liberalismo esclarecido, economicamente responsável, culturalmente aberto e tolerante, totalmente receptivo às grandes tendências nos terrenos dos costumes e das preferências individuais?
Ele talvez se sentisse decepcionado com os destinos do Brasil, uma vez que ele era basicamente impulsionado pela ideia da razão, e acreditava, sinceramente, que um diálogo aberto e bem informado entre partidários e militantes de diferentes tendências – econômicas, políticas, culturais – poderia conduzir o país na direção da adoção de políticas simplesmente racionais tendentes a diminuir o grau anormalmente elevado das iniquidades brasileiras, das misérias preservadas ao longo de cinco séculos de nação e de dois séculos de Estado nacional independente. Na diplomacia, na esfera política, no âmbito acadêmico ou na vida cultural, ele teria certamente continuado a oferecer novas e instigantes contribuições a um debate de alto nível sobre nossos problemas mais cruciais. Fomos privados desses aportes intelectuais pela Parcas, como já lamentava em 1991 seu grande amigo, mentor e companheiro de tertúlias Roberto Campos, quem lhe permitiu escapar do aborrecido trabalho burocrático (geralmente inútil) da embaixada em Londres, para conduzir sua tese com Ernest Gellner, um dos trabalhos que mais o distinguiram entre colegas acadêmicos de nível mundial.
Aliás, basta olhar o sumário da obra de 2001, sobre os diplomatas intelectuais, para saber que eles não foram lembrados exatamente por enfadonhos despachos ou por telegramas de instruções rotineiras, mas por suas obras construídas paralelamente às ocupações triviais de chancelaria. A inteligência lhes foi um atributo que pode ter sido facilitado pela vida diplomática, mas não foi esta que moldou seu pensamento, e sim a própria vida intelectual de cada um deles. Merquior foi um dos grandes, um gigante no terreno que ele próprio escolheu, não o da poesia, exatamente, ou o da literatura, enquanto ofício, mas o da crítica das ideias, em literatura, em poesia, em filosofia, em política, um terreno no qual ele dialogou, debateu, diretamente ou à distância, com os grandes pensadores do seu tempo, sem deixar de retomar as ideias de grandes predecessores, todos os iluministas, desde os séculos XVII e XVIII, até seus modernos sucessores nos salões da academia ou nos cenáculos da política.
De minha parte, já inclui Merquior entre as quatro dezenas de pensadores brasileiros que, desde o início do século XIX, participaram da construção da nação, pelo menos em ideia e intenção, pois que muitas das propostas por eles formuladas, nos campos da governança, da economia, da política, da vida universitária e cultural, nem sempre foram concretizadas na prática, o que se torna evidente pelo estado quase estagnado do país. Cem anos depois da Semana de Arte Moderna de 1922, duzentos anos desde a independência, o Brasil ainda segue avançando aos trancos e barrancos – como diria Darcy Ribeiro, um dos muitos “esquerdistas” que aprenderam a respeitar Merquior –, ainda continua progredindo aos “tiquinhos”, como pretendia Mário de Andrade pouco depois da semana que organizou, para quem o progresso também “é uma fatalidade”. Merquior preferiria dizer que o progresso é uma construção de homens racionais, como ele tentou ser durante toda a sua vida adulta.
Ao lamentar que tenhamos sido privados de sua colaboração nestas últimas três décadas nas quais ele poderia ter estado ativo, nosso dever é continuar sua obra de defesa de ideias e de propostas de ação. Este volume, que coloca certo número de trabalhos pouco conhecidos à disposição de um número maior de interessados, pode estar atuando nessa direção e colaborando com sua obra pedagógica de Aufklärung, de esclarecimento, e sobretudo de inteligência.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3895, 19 de abril de 2021
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