Um ensaio que eu não conhecia, e que escapou da coletânea de textos que organizei para o patrono das Relações Internacionais do Brasil (mas ela só foi até 2017), publicada em 2018: Celso Lafer, Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação (Brasília: Funag, 2018, 2 vols.).
Paulo Roberto de Almeida
Relações Internacionais
O diplomata e o soldado
Ex-chanceler brasileiro analisa a importância de Raymond Aron no campo das relações internacionais
Quatro Cinco Um, 01/04/2019
O filósofo francês Raymond Aron em 1986 Erling Mandelmann/Gamma-Rapho
Aron, Raymond
Paz e guerra entre as nações
Tradução de Sérgio BathWMF Martins Fontes • 980 pp • R$ 119,90
Paz e guerra entre as nações
Tradução de Sérgio Bath
Raymond Aron (1905-83) foi um pensador de grande envergadura em muitos campos do conhecimento das ciências humanas. O seu ponto de partida foram as obras de cunho universitário que elaborou na década de 1930 dedicadas à filosofia da história, à analise em profundidade dos limites da objetividade histórica, e às condições da existência histórica.
Como aconteceu com tantos pensadores europeus que foram seus contemporâneos, o turbilhão da Segunda Guerra Mundial alterou a sua vida. No plano intelectual, levou-o a uma abrangente e interdisciplinar reflexão de “observador engajado” sobre as rupturas que caracterizaram o século 20. Empenhou-se em esclarecer e explicar a dinâmica dos múltiplos setores da sociedade moderna — como por exemplo, as relações sociais, as relações de classe, os regimes políticos, as discussões ideológicas — valendo-se do seu aprofundado domínio da filosofia, da sociologia e da ciência política. Um dos campos a que se dedicou com maestria foi o da especificidade das relações interestatais.
Paz e guerra entre as nações insere-se neste âmbito da sua dedicação às relações internacionais. Teve como estímulo o ineditismo da existência das armas nucleares. Foi o complemento reflexivo da sua atividade jornalística, na qual, a partir da segunda metade de 1940 até a sua morte, notabilizou-se como comentarista e editorialista regular de política internacional na grande imprensa francesa — tarefa que exerceu concomitantemente e sem prejuízo da sua atividade de grande professor universitário.
Paz e guerra foi redigido em 1960-1961 e publicado na França em 1962. A primeira edição brasileira data de 2002. Foi publicada na coleção clássicos do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), sob os auspícios da Editora da Universidade de Brasília e da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
A edição beneficia-se de uma qualificada apresentação de Antonio Paim e contém um prefácio do próprio Aron à tradução brasileira. Aron, cabe lembrar, teve presença em nosso país como assíduo colaborador de O Estado de S. Paulo.
Esteve entre nós em duas ocasiões. A primeira em 1962, quando deu conferências em universidades brasileiras — dentre elas, uma na Faculdade de Direito da USP, à qual assisti. Nela, começou apontando a unidade do campo diplomático: “Pela primeira vez os homens vivem uma só e mesma história. A humanidade está unificada pelos seus conflitos, pela técnica e também por seus problemas”. A segunda foi em 1980, tendo Aron participado de um simpósio na Universidade de Brasília dedicado à sua obra (“Raymond Aron na UnB”), do qual participei, e proferindo conferências em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Economia e futebol
A presente edição agrega à anterior um substancioso texto seu de 1983, que serviu como apresentação à 8ª edição francesa, assim como seu prefácio de 1966 à 4ª edição francesa. Paz e guerra entre as nações é um livro notável.
Em contraste com tantos livros de teoria das relações internacionais, escritos e pensados sob a perspectiva da Guerra Fria e da rivalidade Estados Unidos/União Soviética e que se tornaram obsoletos já na década de 1990, com o término das polaridades definidas — Leste/Oeste e, nas suas brechas, a Norte/Sul —, a grande obra de Aron retém plena a atualidade.
As relações internacionais se desdobram sob a sombra da guerra, um camaleão científico-tecnológico
Permanece como um mapa de conhecimento para o estudo e a avaliação das relações internacionais, graças aos instrumentos analíticos que oferece e elabora com rigor e qualidade.
Aron argumenta que a singularidade do campo, que o diferencia de outras áreas das ciências sociais, é que ele está permeado pela situação limite paz/guerra; e que, no âmbito das relações interestatais, como ele diz recorrendo a Max Weber, existe a ausência de uma instância que detenha o monopólio da violência legítima, em contraste com o que ocorre no plano interno dos Estados. Daí a importância que atribui a dois personagens qualificados como simbólicos: o diplomata e o soldado como os representantes por excelência das coletividades estatais.
Aron evidentemente não ignora que a sociedade internacional é mais ampla do que a sociedade interestata, como aponta no livro e nos seus prefácios que integram a edição brasileira. Engloba o sistema econômico mundial e os fenômenos transnacionais que a influencia e impacta.
Isto não afasta, contudo, no entender de Aron, a singularidade sistêmica das relações interestatais, que não se amoldam à predominância causal da economia. É o que observa com a sua autoridade de marxólogo, que está aliás, em consonância com a análise de Bobbio sobre as insuficiências do marxismo para um abrangente trato das relações internacionais e da guerra.
Na discussão dos níveis conceituais da compreensão do campo, Aron aponta que não cabe a analogia nem com a economia nem com o futebol. O tema unificador da primeira é o desafio da escassez, e o seu problema é a da escolha dos meios de superá-la e de distribuir os resultados alcançados. O futebol tem regras, juiz, e o preciso objetivo dos times é ganhar a partida travada no interior de um campo delimitado com um número fixo de participantes. Não são estas características do campo das relações internacionais.
Este se desdobra sob a sombra da guerra. Ao tema, Aron dedicou um pioneiro livro em 1951, Les guerres en chaîne [As guerras em cadeia], um acurado exame da Primeira Guerra Mundial — dos equívocos diplomáticos que a desencadearam e da surpresa técnica dos novos armamentos que a prolongou. Na sequência de Paz e guerra escreveu, inspirado pelo pensamento de Clausewitz, os dois volumes de Penser la guerre [Pensar a guerra], em 1976.
Moldura
A guerra, observa Aron, é um camaleão. Assume sempre novas formas, inclusive e muito especialmente na sua dimensão científico-tecnológica. A indeterminação a priori das suas formas é um dado que paira sobre o campo das relações internacionais. Daí as distintas modalidades de paz e as tipologias sugeridas por Aron em Paz e guerra: paz de equilíbrio, de hegemonia, de império, de impotência, de satisfação — e o papel que no seus âmbitos desempenham a persuasão e a subversão.
Estas, por sua vez, assumem características próprias, à luz das constelações diplomáticas que levam em conta as polaridades prevalecentes no sistema interestatal e da homogeneidade ou heterogeneidade dos Estados que o compõem — vale dizer, o maior ou menor grau de mútuo reconhecimento e a ação dos atores que nele operam, com maior ou menor empenho na estabilidade.
É nesta moldura ampla que Aron vai destacar uma característica singularizadora das relações internacionais: a pluralidade dinâmica dos objetivos concretos configuradores das políticas externas dos Estados que compõem o sistema estatal. Entre estes objetivos figuram a segurança, o desenvolvimento, o bem estar, o prestígio, a afirmação de valores e, consequentemente, o papel das afinidades e das discrepâncias quanto às formas de conceber a vida em sociedade. O maior ou menor peso destes objetivos varia de acordo com as circunstâncias.
É isso que faz do conceito de interesse nacional, norteador da política externa, algo plurívoco e, por vezes, esquivo. Por esse motivo, a racionalidade dos objetivos das condutas das políticas externas é circunscrita pela escolha de certas premissas que norteiam o seu processo decisório. Daí um componente de indeterminação da ação estratégica-diplomática que pode variar no tempo. Um exemplo atual é a diferença entre a conduta da política externa dos Estados Unidos no governo Trump, oposta à diplomacia de seu antecessor, Barack Obama.
Os objetivos da implementação de uma política externa estão vinculados aos meios de que dispõe um Estado no âmbito de um sistema interestatal que obedece à lógica de uma distribuição de poder individual, mas desigual, entre os seus integrantes.
Aron trata dos meios na moldura do que denomina determinantes e regularidades sociológicas. Entre elas: o espaço, referente à inserção geográfica e territorial de um país num mundo finito mas planetariamente unificado, para o bem e para o mal, pela técnica, por seus conflitos e por seus múltiplos problemas; o número, que é o componente demográfico das pessoas que se distribuem e que se acomodam, ou não, no espaço dos territórios dos múltiplos Estados que integram o sistema interestatal; os recursos, que, numa acepção abrangente, cobrem o conjunto dos meios materiais e de conhecimento de que dispõe uma coletividade estatal; e a natureza das nações e dos regimes, que ajuda a entender o modo de ser e de agir dos atores estatais, os sujeitos da história diplomática.
Maquiavel e Kant
Destaquei nesta minha leitura de Paz e guerra entre as nações alguns dos aspectos que considero relevantes para a compreensão do campo das relações internacionais, mas evidentemente não fiz justiça e não dei conta da abrangência analítica e conceitual de um livro de quase mil páginas.
Aron desenvolveu uma ética de prudência e de equilíbrio entre excessos que me inspirou quando tive a oportunidade de conduzir o Itamaraty
Quero concluir com uma rápida consideração sobre o que Aron discute na última parte de seu livro — “Praxeologia” —, na qual examina as antinomias com as quais se confrontam os responsáveis pela condução da política exterior: em síntese, o enfrentamento tanto do problema maquiavélico quanto do problema kantiano.
O problema maquiavélico diz respeito ao realismo dos meios legítimos da condução de política externa, que, no limite, comportam o uso da força. É o tema de preservação do Estado como uma unidade independente no âmbito do sistema interestatal. Para ele aponta o inciso I do artigo 4º da Constituição brasileira, que positiva os princípios que regem as relações internacionais do país: independência nacional.
O problema kantiano é o da busca da “paz perpétua” e de um princípio de razão abrangente regulador da humanidade, que substitua a “moral de combate”. Algo que está igualmente positivado na Constituição de 1988, também no artigo 4º: defesa da paz (inciso VI), solução pacífica de conflitos (VII) e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (IX).
Na interação entre os dois problemas, Aron desenvolveu uma ética de prudência e de equilíbrio entre excessos. Foi uma lição que me inspirou nas duas ocasiões em que tive oportunidade de conduzir o Itamaraty.
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