domingo, 11 de dezembro de 2022

O Cheque do Presidente - Demétrio Magnoli (FSP)

Dificilmente um programa que subsidia o consumo dos mais pobres consegue eliminar a pobreza: ele pode, ao contrário, mantê-la, como subproduto eleitoral do populismo dos governos.

Folha de S. Paulo, 10 de dezembro de 2022

Demétrio Magnoli - Cheque do Presidente

Folha de S. Paulo

Programas de transferência de renda aliviam temporariamente a pobreza

"Bolsa esmola" –era assim que, 20 anos atrás, Lula qualificava o programa Bolsa Escola de FHC. Depois, no poder, o tal "bolsa esmola" tornou-se o Bolsa Família, até Bolsonaro transformá-lo no Auxílio Brasil, que agora recupera o rótulo de identificação lulista. Sugiro, no lugar disso, um rebranding definitivo: Cheque do Presidente. A operação publicitária justifica-se duplamente: no campo do marketing, estabiliza a imagem de marca; no das políticas públicas, garante transparência de objetivos.

O Lula oposicionista de 2002 não criticava os valores do Bolsa Escola mas o conceito de transferência direta de renda, inspirado nas propostas de combate à pobreza do Banco Mundial. A conversão ideológica do Lula presidente assinalou, ao lado do abandono das ambições petistas de reforma econômica estrutural, a descoberta de uma mina de ouro eleitoral. De larva a borboleta: assinando o cheque, o líder dos trabalhadores metamorfoseava-se em pai dos pobres.

A pobreza extrema declinou sem parar entre 2003 (12,6%, segundo o Banco Mundial) e 2014 (3,3%). No percurso, o Bolsa Família desempenhou papel significativo, mas não determinante. O fenômeno da redução da pobreza verificou-se nos mais diversos países em desenvolvimento, da China à Turquia e do México ao Peru, sem vultosos programas de transferência de renda. O longo ciclo internacional marcado por fluxos abundantes de investimentos e valorização das commodities fazia o serviço.

Mas um cheque é um cheque. Lula nunca incrustou o programa de transferência de renda no rochedo da Constituição, evitando conferir-lhe o estatuto de política de Estado. O cheque do presidente deveria ser uma benesse de governo. "Meu adversário, que odeia os pobres, terminará o Bolsa Família" –a ameaça assombrou as disputas eleitorais de 2006, 2010 e 2014. No ano mais difícil, quando Dilma Rousseff disputava a reeleição, o valor real do cheque atingiu o ápice: R$ 245,10. Sob o lulismo, o Bolsa Família tornou-se sinônimo de política social.

Bolsonaro aprendeu a executar a mágica, mas de modo desajeitado. Na pandemia, criou o auxílio emergencial; no ano eleitoral, o Auxílio Brasil de R$ 600. A ação tardia, interrompida em 2021, obteve efeitos eleitorais limitados. Serviu, porém, para expor as entranhas perversas do mecanismo fabricado pelo lulismo: cada novo governo precisa elevar o valor do cheque que chega a mais de 21 milhões de famílias. Lula escolheu R$ 600 para empatar com Bolsonaro –e o suplemento de R$ 150 por filho pequeno para derrotá-lo. O número escrito no cheque deriva de imperativos de concorrência política, não de um cálculo de eficiência na alocação de recursos públicos.

Programas de transferência de renda aliviam temporariamente a pobreza –e ocultam suas raízes profundas. A depressão econômica gerada pela folia dilmista levou a pobreza extrema a 5,3% em 2018, mas o auxílio emergencial a comprimiu à menor taxa histórica, em 2020, no auge da pandemia (1,9%). Em 2021, sem o auxílio, a taxa saltou a 8,4% –e certamente experimentará forte redução em 2022, assegurada pelos R$ 600. O cheque faz milagres efêmeros.

As raízes da miséria só podem ser erradicadas por políticas econômicas responsáveis e políticas sociais universalistas. As primeiras dinamizam o mercado de trabalho, elevando os salários. As segundas ampliam a oferta de bens públicos de qualidade (educação, saúde, saneamento, transportes) e impulsionam a reforma urbana (moradia em áreas centrais). Nada disso, contudo, tem o poder sedutor de um cheque assinado pelo presidente –ainda mais quando ele contém a senha do cofre do crédito consignado.

A PEC da Transição é o passaporte para Lula alcançar e ultrapassar Bolsonaro. Seu custo é o congelamento da pobreza estrutural, sempre disfarçada pelo Cheque do Presidente. "Uma mão lava a outra".


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.