O silêncio e os porões
No momento em que escrevo este texto, já se passaram 28 dias desde o segundo turno das eleições presidenciais. Nesse período, ninguém sabe o que fez Jair Bolsonaro.
Em quase um mês, o primeiro mandatário do país só se manifestou publicamente em um comunicado lacônico em que sequer reconheceu sua derrota.
No mesmo período, não cumpriu uma só agenda em seu local de trabalho, o Palácio do Planalto. Houve quem especulasse que estaria deprimido ou que se manteria recolhido por conta de problemas de saúde.
O fato é que o presidente não desempenhou as funções da presidência, como se o Brasil não tivesse gravíssimos problemas que demandam gestão pública, entre eles a nova onda de covid e a necessidade urgente da compra de vacinas bivalentes.
É tamanha a ausência de sua Excelência, que, para todos os efeitos, é como se Lula já estivesse no governo dois meses antes da posse.
Nunca se soube de um presidente-fantasma; de um walking dead chefe de Nação que, diante de uma derrota eleitoral, se refugiasse em sua residência e ali permanecesse alheio às altas responsabilidades do cargo.
Houve o caso de Delfim Moreira, é verdade, político mineiro que assumiu a presidência interinamente, porque Rodrigues Alves, possivelmente vitimado pela gripe espanhola, não assumiu a presidência em 15 de novembro de 1918, falecendo um mês depois.
Delfim Moreira assinava documentos sem lê-los, espiava autoridades pela porta, mas não as recebia. Na verdade, não tinha a menor ideia do que fazer a ponto de ter delegado as tarefas de governo a um dos seus ministros, Afrânio de Melo Franco.
Sobre a incapacidade do interino, o general Dantas Barreto produziu a síntese constrangedora assinalando: “É tão notória a incapacidade mental de Delfim, que não a ocultavam nem mesmo os que tinham de fazê-lo por conveniência política”.
Delfim ficou no cargo por apenas oito meses, até a realização de novas eleições, mas o estrago que esse primeiro incapaz fez ao Brasil, assinalam os historiadores, foi imenso.
Pois bem, aqui avanço a hipótese perturbadora: Jair Bolsonaro não está ausente agora das funções da presidência; na verdade, sempre esteve. Seu “governo” pode ser descrito por um único e perverso feito: debilitar tanto quanto possível o papel do Estado e da lei em favor dos interesses “do mercado”, conveniente eufemismo para encobrir os interesses dos grandes investidores; aqueles que criaram, no Brasil, a variante do “capitalismo parasitário”.
O que Bolsonaro fez, desde o primeiro dia do seu mandato, foi agitação político-ideológica, orientado pelo objetivo de radicalizar uma massa de apoiadores, armá-la e criar as condições para estabelecer a ditadura.
O cotidiano das ações de governo foi terceirizado para operadores a serviços de lobbies privados. Por isso, sua agenda nunca foi completa; por isso, houve tanto espaço para férias, festas, passeios de jet-ski e motociatas.
Nesse fluxo, tudo o que se pôde destruir em termos de controle público, gestão, cultura, ciência, preservação ambiental, transparência, direitos e respeito foi destruído.
Tudo o que se pôde promover em termos de cobiça, egoísmo, privilégios, sonegação, sigilo, preconceitos, violência e ignorância foi promovido. Não há uma só obra ou um só programa que ofereça uma marca para este governo, porque seu maior feito nunca teve algo a ver com a construção, mas com a destruição.
Para destruir, foi preciso um antipresidente e um antigoverno. Os exemplos do despreparo de Bolsonaro são proverbiais, matéria do anedotário e da vergonha nacionais, porém não me sai da memória o dia em que, em ambiente calculadamente amigável, um entrevistador lhe endereça a seguinte pergunta: “Presidente, qual é a mais importante realização de seu governo?” Diante dessa “bola levantada”, ele balbucia: “- Bem, antes não se via tanta gente usando verde e amarelo (…) colocando a bandeira do Brasil na frente de sua casa (….)”. Sim, essa foi a resposta. Nem Delfim Moreira ofereceria expressão tão ampla de vacuidade e desorientação.
O silêncio do presidente não guarda relação com os penitentes. Traduz a opção dos que mancomunam e o estilo dos que tramam. Estar em público o obrigaria a dizer algo sobre o rombo no orçamento que pode chegar a R$ 430 bilhões, ou 4,2% do Produto Interno Bruto (PIB); sobre por que ele não previu na lei orçamentária os recursos para o auxílio emergencial de R$ 600, para a compra de merenda escolar, para a saúde indígena, para manter a Farmácia Popular e mesmo o Sistema Único de Saúde (SUS), um dos poucos orgulhos de uma nação aviltada, que, como alertou o Tribunal de Contas da União (TCU), encontra-se ameaçada e assim sucessivamente.
Pensando bem, por que mesmo ele deveria oferecer justificativas ou prestar contas? Por que mesmo ele deveria se comportar como um presidente? Não demandem de Bolsonaro o apreço pela luz pública. Afinal, para ele e seus heróis, como se sabe, nada é tão inspirador e emocionante quanto os porões.
Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.
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