terça-feira, 30 de abril de 2024

Israel e Ucrânia: dois países inaceitáveis para o PT: Lula acata a rejeição- Marcelo Godoy (Estadão)

 Exército escolhe empresa isralenese em licitação bilionária e abre nova disputa com o PT

Estadão.com.br 29 de abril de 2024

Marcelo Godoy

Companhia de Israel era uma das quatro finalistas da licitação; para petistas, comprar equipamento do país em guerra na Faixa de Gaza significaria dar apoio indireto à ação condenada pelo governo
O exército brasileiro anunciou nesta segunda-feira que a empresa israelense Elbit Systems, e suas subsidiárias brasileiras Ares Aeroespacial e Defesa e AEL Sistema, venceu a licitação internacional da Força Terrestre para adquirir 36 viaturas blindadas de combate, conhecidas como obuseiros de calibre 155 mm autopropulsados sobre rodas (VBCOAP-SR). A escolha deve criar novo atrito entre a Força Terrestre, o Partido dos Trabalhadores (PT) e integrantes do governo Luiz Inácio Lula da Silva.

O Atmos israelense venceu a disputa entre os veículos blindados de obuseiro de 155 mm autopropulsados sobre rodas que podem ser adquiridos pelo Exército Foto: Reprodução/EstadãoA administração Lula deve levar em consideração o resultado da escolha técnica feita pelo Exército, mas esta deve agora passar por considerações de ordem geopolítica. Israel está em guerra contra os terroristas do Hamas, na Faixa de Gaza, em uma ação cuja intensidade e danos causados à população civil palestina têm sido alvo de críticas ao redor do mundo. Recentemente, o Conselho de Segurança das Nações Unidas votou uma resolução ordenando um cessar-fogo no conflito, o que foi ignorado por Israel.

Em 18 de fevereiro, durante entrevista em Adis-abeba, na Etiópia, Lula comparou a ação de Israel em Gaza ao Holocausto, o genocício judeu perpetrado pelos nazista durante a 2.ª Guerra Mundial. A reação do governo de Binyamin Netanyahu foi imediata: além de acusar o brasileiro de antissemitismo, o governo de Netanyahu declarou Lula persona non grata em Israel.

Após comparação com Holocausto, presidente Lulafoi declarado persona no grata pelo governo de Israel Foto: Ricardo Stuckert / PRPara além das disputas entre os dois governos, as Forças Armadas e as polícias do Brasil mantêm uma relação antiga com empresas de Israel. A Marinha, por exemplo, depende dos israelenses para a manutenção das turbinas de seus caças A4 Skyhawk, baseados no Rio. Polícias brasileiras compraram armas e até mesmo material de espionagem de empresas de Israel. O Exército fechou a compra recente de mísseis anticarro Spike LR, da israelense Rafael, cuja entrega está atrasada em razão da guerra.

Este é o primeiro senão ao produto da Elbit, o sistema Atmos 2000, vencedor da licitação para o VBCOAP. Trata-se de uma licitação milionária, cujos valores podem chegar perto de R$ 1 bilhão. Os outros três concorrentes eram a empresa Nexter francesa, com seu sistema Caesar, o SH-15 da chinesa Norinco e o viaturas do sistema eslovaco Zuzana, cujo fabricante firmara uma parceria com a brasileira Avibrás, cujos milhões do novo contrato poderiam ajudar a retirar a empresa da recuperação judicial.

No caso do sistema israelense, haveria dúvidas sobre a capacidade da empresa respeitar os prazos de entrega previstos pelo Exército em razão da imprevisibilidade de uma escalada no conflito no Oriente Médio. O mesmo problema afetaria os concorrentes europeus, cujos países estão comprometidos em apoiar a Ucrânia na guerra com a Rússia. As 36 novas viaturas VBCOAP vão equipar as unidades de artilharia divisionária do Exército.

O obuseiro Caesar francês (foto) estava entre os veículos blindados de artilharia de 155 mm autopropulsados que podiam ser adquiridos pelo Exército Foto: NEXTER CAESARA esquerda petista se articula para pressionar o governo Lula contra a possibilidade de a Força Terrestre fechar a compra do equipamento israelense. Petistas históricos, como José Genoino, consideram que adquirir o produto da Elbit System seria financiar indiretamente o esforço de guerra de Israel. Genoino alertou em março que isso traria um enorme desconforto para a base social do governo, que não entenderia a medida, ainda mais diante do atual nível de confrontação com a administração Netanyahu. Não só a esquerda do partido é contra. Na semana passada, o vice-presidente da sigla, o deputado federal Washington Quaquá, também se manifestou contra o negócio com Israel.

Não era segredo para o Exército a animosidade do governo em relação a atual administração de Israel. mesmo assim decidiu seguir adiante com "sua escolha técnica". No ano passado, a Força Terrestre defendeu a venda de 400 unidades do blindado Guarani em versão ambulância para a Ucrânia, mas a operação de R$ 3,5 bilhões recebeu parecer contrário do Ministério das Relações Exteriores e foi vetada pelo presidente Lula. Agora, a Força mais uma vez leva o problema à mesa do presidente a fim de que ele decida.

É possível que critérios geopolíticos prevaleçam no caso, pois as compras da defesa têm regras próprias. Diante das restrições orçamentárias e do surgimento de novas prioridades, como a artilharia antiaérea de médio alcance, ocupem o lugar da compra das viaturas blindadas de obuseiros autopropulsados no Exército. A Força Terrestre começa a trabalhar com um cenário de restrição orçamentária cujo fim ainda não é previsível.


O apelo dramático de Zelensky por mais armas e meios de defesa

 From: Volodymyr Zelensky

Today, NATO Secretary General @jensstoltenberg and I discussed in detail the situation on the battlefield in Ukraine, our capabilities, and the capabilities of our partners to support our soldiers.

The Russian army is now trying to take advantage of the situation while we are waiting for deliveries from our partners, and first of all, from the United States. Therefore, rapid delivery literally means frontline stabilization.

155-mm artillery, long-range weapons, and air defense systems, first and foremost “Patriots”. This is what our partners posses, and this is what should be working now in Ukraine to destroy Russia’s terrorist ambitions. The Russian army is preparing for further offensive actions. Together, we must thwart these plans. Our partners have all the necessary tools for this.

O tirano mais cruel do mundo e o líder do Sul Global : almas gêmeas? - Editorial Estadão

 Toda manhã, Putin confronta seu espelho: “Espelho russo, espelho meu / Haverá no mundo tirano mais cruel do que eu?” Contente, inicia o dia mandando bombardear mais algumas cidades ucranianas, em especial alvos civis e de infraestrutura. Pode então dormir contente. Lula deve admirá-lo!

Paulo Roberto de Almeida 

O Brasil no ‘Eixo da Revolta’

Editorial, O Estado de S. Paulo, 30/04/2024

A deplorável aliança com Irã, China e Coreia do Norte para dar fôlego à Rússia do delinquente Putin só é explicável pela megalomania de Lula, que se arvora em líder do ‘Sul Global’

A despeito das pesadas sanções impostas pelo Ocidente à Rússia por conta de sua guerra criminosa contra a Ucrânia, Vladimir Putin tem obtido êxitos na frente de batalha e no plano econômico. A economia russa está longe da exuberância em meio ao conflito. Ao mesmo tempo, porém, está distante do eventual colapso que, na visão dos países sancionadores, talvez pudesse levar ao fim da guerra e, quiçá, à responsabilização de Putin por seus crimes. A China, claro, é a grande responsável pela vitalidade desse regime delinquente, mas, desafortunadamente, parte considerável do fôlego de Putin tem vindo do Brasil.

O Estadão revelou há poucos dias que, neste terceiro mandato presidencial de Lula da Silva, o Brasil expandiu os laços econômicos com a Rússia. Tal é o grau de cooperação entre os dois países atualmente que, em 2023, a meta de trocas comerciais entre o “B” e o “R” dos Brics originários – US$ 10 bilhões – foi superada pela primeira vez em duas décadas. No ano passado, o volume de negócios com Moscou chegou a US$ 11,3 bilhões. Hoje, o Brasil é o maior comprador de diesel russo (6 milhões de toneladas adquiridas em 2023). Os fertilizantes russos vêm em seguida na agenda comercial do País, respondendo por compras que chegam a quase US$ 4 bilhões ao ano.

Lula, como se vê, não quer saber se há mais de dois anos Putin comete atrocidades em série na Ucrânia e ameaça a paz na Europa como nunca antes alguém o fez desde o final da 2.ª Guerra. Tampouco tem procurado alternativas decentes para a aquisição daqueles produtos. Ao optar por negociar com um pária internacional, Lula decerto aproveita uma vantagem comercial para adquirir insumos essenciais para as próprias atividades econômicas do Brasil. Afinal, com poucos países para transacionar diante do cerco internacional, Putin se vê obrigado a oferecer condições competitivas àqueles que se dispõem a fazer negócios com um criminoso de guerra. Mas o barato sai caro.

Em que pese o apelo comercial, sobretudo no caso dos fertilizantes, matéria-prima para o segmento mais pujante da economia brasileira, o agronegócio, o que Lula busca, na verdade, é o fortalecimento do tal “Sul Global”, aliança antiocidental da qual o petista mal disfarça o desejo de ser proclamado líder. Imbuído desse espírito megalomaníaco, o presidente da República não parece ter perdido um minuto de sono preocupado com o alto preço político que sua escolha impõe ao Brasil. Para dizer o mínimo, sob Lula, o País tem afrouxado cada vez mais os laços que o unem aos valores ocidentais que, historicamente, constituíram a espinha dorsal da política externa brasileira: a defesa da liberdade, dos direitos humanos, do Estado Democrático de Direito, do multilateralismo e da solução pacífica dos conflitos.

Não se sabe se por ignorância, máfé ou péssimo aconselhamento, Lula tem confundido o protagonismo dessa ficção chamada “Sul Global” com a defesa de uma nova governança internacional mais adequada para um mundo “multipolar”. O busílis é que não há multipolaridade alguma em jogo. O que está em curso é a união de um punhado de ferozes ditaduras em busca de ajuda mútua contra os Estados Unidos, a União Europeia e tudo mais que possa ser interpretado pelos autocratas como ameaças a seus desígnios liberticidas. É a esse tipo de aliança que o Brasil deveria pertencer? É a isso que Lula da Silva pretende rebaixar o País?

Do ponto de vista estratégico, ou seja, a longo prazo, o Brasil não tem rigorosamente nada a ganhar alinhando-se ao que a revista Foreign Affairs chamou de o “Eixo da Revolta”. Trata-se da conjunção de esforços da China, do Irã e da Coreia do Norte para fortalecer a Rússia, enfraquecer o Ocidente, em particular os Estados Unidos, e, como se não bastasse, violentar a soberania ucraniana. O Brasil, segundo analistas internacionais, é considerado um país “estratégico” para o triunfo desse clube antiocidental – o que, mais que uma vergonha, representa uma traição aos princípios que nos constituem como nação.

Grato a Augusto de Franco pela transcrição do editorial.

Capítulo, Da Constituinte de 1823 à Constituição de 1824: aspectos econômicos, Paulo Roberto de Almeida in: A Constituição do Império do Brasil de 1824

 


Da Constituinte de 1823 à Constituição de 1824: aspectos econômicos 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Contribuição ao debate sobre a economia política da primeira constituição do Brasil. 

Publicada  in: A Constituição do Império do Brasil de 1824: edição comemorativa comentada de 200 anos; obra organizada por Rafael Nogueira. São Paulo: LVM Editora, 2024, 208 p.; ISBN: 978-65-5052-181-3; p. 93-109.  Relação de Publicados n. 1559. 


  

Sumário: 

1. No Brasil, as receitas seguem as despesas, não o contrário

2. A economia política do projeto de Constituição de 1823

3. A Constituição Política do Império do Brasil: seus aspectos econômicos

4. Uma economia comandada pelo gasto público, não pela poupança ou investimento

 

1. No Brasil, as receitas seguem as despesas, não o contrário

Ao final do Império, e da vida útil da mais longeva das constituições que o Brasil conheceu até o presente momento, a de 1824, um dos deputados republicanos atentos à difícil situação econômica do país, Antonio Ferreira Viana, proclamava de forma peremptória: “O Império é o déficit!” De fato, o império era o déficit, daí a grande dívida externa acumulada desde o início da independência do Brasil, a partir do primeiro empréstimo negociado por Felisberto Caldeira Brant junto aos banqueiros ingleses ainda em 1823. As dívidas eram feitas para suprir pagamentos externos não cobertos pelas receitas de exportações – como os próprios encargos assumidos com o empréstimo português contratado antes da independência e o pagamento a D. João VI por suas propriedades no Brasil –, e novas dívidas passaram a serem feitas para pagar os juros de dívidas anteriores, sendo o principal postergado para o futuro por sucessivos contratos de funding loans, empréstimos de consolidação.

Os déficits fiscais com despesas públicas em excesso sobre as parcas receitas sempre constituíram o mais sério problema de política econômica, aliás, não só no Império, mas provavelmente em toda a história da nação, sendo possível, a algum examinador detalhista das contas públicas, identificar os poucos anos nos quais se conseguiu obter receitas acima das despesas correntes nos dois séculos de vida independente. Vindas do período colonial, as modalidades de obtenção de recursos públicos pela via da cobrança de tributos alocada a contratos feitos com particulares foram gradativamente substituídas no Império pela cobrança direta pelos poderes públicos, recolhendo-se as “rendas” (mas não todas) ao Tesouro. O Tesouro real de Portugal tinha se tornado, ao final do século XVIII, extremamente dependente dos recursos provenientes do Brasil, que tinham diminuído bastante com o esgotamento dos recursos auríferos e em diamantes das “minas gerais”, o que suscitou uma nova “derrama”, raiz da tentativa de independência naquela conjuntura.

Normalmente, os países operam o equilíbrio orçamentário da nação estimando, em primeiro lugar, as receitas, para depois fixar as despesas permitidas pelos recursos disponíveis. Ao organizar-se a nação, no Império, o procedimento era aparentemente o contrário da melhor norma recomendada pelos economistas: as despesas eram fixadas e depois se ia buscar as receitas, daí o déficit proclamado pelo tribuno republicano depois de uma longa, constante e crescente acumulação de dívidas públicas para remediar àquela inversão durante as décadas de lento crescimento econômico. Como os investimentos eram poucos, se adotou a prática de subsidiar os investimentos estrangeiros, pela garantia de juros mínimos de rendimento. Como explicitado por um dos grandes historiadores econômicos do Império, Marcelo de Paiva Abreu, “o Brasil apenas copiou políticas adotadas por outros países que concorriam na atração de capital estrangeiro em escala global”.[1]

 



[1] Cf. Marcelo de Paiva Abreu, Brasil: patrimonialismo e autarquia, Ensaios. Rio de Janeiro: Águas Férreas, 2020, vol. 1, p. 15. 


(...)


Ler a íntegra neste link da plataforma Academia.edu: 


https://www.academia.edu/117447765/4593_Da_Constituinte_de_1823_a_Constituicao_de_1824_aspectos_economicos_2024_





Uma ode ao octogenário da liberação de Roma - Daniel Afonso da Silva (Jornal da USP)

Uma síntese genial de todo o processo político que vai da Grande Guerra à queda de Roma, em 1944, e das várias etapas de recuperação aliada contra as poderosas forcas nazi-fascistas. Uma leitura das mais instrutivas, contendo informações coletadas numa ampla literatura da história europeia e mundial, assim como de obras de referência sobre a Segunda Guerra, que no entanto permanecem na moita.

Poucas vezes li, na produção acadêmica brasileira uma tal capacidade de síntese sobre o período mais decisivo do século XX, sua primeira metade.

Paulo Roberto de Almeida.

Uma ode ao octogenário da liberação de Roma

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador no Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP

 Jornal da USP, 29/04/2024

https://jornal.usp.br/articulistas/daniel-afonso-da-silva/uma-ode-ao-octogenario-da-liberacao-de-roma/

Para Gabriel Yuji Kuwamoto Silva (1996-2024).

Aquele 4 de junho de 1944 foi um dia muito especial. Os aliados finalmente libertavam Roma. A tentação do Reich esmaecia. Hitler estava mais e mais acuado, sentido e deprimido. A Wehrmarcht caia na defensiva. O desembarque aliado na Europa estava sendo um sucesso. As forças britânicas e norte-americanas de terra, mar e ar conseguiram integrar perfeitamente os seus esforços de guerra, ação e intervenção na direção de vencer o inimigo nazista, fascista e nazifascista, conter os extremismos de todos eles e reabilitar a esperança de dias bons.

Desde meados de 1914 que os dias viraram noite de tez muito escura. Todas as relações humanas foram brutalizadas. Nenhum setor da vida foi poupado. Todos os instintos primitivos foram avivados. A selvageria consciente rondou todas as casas e misérias da natureza humana adentrou fartos corações.

O 11 de novembro de 1918 foi, em contraponto, um alívio. Nenhum sobrevivente viveu esse dia sem emoção. O terror das trincheiras que havia trazido o Hades para este mundo parecia retrair. Mas a dor da lembrança era imensa. Tamanha que nem a fé – em Cristo ou em qualquer outro – permitiu aos homens remediar.

Viveu-se, de 1914 a 1918, assim, às voltas com o Inferno sob as primícias do Armagedom. O carisma do presidente Woodrow Wilson contrastou recalibrou essa imagem. A sua candura no falar, no pensar e no mover dava fortes significados àquele fim de guerra, fim de vida, fim de tarde, fim de mês. Um novo tempo se abria. Ninguém, por certo, conseguia obliterar o odor das trincheiras. Sociedades inteiras perderam a sua razão de existir. Muitas outras inclusive perderam o seu chão. Nesse torvelinho, especialmente os europeus entenderam que as ambições gerais de potência e de poder tinham ido longe demais. Certo que eles mesmos, europeus, guerreavam entre si desde a noite dos tempos. Mas desde Borodino, Austerlitz, Jena, Auerstedt e Iena – mais sangrentas batalhas dos tempos de Napoleão – eles poderiam ter retirado alguma lição.

Mas, não.

Adiante, nenhum europeu informado ou não se esqueceu da simbólica humilhação entronizada naquele dia 18 de janeiro de 1871 quando o rei da Prússia, na Galeria de Espelhos do Palácio de Versalhes, foi proclamado imperador da Alemanha. Mesmo que Otto von Bismarck tenha merecido a alcunha de “bom” – leia: “homem bom” –, os seus sucessores alimentaram o sucesso da tragédia. Uma tragédia moral, espiritual, cultural, militar, intelectual, estratégia, tática, operacional e singelamente humana que aquele dia 11 de novembro de 1918 prometia conter.

Mas, novamente, não.

O que se anotou do lendemain e depois foi a derrota insistente da capacidade de todos de construção da paz. Os vencedores de agora seguiam insatisfeitos e os perdedores de sempre queriam voltar a se afrontar. A fúria interior de todos era muito grande. O ressentimento então, nem se fale. Benito Mussolini desde a Itália liderava a exaltação de um novo homem a partir do homem novo que seria marinado no deslumbre pela força, virilidade, obediência irrestrita ao chefe, ao mandatário, ao másculo, ao líder, ao guia. Eis o espírito do nazismo.

Pelo restante da Europa e além essa exaltação ao super macho rastejante das trincheiras virou modelar. Tudo porque, como notificou o filósofo italiano Giovanni Gentile, 1914-1918 nunca acabou. 1914-1918 brutalizou, vandalizou e desconjuntou tudo com tanta ênfase que ficou impossível seguir, viver e superar o passado. O peso do passado imediato virara um fardo de presente contínuo. Uma âncora que impedia os italianos de fluir.

Na Alemanha – principal humilhada e não apenas traída com a Itália no após Grande Guerra – o sentimento sobre tudo isso era ainda mais imoderado. O que os paladinos do bem fizeram em Versalhes ante os alemães foi insuportável. Os responsáveis pela república de Weimar sabiam disso. E, por isso, tentaram algo compensar. Mas não era possível. Do contrário, era impossível, inviável, sem sentido nem razão. Todos sabiam que não se construiria a paz sob as ruínas do descrédito tangido por impérios de não-perdão.

Quando Hitler aquinhoou todos os poderes na Alemanha todos sabiam que a revanche seria certa, dura, brutal e inominável. Mas as conveniências daqueles mesmos que fizeram as tratativas de Versalhes sugeriam esperar, conversar, negociar. Os franceses, ingleses e norte-americanos, modernos e antigos modernos, haviam ressignificado a arte de se parlamentar e a transformaram num imperativo de convivialidade depois das Revoluções. Desse modo, mesmo com el diablo às portas, a orientação era de se seguir a parlamentação.

E, assim, seguiam. Entretanto, do outro lado do planeta, no Pacífico, os japoneses nem os chineses viviam em outra cultura, outra mentalidade, outros destinos que não conseguiam justificar essa espera para parlamentação. Tanto que a conquista do Japão sobre a China em 1937 foi sem aviso nem contrição. Um feito gigantesco. Que reabilitou os espíritos de 1914. A tragédia da guerra-mundo voltava a conduzir espíritos. A investida italiana fascista na Etiópia e na Espanha em 1935-1936 deram, assim, o tom do retorno à guerra sem fim. A investida japonesa de 1937 mundializou essa guerra. O que o Führer promoveu foi a interiorização do arcano 13 – o anjo da morte – na Europa a partir de 1939.

Curiosamente foi somente quando a desgraça simbolizada nesse arcano penetrou na Europa que a guerra-mundo voltou a ser considerada mundial. Mas, agora, com novidades.

A astúcia do Führer no emprego da Wehrmacht e da Luftwaffe para esquartejar seus inimigos vitais foi uma inovação cruelmente extraordinária. O cerco à Polônia e queda da Bélgica em 1939-1940 criaram um malaise sem precedentes na opinião político-militar planetária. Não sem razão, os periódicos norte-americanos The New York Times e Newsweek alcunharam, desde 1939, a nova ofensiva alemã como Blitzkrieg – guerra-relâmpago, tormento sem fim. Era, sim, algo inovador. Mas também dramático e desesperador. Ninguém conseguia se preparar para contê-lo. Nem a França que seria o seu próximo target.

Blitzkrieg alemã sobre a França na primavera de 1940 foi implacável. As poucas semanas de conflito que conduziram à queda do país da revolução promoveriam, pouco a pouco, o maior sinistro político, militar, cultural, intelectual, espiritual e moral de toda a história das grandes guerras. O martírio da França significou – sem exageros – o martírio do mundo inteiro.

Quando o marechal Pétain preferiu capitular a lutar diante da Blitzkrieg em 1940, uma parte expressiva e considerável do espírito francês, europeu, ocidental, democrático e liberal foi maculado para nunca mais se recuperar. Ninguém conseguiria imaginar – em 1940, antes ou depois – uma queda tão rápida, tão forte e tão desconcertante. O coronel De Gaulle – herói da Grande Guerra, tal e qual o marechal Pétain – percebendo a ignomínia de “cair sem lutar” e capitular ao Reich, desertou das forças oficiais francesas e partiu para Londres para, desde lá, iniciar a resistência ao Führer.

Mais le dernier mot est-il dit?” [a última palavra já foi dita?]. “L’espérance doit-elle disparaître?” [a esperança está condenada a desaparecer?]. “La défaite est-elle définitive?” [a derrota é definitiva?]. Eis as perguntas nucleares de seu afamado Apelo do 18 de Junho registrado e difundido pelas ondas da BBC de Londres poucos dias após a queda da França e a constituição do vexaminoso regime de Vichy.

Alguns muitos se fizeram de surdos diante do apelo desse francês à deriva. Outros tantos, entorpecidos pela perplexidade, nem conseguiram entender nem interpretar o que ele propunha. A agonia era tanta e, talvez, sem par que mesmo alguns muito valorosos começaram a vacilar.

Do outro lado da Montanha Mágica, às voltas com o Wolfsschlucht, quartel-general alemão, instalado nas cercanias de Bruxelas, Hitler não se continha em gargalhar. O sucesso sobre a França fora tamanho que talvez nem Bismarck nem o kaiser Guilherme I imaginariam conquistar. O Reich, assim, sob Hitler e às portas de Paris, chegava ao seu momento supremo de sua afirmação e glória.

Jusante aos Alpes, Benito Mussolini também se exortava em regozijos. Do outro lado do mundo, no Pacífico e no Japão, os súditos do imperador Hiroito e seguidores do primeiro-ministro Fumimaro Konoe também estavam excitados com a queda súbita da França. Mesmo Stálin, desde a Moscou sem fim, via tudo aquilo com entusiasmo incomum.

O aturdimento do primeiro-ministro Winston Churchill era, em contraponto, profundo e integral. Ele sabia que, caída a França, o Reino Unido poderia ser o próximo. E, mais que isso, talvez não houvesse sangue, suor e lágrimas suficientes para esse martírio contrastar. Nesse espírito de responsabilidade e receio, ele não viu outro caminho senão singrar o Atlântico em busca de maior atenção de Washington, da Casa Branca e do presidente Franklin Delano Roosevelt.

Desde o ocaso da presidência Woodrow Wilson, vinte anos antes, que o isolacionismo tomou conta da métrica e da compleição mental dos norte-americanos sobre a sua presença e projeção internacionais. O verdadeiro contragosto interno diante dos Quatorze Pontos e dos preceitos da Sociedade de Nações levou a classe política e do deep state do país a reconhecer o enclausuramento como um projeto.

Se nada disso bastasse, o choque da quebradeira de 1929 fora inclemente e ficou difícil de suportar, segurar e superar. O presidente Roosevelt, assim, tinha sido eleito e reeleito várias vezes para salvar o país dessa bancarrota interna e todo o resto – notadamente de dimensão exterior – deveria ficar em quarto, quinto ou sexto plano. Não era prioridade frente à demanda de avivamento da dignidade do estadunidense. Por tudo isso, o envio físico de homens em uniforme para a Europa estava completamente fora de cogitação. O New Deal era para salvar os Estados Unidos da América e não a Europa nem o mundo inteiro.

Entrementes, o choque da queda da França tocou alguns corações e mentes norte-americanos. Pouco a pouco foi se notando que a deriva francesa punha em risco os princípios existenciais dos demais considerados democráticos, libertários e liberais como os norte-americanos, europeus e ocidentais. Consequentemente mais e mais os reclamos do primeiro-ministro de Her Majesty conseguiam audiência na América para lhe ouvir após a notícia da queda da França e da ocupação nazista do país.

Nesse sentido, as sondagens de opinião pública ocidentais indicavam que mais e mais norte-americanos desejavam a derrota de Hitler, o fim do nazismo e a ocaso dos extremismos fascistas e nazifascistas. Mas, da parte do presidente norte-americano, ainda não havia convicção para avançar. Por conta disso, ele sugeria à sua contraparte, o primeiro-ministro britânico, aguardar. Em verdade, o presidente Roosevelt estava mais atento às estimações para as urnas de novembro que aos tormentos dos europeus pela Europa. Os Estados Unidos viviam aquele seu momento sagrado de périplo eleitoral. Nada, portanto, retiraria a atenção dos norte-americanos dessa procissão. O presidente Roosevelt era candidato à sua própria reeleição. Nada poderia fragmentar os seus esforços em voltar a vencer. Nem mesmo a percepção da gravidade da entropia dos ditames ocidentais com a queda da França.

Uma vez reeleito, o mandatário norte-americano, enfim, pôde se virar com vagar para a agonia europeia.

Em verdade, desde o encontro da última chance em Munique em 1938 e desde a aliança Molotov-Ribbentrop firmada em Moscou em 1939 que as gentes da 10 Downing Street e do Palácio de Buckingham projetavam todas as suas esperanças em Washington, na Casa Branca e no presidente dos Estados Unidos. Mas, quando a Polônia, a Bélgica e a França caíram, essa projeção de esperança virou obsessão. Estava, desde ali, muito claro para eles que sem os irmãos norte-americanos seria impossível suportar Hitler, o nazismo e os demais extremismos. Como amostra desse desespero, estava evidente que sem um apoio norte-americano expressivo os súditos de Her Majesty não aguentariam por muito mais tempo o verdadeiro dilúvio de fogo que a Luftwaffe promovia no país. A Air Raid Precautions Committee – instaurada, bem treinada, conservada e motivada desde os anos de 1920 no núcleo da estratégia de defesa britânica – estava sendo muito útil e valorosa. Entretanto, já indicava fadiga. Os recursos para mantê-la começavam a rarear. Faltava, essencialmente, dinheiro. Dinheiro que os britânicos pareciam já não ter mais para aportar.

Para acomodar tudo isso que o presidente Roosevelt e o primeiro-ministro Churchill se viram em pessoa na primavera de 1941. A sanha nazista, fascista e nazifascista na Europa já tomava conta do tempo, dos relógios e dos calendários e nenhuma parcela dos domínios britânicos nem norte-americanos além terra e além-mar seguiam salvaguardados. A África e a Ásia – sem contar o deserto e o Oriente Médio – seguiam presas fáceis para a Wehrmacht, a Luftwaffe e todas as suas replicações nos países do eixo. Nenhum mar nem Oceano, assim, ficou a salvo nem à solta. Do Atlântico ao Mediterrâneo ao Vermelho ao Índico ao Pacífico tudo e todos viraram terrenos de disputa e conflagração. Essa imagem aterradora de desvirtuação do mundo, vista em detalhes, passou a preocupar muito os núcleos de decisão de Londres e de Washington. E, por isso, seus mandatários decidiram se entrevistar em pessoa naqueles dias.

Enquanto isso, o chefe de estado-maior norte-americano enviava briefings detalhados e ilustrados diuturnos ao presidente Roosevelt, aos membros do Congresso e notadamente aos membros do Senado. Do outro lado do Atlântico, o seu homólogo em função fazia o mesmo.

Essa verdadeira inflamação de encontro, informações e contatos levou as duas partes – Londres e Washington, Washington e Londres – a realizar a primeira grande conferência de uma série que foi a Conferência do Atlântico.

Finalizada no dia 14 de agosto de 1941 e iniciada cinco dias antes, nas imediações de Terra Nova, nos Estados Unidos, essa conferência reuniu, pela primeira vez, além dos magnânimos presidente Roosevelt e primeiro-ministro Churchill, a integralidade dos conselheiros civis e militares dos dois lados. Como resultado, as presenças mundiais das duas potências nos teatros planetários de guerra foram definidas. Os norte-americanos cuidariam do Pacífico e os britânicos, do Atlântico. Washington liberaria mais e mais recursos para Londres e Londres mobilizaria esforços para sobreviver e melhor otimizar movimentos de resistência ao hitlerismo na Europa. O Mediterrâneo e a África eram ainda incógnitas. Não se sabia ao certo como proceder. Mas o presidente Roosevelt tinha em tudo uma convicção e uma direção: a convicção e a direção da necessidade de se preservar – custasse o que custasse – as Quatro Liberdades wilsonianas e todos os preceitos de inviolabilidade dos territórios.

Eis aí a síntese das motivações da, doravante, afamada Carta do Atlântico que guiaria todos os espíritos aliados até o fim. Um fim que demoraria chegar. Mas que, agora, em agosto de 1941, começava, ao menos, a se desenhar.

Mesmo assim, os norte-americanos ainda se recusavam a ingressar inteiramente na guerra. Uma pesquisa de opinião realizada naquele agosto aferia que 80% da população era terminantemente contrária à guerra – leia-se: ao esforço de guerra norte-americano, com aumento do envio de recursos materiais, financeiros e humanos – e 60% desejava a derrota avassaladora da Alemanha. Acabar com a guerra e derrotar a Alemanha sem o apoio norte-americano era isso que desejavam os norte-americanos. Nesse sentido, as premissas da Carta do Atlântico ficaram estéreis.

Mas veio o incidente de Pearl Harbor que modificou tudo.

Após aqueles ataques de dezembro de 941, subitamente inclusive os norte-americanos mais reticentes decidiram adentrar o conflito. Desse modo, lutar e vencer a guerra deixavam de ser uma hipótese estratégica para se tornar uma convicção existencial. Os norte-americanos, assim, foram tornados em responsáveis morais pela defesa irremediável do Mundo Livre.

Essa fúria norte-americana diante do evento-monstro e infernal preocupou do primeiro-ministro britânico. Ele suspeitava e temia que o presidente Roosevelt e a Casa Branca poderiam abandoná-lo solito na Europa frente a Hitler. Devido a isso, no dia seguinte ao ataque dos japoneses ele atravessou novamente o Atlântico e foi implorar ao presidente Roosevelt que não desguarnecesse a Europa nem o Reino Unido. A vingança – tratada eufemisticamente como direito de defesa – era legítima, lembrava o primeiro-ministro. A agressão a Pearl Harbor fora sentida e vivida como um ato libidinoso asqueroso e brutal sem consentimento entre os norte-americanos. Uma agressão que ninguém, portanto, sem perdão. Mas focar no Pacífico em substituição à Europa causaria danos ainda maiores a todos. Nesse sentido, o presidente Roosevelt foi cauteloso, enfático e apaziguador. Disse à sua contraparte britânica, fique tranquilo: “Germany First”. A urgência focava eliminar Hitler. Do Japão cuidar-se-á depois.

Doravante, nesse entendimento, a máquina de guerra norte-americana começou a verdadeiramente operar multidimensionalmente e planetariamente. E com o aval e o suporte de toda opinião pública e política do país. Nesse sentido, nenhum político nem empresário nem jornalista ousava ser contra o novo momentum norte-americano. O presidente e, portanto, comandante-em-chefe das forças começava, assim, a exercer os seus plenos poderes para guerrear e iniciou um importante processo de integração e unificação dos esforços de guerra britânico e norte-americano.

O primeiro dos primeiros movimentos nesse sentido foi a fusão da gestão do processo decisório no âmbito militar a partir da criação do Combined Anglo-American Chiefs of Staff (CCS), com sede em Washington, a partir dos inícios de 1942. Dessa maneira, o alto-comando de parte a parte passaria a viver, estudar, projetar e decidir tudo em conjunto. Em adição a isso, outra evolução importante foi a junção do processo decisório no âmbito dos chefes de estado-maior de Londres e Washington. Desse modo, fez-se o Join Chiefs of Staffs – o mesmo que, depois da guerra, em 1947, seria ressignificado e transformado no Pentágono.

Tudo isso, enquanto enquadramento burocrático e administrativo para harmonização de interesses, foi algo simplesmente espetacular. Mas, no campo concreto e cruento da guerra, a notícia mais relevante veio do frio. Do frio de Moscou e do frio do semblante do camarada Stálin.

Em realidade, desde a Conferência do Atlântico que o presidente Roosevelt sinalizava para uma cooperação mais estreita com os soviéticos. Sem Stálin – intuía ele – seria impossível vencer Hitler. Hitler, naqueles tempos, já tinha tornado nulo o pacto germano-soviético de não agressão e marchava fagueiro para assaltar Moscou movido pela astúcia de superar os feitos de Napoleão; abraçando, domando e dominando o Urso. Tudo isso porque o sucesso da Blitzkrieg desde a Polônia – e o empilhamento de sucessos a seguir – acabou por inebriar a razão no interior do Führer a ponto de fazê-lo transitar de lunático a demente.

Por evidente que ele não leu Tolstói. Se tivesse lido dimensionaria a profundidade da Rússia. Por evidente que também levava pouco a sério o peso dos conselhos cartográficos de Clausewitz. Se o levasse saberia que a Rússia – e a Grande Rússia – nunca deixou de se imaginar eterna, eternal, atemporal, infinita. E saberia mais. Saberia que nunca – repita-se e entenda-se: nunca – gente da qualidade dos magnânimos Pedro nem Catarina se dignificaram a serem menores que Grandes.

Quem volta no tempo, bem antes de Tolstói, Napoleão, Clausewitz e mesmo do lendário Iván, o terrível, vai, enfim, entender – o que Hitler se negava a perceber – que a Rússia jamais se fiou em fronteiras. Consequentemente, como nos tempos do império romano ou do império do meio, os russos de sempre jamais se sentiram parte tampouco o centro do mundo. Entre eles, russos da Grande Rússia, só existe a Rússia e a convicção de que um mundo sem Rússia simplesmente não merece existir. Dito de modo menos críptico, os russos desde sempre seguem imbuídos a lutar até o seu último homem com fins de preservar a Rússia para sempre. Ninguém, assim, mais que eles, leva tão a sério o furor existencial e de sobrevivência. E Hitler sabia disso. Mas preferiu deixar de saber.

Entorpecido pelas vitórias temporárias desde Varsóvia até Paris, Hitler acreditou imatura e petulantemente na possibilidade de dominar territórios infinitos da Rússia e massacrar permanentemente os combatentes de Stálin. Ao fazê-lo, Stálin, por sua vez, apenas observou. E tão logo a Wehrmacht chegou às portas de Moscou em dezembro de 1941, o reflexo do herdeiro de Lênin foi o de exigir do seu Exército Vermelho que bloqueasse o avanço dos homens de Hitler até deixá-los inteiramente exangues. E assim se fez. O avanço das forças alemãs foi contido às portas de Moscou e Stálin seguiu meditando como melhor esmagá-las e conduzir a memória de seus restos mortais até Berlim.

Sim: tão demente quanto Hitler, Stálin incutiu no imaginário dos combatentes soviéticos o imperativo de se lutar a guerra de suas vidas para retirar a vida de todos aqueles que haviam malversado as nobres razões russas e soviéticas de existir. Tudo isso em dezembro de 1941-janeiro/fevereiro/março de 1942.

A chegada da notícia desses feitos em Londres e Washington reavivou a convicção do presidente Roosevelt em apoiar Stálin. Entretanto, apoiar Stálin seria literalmente negar o espírito das Quatro Liberdades wilsonianas entronizados na Carta do Atlântico de 1941. Isso tudo porque Stálin demandava a divisão da Europa em dois fronts, um ocidental e outro oriental, fazendo tombar o Leste europeu sob a responsabilidade dos soviéticos e o Oeste da Europa seria problema dos aliados. Afora isso, Stálin também queria integrar aos domínios soviéticos todos os territórios conquistados por Moscou a partir de 1939.

Dito sem remendos, apoiar Stálin era negar os consensos ocidentais. Mas, por outro lado, não apoiar era perder uma aliança decisiva no embate contra Hitler.

Difícil decisão. Decisão difícil.

Beijar ou não el diablo, eis a questão.

De toda sorte, com Stálin ou sem Stálin, a confluência de culturas militares, entre Londres e Washington, continuava importante e amadurecia as decisões a partir do Join Chiefs of Staffs entre os anglo-saxões mesmo após as notícias dos sucessos de Stálin.

Com isso, pouco a pouco, iam ficando evidentes as diferenças na percepção e as divergências no olhar de Londres e de Washington. Todos, britânicos e norte-americanos, queriam esmagar Hitler e salvar a Europa. Mas cada uma possuía o seu método e a sua maneira.

O chefe do estado-maior imperial acreditava que a melhor opção era cercar o Reich, recuperando posições, destronando seus apoiadores laterais e asfixiando a sua capacidade de existir. Do lado norte-americano, a concepção era bem mais ofensiva. O chefe de estado-maior norte-americano, ninguém menos que o general George Marshall, acreditava que a melhor saíra era o confronto direto, a devastação implacável e a condução do inimigo a uma capitulação incontornável e sem concessão.

Essa importante tensão de visões de mundo – mais que a decisão sobre o beijo bandido em Stálin – foi o que conduziu todo o debate estratégico entre os aliados naquele após Pearl Harbor.

Chegar a um meio-termo nisso tudo não era fácil. Mas seria necessário. Os norte-americanos tinham mais poder e recursos em tudo; e, por isso, em nada queriam em nada ceder. Os britânicos, por sua vez, tinham o peso da história de uma nação que do século 17 até então dominara o mundo inteiro sem partilha nem abonação. E, mais que isso, que sabia que, por mais que o dólar, em 1939-1942, já sobrepujasse a libra em expressão e aceitação, ainda era a Royal Navy que dominava todos os mares.

Nesse quadro, acabava por se estabelecer uma interdependência demasiado complexa. Pois, por um lado, sem o domínio dos mares, os norte-americanos não alcançariam os seus objetivos vitais no Pacífico. E, por outro lado, sem uma presença física dos norte-americanos no continente europeu seria impossível estraçalhar Hitler.

Nessa reflexão ficou, então, evidente que o envio de tropas norte-americanas de volta ao Velho Mundo seria mais e mais incontornável. Caso contrário, os homens de Stálin iriam, certo, esmagar todos os elementos nazista, fascistas e nazifascistas do Leste europeu, mas poderiam ultrapassar Berlim e povoar de vermelho a integralidade do continente do Atlântico ao Ural. O que simbolicamente seria muito pior e mais permanente que a queda da França.

Esse reflexo convenceu o presidente Roosevelt a aquiescer diante da demanda insistente dos generais britânicos do Staff integrado dos chefes de estado-maior anglo-saxônico. Mas, antes de decidir enviar seus soldados para a Europa, ele despachou para a Europa o general Dwight D. Eisenhower para averiguar a situação. Uma vez em posição, esse nobre general se convenceu e foi convencido da urgência do desembarque. E, sem tardar, voltou para Washington para convencer o seu chefe, o general George Marshall, e o seu magnânimo, o presidente Roosevelt.

Assim, o desembarque de tropas aliadas na Europa deixava de ser uma questão para virar uma decisão. Mesmo assim, o onde, como, quando e com quem reabriram o debate.

Nesse quesito, uma vez mais, o peso moral da história britânica contou e desde Londres advieram as melhores considerações.
Em Londres, a essa altura, residia ninguém menos que o maior representante da resistência europeia a Hitler que era o general De Gaulle. Malgrado desconsiderado, desrespeitado e mesmo humilhado pelos maiorais de Washington e de Londres, ele agora começava a ser útil e incontornável a todos.

O regime de Vichy era sabidamente frágil e carcomia a credibilidade do Reich de dentro pra fora da França. A colaboração dos franceses aos desígnios de Hitler na França era dinâmica e complexa e, em grande medida, também de fachada. Desde o Apelo do 18 de junho de 1940 que resistentes vinculados ao general De Gaulle seguiam atuando como agentes duplos por toda a França metropolitana e colonial. Desse modo, mobilizar esses homens do general De Gaulle por todas as partes com o propósito de reganhar os espaços franceses ocupados para o lado dos aliados era um dos argumentos centrais do primeiro-ministro britânico sobre a prioridade do desembarque. Dito de modo preciso, a recuperação do Norte da África para o campo dos aliados poderia ser o ponto de partida mais decisivo para a contraofensiva implacável rumo a Berlim.

Convencidos disso, os norte-americanos e os britânicos reuniram, então, esforços para desembarcar no Magreb. Faltava, no entanto, definir o onde, que foi meditado a palmos.

A Tunísia, o Egito e Líbia foram retirados de cogitação por estarem infestados de tropas nazistas e fascistas. Restaram, assim, o Marrocos e a Argélia. E foi para desembarcar neles que a operação Torch foi estruturada e executada. Era 8 de novembro de 1942. Um dia que marcou espíritos.

A partir desse dia, uma nova modalidade tática era colocada em marcha na Segunda Grande Guerra e pela primeira vez as forças norte-americanas teriam a ocasião de se encontrar face-to-face com temida Wehrmacht. Descidas no Marrocos e na Argélia, as forças aliadas iniciaram as batalhas de desocupação nazista da região. E logo no dia seguinte, no 9 de novembro, as tropas norte-americanas conseguiram emboscar as tropas alemães na Tunísia, no evento que entrou para a história como a batalha de Kasserine.

A vitória dos aliados nessa batalha daria o tom mental e moral de toda a reconquista do Norte da África. Era o primeiro desembarque e o primeiro desembarque feito conjuntamente. Os britânicos e notadamente o seu primeiro-ministro sabia exatamente da relevância daquele feito. Tanto que um dia depois do desembarque, palestrando em Londres num jantar entre confrades, o primeiro-ministro foi enfático em ponderar que “Now this is not the end. It is not even the beginning of the end. But it is, perhaps, the end of the beginning.” [Não é o fim ainda. Também não é o começo do fim. Mas pode, talvez, ser o fim do começo]. Luminoso. Profético. Genial. Era o fim do começo. Um começo iniciado nos desacertos de 1914-1917 e ressignificado nos eventos de dezembro de 1941.

O sucesso tático da operação Torch forjou a necessidade de outro balanço geral – feito aquele após Pearl Harbor – do lugar dos aliados nos teatros de guerra e na contraofensiva de liberação. Foi por isso que se fez a Conferência de Casablanca em janeiro de 1943.
A Conferência de Casablanca foi o primeiro encontro dos aliados magnânimos em terrenos reconquistados. Tratava-se, portanto, de algo muito importante naquele contexto. O presidente Roosevelt e o primeiro-ministro Churchill, assim, foram em pessoa para o Norte da África. Os seus principais oficiais e conselheiros fizeram o mesmo, vindos das mais variadas partes do mundo.

O entusiasmo do momento foi geral e a conversação foi em tudo amistosa. A ideia e a ação do desembarque tinham surtido efeito. Mas, agora, precisariam prosperar e se desdobrar.

O grande esperado desse encontro era o camarada Stálin. O presidente Roosevelt fez questão de convidá-lo e voltar a convidar várias vezes. Mas o soviético declinou. Sentiu-se diferente demais para participar. Entendeu ser uma festa dos aliados, com os quais a Rússia nem a União Soviética tinham parte. Nesse sentido, declinou ostensivamente e preferiu aguardar o bom momento.

De toda sorte, o cheiro da vitória começava a rondar as casernas dos aliados mesmo com a situação inteiramente incerta em todos os fronts. A Luftwaffe e Wehrmacht ainda constrangiam os soviéticos, agora, às portas de Stalingrado e colocavam em sobreaviso a todos os demais europeus desde Praga até Paris. Mas a decisão de desembarcar na Europa, ali em Casablanca, já estava tomada – o que ampliava a esperança dos aliados. Restava, assim, novamente, se definir o onde, o como e o quando.

Onde desembarcar na Europa precisava ser na Itália e depois na França. Isto estava pacificado. Na Itália para destronar o destronar o mais importante aliado nazista meridional. Na França para abrir o caminho para se liberar todo o Oeste da Europa e singrar às rápidas para destroçar Berlim. O como era simplesmente aperfeiçoando a experiência africana que havia sido uma excelente learning curve. O quando, sem receios, deveria ser o mais urgentemente possível.

Desse modo, quando os generais aliados retornaram para as suas bases depois do congraçamento em Casablanca eles levaram consigo convicções, ordenamentos e o calendário para seguir para o desembarque eficiente na Europa. Todos sabiam que nada poderia desfazer os imperativos da libertação da Europa e nada poderia atrasar a sua mise en place. Seis desembarques foram, assim, urgentemente projetados. Cinco na Itália e um na França.

Na Itália, um primeiro seria na Sicília sob a cobertura de operação Husky; outros em Salerno, na Calábria, e Tarento na forma de operação Avalanche, Baytown e Slapstick; e os últimos em Anzio e Nettuno como operação Shingle. Já na França o desembarque seria na Normandia sob a nominata de operação Overlord.

Nesses moldes, então, a operação Husky inauguraria, então, a presença dos aliados em teatros de operação majoritária e ofensivamente inimigos na Europa. Muitos homens experimentados na África foram mobilizados agora para desembarcar na Itália. Ao todo, essa primeira operação envolveu mais de 2.500 navios da Royal Navy para dar suporte ao desembarque de aproximadamente 200 mil homens liderados por comandantes do gabarito do general Bernard Montgomery, do general George Patton e do marechal Harold Alexander sob a condução geral do general Dwight D. Eisenhower.

Muita gente, muito empenho e muita determinação para vencer. O seu objetivo tático era a contenção geral da atuação da Wehrmacht na Itália. O que, em muitos aspectos, foi alcançado. Não sem custos humanos expressivos. Do lado alemão, entre 10 e 12 mil foram mortos ou feitos prisioneiros e perto de 20 mil saíram feridos. Do lado dos britânicos e norte-americanos, em torno de 22 mil pessoas foram mortas, feridas ou desaparecidas. Do lado italiano, perto de 110 mil homens, 10 mil veículos, 50 blindados e 200 peças de artilharia foram interceptados, contidos, desmobilizados e evacuadas.

Tecnicamente, portanto, um sucesso inconteste para os aliados.

Mas teve mais.

O objetivo estratégico da operação que era desconjuntar o regime fascista foi majoritário foi conquistado. Tanto que no dia 25 de julho de 1943, poucos dias depois do início da operação, o Duce foi preterido e os fascistas ficaram acéfalos. Adeus, fascistas e adeus, Benito Mussolini – que, pouco a pouco, foi retornando à sua obscura e insignificante condição de ser obscuro e insignificante.

Mas, nesse quesito, ainda teve mais.

Acima das tropas aliadas repletas de homens em uniforme existia muita gente em terno e gravata pensando, negociando e parlamentando destinos. Pois foi essa gente, em muito também destemida, que conduziu os italianos ao armistício no dia 8 de setembro de 1943. O que, no plano estratégico, foi uma vitória política e diplomática sem precedentes desde o início da guerra-mundo em 1937-1939. Nesse sentido, o mais importante aos preceitos democráticos e liberais era se notar que pela primeira vez desde o início das escaramuças a caneta voltava a valer mais que o canhão. O que representava um frescor sem par. Mas não sem consequências.
Tão logo descobriram a nova italiana, Hitler e entourage sorveram a notícia como uma traição. E, desse modo, reagiram como os nazistas reagiam: sendo nazistas.

Uma vez, portanto, formalizado o armistício, eles efetuaram uma triagem em todos os teatros de operação para saber quais italianos desejavam seguir com o Reich ou capitular com a Itália. Aqueles que optavam por voltar pra casa eram desarmados e feitos prisioneiros da Wehrmacht.

O caso mais complexo e sensível nesse ínterim teve lugar na ilha de Cefalônia onde a divisão italiana de Acqui recusou-se a devolver as armas e abriram fogo aos negociadores alemães. Como resposta, a Wehrmacht invadiu a ilha, fez de todos os antigos aliados prisioneiros e o Führer ordenou a execução sumária de todos eles, e inclusive do general Antonio Gandin, comandante da divisão. Foi verdade que nem todos os prisioneiros foram mortos. Dos sete mil prisioneiros, pelo menos dois mil perderam a vida. Mesmo assim, o extermínio da Cefalônia segue como um dos maiores crimes da Wehrmacht ao longo da segunda Grande Guerra e ajuda a explicitar ainda mais a dimensão demencial do Führer.

De toda maneira, os sucessos da operação Husky deram ânimo às demais operações na Itália – Avalanche, Baytown e Slapstick a partir de setembro de 1943 e a operação Shingle a partir de janeiro de 1944. As primeiras – Avalanche, Baytown e Slapstick – tiveram o mérito de afugentar a Wehrmacht em quase todas as suas frentes italianas. Mas foi a operação Shingle que materializou o turning point integral da situação.

Após a queda de Mussolini em julho de 1944 e o armistício em setembro, a zona italiana de combate foi progressivamente mundializada. Afora as tropas britânicas e norte-americanas, expedicionários canadenses, franceses, poloneses, italianos, neozelandeses e brasileiros engrossaram as frentes de contraofensiva pela libertação da Itália. Nessa nova conformação, o estado-maior britânico percebeu ser o momento ótimo para desbaratar o cerco alemão das imediações de Roma e, nesse propósito, liderou o desembarque anfíbio em Anzio. Anzio estava estrategicamente a 80 km ao norte da linha Gustavo e a 40 km de Roma. Chegar a Roma era objetivo. Mas para tanto seria necessário suplantar a linha Gustavo – fortificação alemã às voltas do Monte Cassino. Desse modo, uma vez em Anzio o próximo destino seria o Monte Cassino.

Foram quatro as batalhas implacáveis, do 17 de janeiro ao 18 de maio de 1944, pelo Monte Cassino. Mas nesse entremeio, o imponderável voltou a tomar conta da situação mediante a participação exitosa do corpo expedicionário francês, sob o comando do general Alphonse Juin.

Plenamente bem treinados e motivados, esses colonos franceses – mais que qualquer outro militar de qualquer outro lugar – tinham retirado a integralidade lição da pensée-Maginot que resultou na tragédia francesa de 1940. Sabiam, assim, que a sobrevalorização das fortificações como mecanismo de defesa era, ao fim das contas, um calcanhar de Aquiles de qualquer armada. Fora no caso da França em 1940 e poderia, assim, também ser no caso do Reich na Itália agora.

Nessa convicção, entraram, então, no teatro de operações com o objetivo tático de dispersar a atenção da Wehrmacht e ir recuperando territórios. Assim fizeram e tiveram nisso um sucesso extraordinário.

Entretanto, com a ocasião posta, a sua superioridade estratégica frente aos alemães sucumbiu à sua incontestável miséria humana ao encontro dos italianos.

Tão logo retomaram as vilas, depois dos combates sem perdão contra os homens da Wehrmacht, iniciaram uma barbarização sem precedentes ao encontro dos italianos. Nesse sentido, entraram a roubar, violentar, martirizar e matar os moradores locais e do entorno. Numerosas mulheres foram, assim, estupradas e ao menos 300 civis inocentes foram mortos.

Essa ação desbragadamente criminosa e sem nenhum sentido ficou conhecida como a Marocchinate. E, por conseguinte, impediu esses inquestionavelmente bravos expedicionários coloniais franceses de gravar seus nomes na liberação de Roma.

No dia 4 de junho de 1944, então, as forças aliadas entraram em Roma sem eles. Os homens da Wehrmacht tinham sido inteiramente evacuados da capital romana e acuados ao norte de Florença sem maiores capacidades de reação.

Aquele 4 de junho de 1944 foi um dia muito especial, portanto, pois o símbolo da maior aliança do Führer no continente se desfazia.
A agonia da guerra-mundo, no entanto, ainda levaria tempos para se resolver. Hitler sangrava, mas não morria. A Wehrmacht seguia cercada por todos os lados, mas ainda resistia. A África toda estava praticamente liberada, mas traumatizada e diminuída devido a toda aquela razia. A Europa meridional seguia toda ocupada pelos aliados, mas ao norte da Europa tinha tudo por se fazer. A fúria dos soviéticos seguia obsessiva a sua marcha até Berlim, mas isso colocava em contradição os sentimentos dos aliados em Washington, Londres e, agora, da Itália e da France libre do general De Gaulle.

Os preparativos para o desembarque na Normandia estavam todos finalizados, mas precisavam avoir son jour [ter seu dia]. De toda sorte, um adeus, Hitler e um adeus, Reich eram questão de tempo. Muito ou pouco tempo, era difícil saber. A determinação dos aliados e dos homens de Stálin para que o fim de Hitler fosse logo era impressionante. Mas, de volta à Itália, o momento agora era de se meditar. Os italianos tinham toda uma extraordinária civilização ancorada em Roma para reavivar.

Roma livre, um alívio. Que bonito, que romano. Tem oitenta anos.

PS: Reler Tolstói para entender o mundo de hoje, gentilmente publicado neste espaço do Jornal da USP no dia último 8 de abril, recebeu muitas manifestações de afeição, consideração e complemento. Malgrado muito ricas e estimulantes, reagir a elas seria uma operação quase sem fim. De toda sorte, como mostra de reconhecimento, respeito e atenção, gostaria de agradecer muito enfaticamente aos longos, importantes e gentis comentários do embaixador Paulo Roberto de Almeida, da professora Paola Giocomoni da Università di Trento e da Columbia University, do meu amigo Joacyr Bezerra de Lima e da minha mais que amiga Maria Eloisa Cardoso da Rosa, sem contar a minha eterna Nina.

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(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


segunda-feira, 29 de abril de 2024

Expansão Econômica Mundial, de Brazílio Itiberê da Cunha, uma obra mais que centenária (1907-1908) - Paulo Roberto de Almeida

 Uma obra que mereceria ser reeditada pelo Itamaraty: seu autor recomendava coisas que NUNCA foram feitas pelo Brasil...

1778. “Expansão Econômica Mundial: 100 anos de uma obra pioneira”, Brasília, 7 agosto 2007, 3 p. Curto ensaio sobre a obra de Brazílio Itiberê da Cunha, Expansão Econômica Mundial (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 2 volumes, 1907 e 1908). Publicado na Revista Acadêmica Espaço da Sophia (Tomazina, PR, ISSN: 1981-318X, Ano I, nº 8, p.1-04, novembro 2007. edição eletrônica). Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros (ano XIV, n. 59, outubro-dezembro 007, p. 28-30; link: http://www.adb.org.br/boletim/ADB-59.pdf). Republicado Via Política(Porto Alegre: n. 77, 10 dezembro 2007). Relação de Publicados nº 795.


Expansão Econômica Mundial: 100 anos de uma obra pioneira

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 7 agosto 2007

 

Brazílio Itiberê da Cunha: 

Expansão Econômica Mundial

Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, dois volumes, 1907 e 1908.

 

 

Cem anos atrás, o Brasil era o café e o café era o Brasil, ou pouco mais do que isso: nossa diplomacia e a própria política econômica estavam centradas na “defesa do café”, como atestam o Convênio de Taubaté e as garantias oficiais aos empréstimos contraídos no exterior para financiar a estocagem do produto, como forma de forçar a alta dos preços nos mercados mundiais. A elite política tinha consciência do atraso da Nação, resquício da ordem escravocrata do século XIX, e muitos dos seus representantes exibiam idéias políticas e econômicas avançadas, em contradição com os parcos esforços efetivamente feitos para colocá-las em prática, de molde a diminuir a distância que nos separava das potências da época. 

A diplomacia brasileira, em particular, se destaca por sua grande capacidade analítica, sua organização avançada, sua forte presença política e geográfica nos mais diferentes foros abertos ao engenho e arte de seus representantes profissionais ou delegados ad hoc, num país que estava longe de conformar um paradigma do capitalismo pioneiro ou um palco ideal para o exercício das vantagens comparativas de um êmulo do bourgeois conquérant, em uma versão tropical. Um dos mais lúcidos diplomatas do ancien régime, servindo com entusiasmo a nova República, junto com o Barão do Rio Branco, foi Brazílio Itiberê da Cunha, que, em 1907, publicaria uma obra notável sobre as causas do crescimento econômico das nações, na qual ele discorre igualmente sobre as condições e requisitos do progresso brasileiro, ressaltando o papel da educação como elemento estratégico na equação desenvolvimentista.

Nos dois volumes de Expansão Econômica Mundial (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907 e 1908), Itiberê da Cunha tenta condensar, depois de ter participado como delegado oficial do Brasil nos congressos de “expansão econômica” do Rio de Janeiro (1905), de Mons (1906) e de Liège (1907), seus “estudos e observações que, de longa data, temos feito sobre os palpitantes problemas econômicos que atualmente preocupam as classes pensantes e dirigentes, empenhadas em dar-lhes uma solução mais prática para o maior desenvolvimento da fortuna pública e expandi-la para além das fronteiras nacionais” (vol. 1, Prefácio, p. vii). A trajetória diplomática de Brazílio Itiberê da Cunha e a importância de sua contribuição intelectual em várias outras vertentes da vida cultural brasileira – como sua rica produção musical, por exemplo – já foram devidamente redescobertas e enfatizadas por um outro colega, Celso de Tarso Pereira, [1]o que me permite concentrar a atenção em sua reflexões comparadas sobre as causas do atraso econômico e social brasileiro, como registradas na obra em questão.

Nos dois volumes de Expansão Econômica Mundial, Itiberê discorre sobre o processo de crescimento econômico nos mais diversos países, com destaque para aqueles mais avançados, mas ele têm o cuidado de iniciar sua obra pela necessidade da educação do povo, em especial da instrução comercial, como forma de se promover o progresso econômico e social de economias atrasadas como a do Brasil. O manual de um país novo como o Brasil, diz Itiberê em sua obra, “deve ser antes O Império dos Negócios, do filântropo milionário Andrew Carnegie, do que as Pandectas ou o Corpus Iuris, acompanhando assim o crescente movimento de expansão econômica das principais potências, que nos precederam em civilização, graças, sobretudo, à superioridade do seu ensino técnico-profissional, hoje reconhecido com razão, o verdadeiro complemento obrigatório do ciclo de estudos elementares...”. [2]

Apoiado nas idéias do filósofo argentino Juan Bautista Alberdi, também diplomata, Itiberê da Cunha ressalta que “a primeira dificuldade da América do Sul para escapar da pobreza é que ignora sua condição econômica, com a persuasão de que é rica e por causa desta persuasão vive pobre, porque toma como riqueza o que não é senão instrumento para produzi-la” (ou seja, os recursos naturais abundantes nesses países).[3] O diplomata brasileiro formula uma questão que poderia resumir, basicamente, a atitude contemplativa das elites brasileiras em face do problema essencial do desenvolvimento econômico, por ele assim respondida e plenamente válida ainda hoje: “por que somos uma nação sumamente pobre? A razão é simples: quando afirmamos que o Brasil é um país riquíssimo, confundimos riqueza com instrumento ou fator de riqueza. [Esquecemos] que a riqueza capaz de produzir não está produzida, e que o solo e o clima, que consideramos riquezas, não são mais que instrumentos para produzir riqueza nas mãos dos homens, que é o produtor imediato, pela força destes dois processos humanos — o trabalho e a economia, ou a conservação e guarda do que o trabalho produziu”. [4]

Essa concepção do “valor-trabalho” e, mais ainda, do poder da inteligência e da tecnologia eram dificilmente aceitas pela oligarquia cafeeira do começo da República, como tinham sido persistentemente ignoradas pela aristocracia “fisiocrática” do regime imperial. Itiberê classifica como “fenômeno vulgaríssimo” o fato de no Brasil se considerar como revestidos de prestígio especial aqueles que detinham diplomas de doutor ou de bacharel, ecoando nesse particular críticas que, naquele mesmo momento, se faziam na Câmara de deputados aos “bacharéis presunçosos” da diplomacia brasileira: “O ser bacharel em direito, como quase toda gente o é hoje em dia, constitui presunção legal de saber: daí vem que, livres da obrigação dos exames, muita gente penetra na diplomacia, vazia de conhecimentos e abarrotada de presunção. Em regra, a diplomacia é procurada pelos indivíduos de alguma fortuna e infelizmente no Brasil os ricos não são os mais estudiosos”.[5]

Ao completar-se um século de sua primeira e única edição, a obra constitui, ainda hoje, um manancial de conselhos utilíssimos aos homens de Estado do Brasil e da América Latina, sempre tão propensos a encontrar em fatores externos as razões do subdesenvolvimento de seus países. Pela riqueza de seus argumentos, pela clarividência de suas posições, pioneiras e, de fato, antecipatórias, o livro de Itiberê mereceria ser reeditado, provavelmente em formato resumido, extirpando-o de comentários puramente circunstanciais, mas retendo seus ensinamentos ainda válidos, nos dias que correm. Talvez as “classes pensantes e dirigentes” disponham, hoje, de indicadores econômicos e de “ferramentas” de políticas macroeconômicas e setoriais que não estavam ao alcance de suas congêneres de um século atrás, mas muitos dos problemas brasileiros permanecem teimosamente os mesmos – como a má educação da população, por exemplo –, enquanto outros se acumulam na indiferença dos seus sucessores, como os “monopólios de Estado” e o “mercantilismo político”, ambos condenados por Itiberê. Censurando, ainda, os acordos comerciais baseados na estrita reciprocidade, ele confiava em que “a política liberal há de triunfar um dia” (vol. 2, p. 81). Talvez, mas a luta continua...

 

Brasília, 7 agosto 2007

Publicado na Revista Acadêmica Espaço da Sophia (Tomazina, PR; ISSN: 1981-318X, Ano I, nº 8, p. 1-04, novembro 2007; edição eletrônica). 

Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros (ano XIV, n. 59, outubro-dezembro 2007, p. 28-30. 

 



[1] Cf. Celso de Tarso Pereira, Ritmos de uma vida: Brazílio Itiberê, músico e diplomata (Brasília: Instituto Rio Branco, 1996, monografia apresentada na disciplina Leituras Brasileiras), trabalho resumido no artigo “Brazílio Itiberê da Cunha, músico e diplomata”, Boletim ADB(Brasília: ano IV, nº 29, 09.10.1996, p. 18-22). Ver igualmente o capítulo de Pereira, sobre Itiberê, na obra coletiva coordenada por Alberto da Costa e Silva, O Itamaraty na Cultura Brasileira (Brasília: Funag, 2001; São Paulo: Francisco Alves, 2002).

[2] Cf. Brazílio Itiberê da Cunha, Expansão Econômica Mundial, op. cit., 1o. vol., p. 154-5.

[3] Idem, Cunha, Expansão, 2o. vol., p. 267.

[4] Idem, p. 267-68.

[5] Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 2.09.1891, apud Clodoaldo Bueno, A República e sua Política Exterior, 1889-1902 (São Paulo: Editora da UNESP; Brasília: FUNAG, 1995), p. 56.



Conexões entre direito e desenvolvimento, livro: Welber Barral (org), Direito e Desenvolvimento (2005) - Paulo Roberto de Almeida

 Conexões entre direito e desenvolvimento

Paulo Roberto de Almeida


Welber Barral (org),

Direito e Desenvolvimento: Análise da ordem jurídica brasileira sob a ótica do desenvolvimento 

São Paulo: Editora Singular, 2005, 360 p. 

 

“É difícil pensar que o desenvolvimento possa realmente ser visto independentemente de seus componentes econômicos, sociais, políticos ou jurídicos”, diz Amartya Sen no texto que serve de prefácio a esta obra, que recolhe contribuições de uma dúzia de especialistas no direito brasileiro sob a direção do professor de direito internacional econômico da UFSC, Welber Barral. A intenção foi a de analisar os vários ramos do direito no contexto do ordenamento jurídico brasileiro, tendo o objetivo do desenvolvimento como critério funcional. O economista e prêmio Nobel indiano, que se esforçou por incorporar a liberdade como um componente necessário do processo de desenvolvimento, reconhece que o capitalismo não emergiu até que o direito evoluísse e ocorresse a aceitação jurídica e prática dos direitos de propriedade, de forma a tornar possível uma economia baseada na propriedade privada. 

O organizador apresenta, por sua vez, os elementos constitutivos de uma ordem jurídica que não seja um empecilho ao processo de desenvolvimento. Eles podem ser resumidos nos seguintes fatores: regras claras e previsíveis; tratamento eqüitativo dos cidadãos; participação democrática e eficiência do judiciário. Alguns obstáculos ao bom funcionamento da ordem jurídica podem, por outro lado, ser identificados nos problemas seguintes: a ignorância do processo econômico pelos responsáveis pela aplicação das leis, uma crença exagerada no poder das normas, bem como uma retórica romântica e abstrata sobre a defesa dos direitos humanos, resultando numa ordem jurídica imaginária, distante da realidade da vida das pessoas.

Os países latino-americanos são conhecidos por ostentar uma rica tradição jurídica, ao mesmo tempo em que a estrutura regulatória do direito conhece altos custos de transação, uma insegurança jurídica notória e a falta de transparência nos processos. Como diz Barral, “a história latino-americana é infelizmente pródiga em exemplos de uma elite (jurídica e política) predatória”.  

Os colaboradores convidados abordam tanto aspectos conceituais das conexões entre o direito e o desenvolvimento – sua inserção na Constituição de 1988, o desenvolvimento sustentável, as relações com os direitos humanos e a educação, o acesso à justiça, as políticas de desenvolvimento regional e o papel das agências reguladoras – como sua vinculação com os diversos ramos do direito no quadro do ordenamento brasileiro: concorrência, sistema tributário, investimentos e os direitos de propriedade intelectual. 

Aqui e ali emerge certo idealismo jurídico, como a demanda por uma mudança na “lógica do capitalismo” que deveria, segundo um jurista belga, substituir a “noção de lucro por aquela de necessidade”, ou o “consumo como meio e não como objetivo”. No conjunto, porém, o volume preenche de maneira satisfatória seu objetivo de análise crítica da ordem jurídica brasileira do ponto de vista do desenvolvimento. 

 

Brasília, 1479: 9 outubro 2005, 2 p.

Publicado em Desafios do Desenvolvimento (novembro 2005).