domingo, 12 de maio de 2024

Brasil: inimigo de si mesmo na politica internacional - Daniel Buarque

 Brasil é pior inimigo do Brasil na busca por liderança internacional

Problemas domésticos prejudicam ascensão na hierarquia global, aponta pesquisa

Folha de S. Paulo - UOL, 11/05/2024

[RESUMO] Autor apresenta conclusões de sua pesquisa de doutorado, em que realizou 94 entrevistas com membros da comunidade de política externa para mapear a imagem internacional do Brasil. Embora aspire a ser um líder global, o país é percebido como um peão no xadrez geopolítico, um ator periférico prestigiado pelas grandes potências só quando convém a elas. Falta de reconhecimento é reflexo de problemas internos do país, aponta estudo.

Desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, o Brasil se ofereceu para ser um mediador entre os dois países, tanto com Jair Bolsonaro (PL) quanto sob Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Quando começou o atual governo, a "doutrina Lula" tentou construir a ideia de que "o Brasil voltou" e quis melhorar a sua imagem internacional.

O Brasil começou a buscar protagonismo em questões ambientais, quis retomar uma liderança em temas regionais, procurou grandes acordos comerciais e até buscou conduzir uma votação pelo cessar-fogo na Faixa de Gaza. Além disso, retomou a aposta no multilateralismo e na busca pela reforma da governança global, reiterando o interesse em um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Lula até encontrou boa vontade internacional, a imagem do país melhorou e ele conseguiu liderar o Conselho de Segurança por um mês e presidir o G20, além de ganhar o direito de sediar a conferência do clima.

No entanto, a maioria das tentativas de ter um papel realmente significativo em questões internacionais importantes, motivadas em ampla medida pela ambição de ser um ator de peso na política global, continua esbarrando na falta de reconhecimento internacional de um alto status do país.

Mesmo com todo o esforço para aumentar o prestígio brasileiro, a percepção das nações mais poderosas do planeta é que o país não é suficientemente relevante para influenciar as grandes questões internacionais. Isso vale especialmente para quando elas envolvem discussões sobre segurança, guerra e paz. Para as grandes potências globais, o Brasil não passa de um peão no xadrez da geopolítica global.

Apesar do trabalho sério desenvolvido pelo Itamaraty ao longo de décadas, o problema não está necessariamente no que o Brasil faz em sua atuação internacional. A falta de reconhecimento para o prestígio é um reflexo, em ampla medida, de problemas internos do país, que precisam ser o foco antes de qualquer tentativa de projeção internacional.

Esses são alguns dos pontos centrais do livro "Brazil’s International Status and Recognition as an Emerging Power: Inconsistencies and Complexities", recém-publicado pela editora Palgrave Macmillan. A obra reúne os principais achados de uma pesquisa desenvolvida durante meu doutorado pelo King's College, de Londres. O estudo analisou a longa aspiração brasileira por alto status internacional em contraste com a percepção externa sobre o papel que o país pode desempenhar no mundo.

Para entender o lugar ocupado pelo Brasil na complexa geopolítica desde o fim da Guerra Fria, a pesquisa se baseou em 94 entrevistas com a comunidade de política externa dos países que já são reconhecidos como potências globais: EUA, China, Rússia, Reino Unido e França —os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.

UM ‘PEÃO COBIÇADO’

As grandes potências veem o Brasil como um país sem peso na política internacional. A percepção é que o Brasil não passa de um país médio que não tem legitimidade para atuar em questões importantes de segurança global.

Uma razão para essa avaliação é geográfica. O Brasil é percebido como periférico e pacífico, localizado em uma região longe das principais ameaças e disputas do mundo, e por isso não precisaria nem deveria se envolver nesses casos.

Outro ponto importante é que o país enfrenta limites em suas capacidades militares e econômicas, portanto não teria poder suficiente para ser preponderante em escala global.

Paradoxalmente, o Brasil é desejado como um aliado por essas mesmas potências, que buscam utilizá-lo como uma peça estratégica em suas rivalidades e seus interesses globais. Apesar de ser visto como um peão, seu apoio é cobiçado dentro do grande jogo da geopolítica.

Isso explica a frustração do Ocidente com a "equidistância" do país em relação à Guerra da Ucrânia e sobre as críticas de Lula a Israel. Ajuda a entender também a mobilização da China para manter o país envolvido nas ações do Brics e na tentativa de fortalecer outras moedas como alternativa ao dólar em negociações internacionais.

Na realpolitik, cada potência está interessada apenas em avançar seus próprios interesses geopolíticos. O Brasil recebe apoio e alguma forma de reconhecimento somente quando isso indica algum benefício para elas.

BRASIL CONTRA BRAZIL

Ser visto como um peão vai contra a histórica ambição de grandeza do país nas relações internacionais. Isso, contudo, ultrapassa as limitações geográficas e de poder econômico e militar. O Brasil é o maior inimigo do Brasil em sua busca por maior status internacional, avaliaram muitos dos entrevistados na pesquisa.

A percepção externa é que, embora o Brasil realmente tenha muito potencial e sua imagem internacional seja geralmente positiva, o país não alcançou um alto status por causa de seus próprios problemas domésticos, que prejudicam seu desenvolvimento e sua ascensão na hierarquia global. Uma situação doméstica —social, econômica e política— de desordem e incerteza mina a influência internacional mais que qualquer atuação no exterior.

Para essas nações poderosas, países com ambição de emergir entre os mais importantes do mundo devem "fazer sua lição de casa" e "arrumar as coisas internamente" antes de serem aceitos no clube de "alto status internacional".

Trata-se de uma visão meritocrática da ordem internacional —e uma interpretação do prestígio global que pode ser criticada—, mas que reflete a forma como a comunidade de política externa das nações mais poderosas pensa sobre a ordem global.

Ao observar o Brasil nas últimas décadas, há fortes evidências da importância da situação doméstica para seu prestígio. A estabilização e o crescimento da economia, a expansão da classe média, o fato de o país ter se tornado autossuficiente na produção de energia, a expansão das commodities e a consolidação da democracia no final dos anos 1990 levaram a uma narrativa sobre o aumento do status internacional do Brasil. Em 2009, a revista britânica The Economist estampava em sua capa a imagem do Cristo Redentor decolando.

Em 2013, contudo, uma série de crises sociais, políticas e econômicas mudou essa situação. Os anos seguintes foram de recessão, escândalos de corrupção, violência e violações de direitos humanos, autoritarismo, negacionismo científico e ameaça à democracia, tornando mais difícil para o Brasil alcançar reconhecimento externo.

Entender a importância do contexto doméstico pode servir como referência para repensar as estratégias do país na construção de um lugar para o Brasil no mundo.

O estudo apresentado aqui indica que focar questões internas (especialmente na economia) e corrigir problemas domésticos são percebidos como os meios mais eficientes para aumentar o status internacional de um país.

Ao buscar destaque em sua atuação internacional, o Brasil deveria dar mais atenção ao que acontece dentro do país, melhorando sua realidade antes de querer se projetar ao mundo.


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