segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Qual o futuro da China? Ser um Hegemon universal? Provavelmente não! - Paulo Roberto de Almeida

 Qual o futuro da China? Ser um Hegemon universal? Provavelmente não!

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota especulativa sobre a segunda grande economia do planeta.

 

A República Popular da China pretende se estabelecer como um novo Hegemon mundial, firmar-se na supremacia econômica do mundo para dominar tudo e a todos, no lugar do centenário imperialismo americano, que manda no mundo de forma arrogante desde as primeiras décadas do século XX?

Eu diria que não!

Seus atuais dirigentes, os autocráticos lideres do partido bolchevique que dominam desde 1949 o antigo Império do Meio, degradado em República falimentar da China (1911), os mandatários da República Popular da China, que se desencaminhou sob o maoismo demencial até 1976-79, e que retomou as tradições do antigo despotismo oriental sob Deng Xiaoping, pretendem apenas evitar que esse antigo império, de riquíssimas tradições históricas e culturais, seja novamente dominado por seus próprios “demônios interiores”, quais sejam, o caos e a anarquia que sobrevêm a momentos de ruptura no comando central do Estado, por motivos diversos.

Um grande Império como aquele precisa, imperativamente, prover ao bem-estar e à satisfação de seus milhões de súditos, sob o risco de desmoronar para uma nova dinastia de dirigentes, caso não consiga manter unida e satisfeita a nação.

Sim, a massa de chineses ainda é constituída de súditos, mas já a caminho de se tornarem cidadãos conscientes e orgulhosos de que estão construindo: o Estado mais avançado do mundo, economicamente, materialmente, tecnologicamente, culturalmente, evitando, nesse caminho, de serem dominados e humilhados pelos imperialismos ocidentais, como já o foram desde as guerras do ópio e até a Segunda Guerra Mundial.

Para enfrentar aqueles demônios da anarquia interior e as ameaças exteriores, os dirigentes chineses, os “comunistas” atuais, herdeiros intelectuais e burocráticos dos antigos mandarins educados do velho Império do Meio, precisam crescer imperativamente para corresponder às necessidades e aspirações de uma população hoje majoritariamente consciente do que já representou como continuidade histórica e cultural de uma antiga civilização que já foi, durante muitos séculos, a mais avançada do mundo.

Ela, essa população, e seus dirigentes centralizadores, o novo imperador e sua corte de burocratas obedientes, conseguirão realizar esses objetivos grandiosos?

Parcialmente sim, materialmente certamente; politicamente não tenho certeza, pois que tensões vão provavelmente se acumular, como resultado de perturbações inevitáveis que surgem em economias de mercado — e a China já é a maior do mundo, sem algumas de suas anomias inevitáveis— e de fricções sociais que devem inevitavelmente surgir em sistemas ultracentralizados, como é hoje a RPC do único partido leninista bem sucedido do mundo (o soviético, o padrão original, descarrilhou por ambições imperialistas que não fazem parte da história político-diplomática da China).

A China não precisa, e não consegue, ser um Hegemon universal para realizar seus objetivos grandiosos de voltar a ser o Estado mais avançado do mundo como já foi durante séculos e séculos.

Ela precisa apenas extrair renda do resto mundo, para manter sua população satisfeita, mas isso pode ser feito pacificamente, via comércio, investimentos, tecnologia, padrões industriais dominantes no setor produtivo, serviços eficientes e baratos, com base em comunicações sofisticadas.

Nesse processo, algumas tensões se acumulam com os velhos imperialismos ocidentais, que dominaram o mundo pelos últimos 500 anos. O que se deve esperar é que essas tensões não degringolem em fricções politicas e disputas econômicas insolúveis, como nos anos 1930. Mas aquela época foi dominada por dirigentes fascistas, militaristas e expansionistas, o que não parece ser o caso atualmente.

O único êmulo de Hitler no poder em nossos dias é um neoczarista à frente de uma nação simplesmente extratora de recursos naturais, sem condições politicas, sociais e econômicas de se contrapor aos poderes ocidentais ainda dominantes.

A aliança efêmera e oportunista feita pelo “capitalismo de características chinesas” com esse arremedo de imperialismo militarista de pés de barro objetiva realizar os ganhos econômicos do novo Império do Meio, e não se imagina que este pretenda se opor belicosamente aos hegemonistas ocidentais (inclusive porque não precisa).

Ele pode realizar seus objetivos de modo inteiramente pacífico, pela primazia econômica. Ele não tem nenhum modelo político para exportar.

A democracia ocidental tem alguma coisa a ver com tudo isso? Sim: a ela cabe preservar suas tradições, sem tentar impô-las a quaisquer outros povos.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4744, 28 setembro 2024, 2 p.

Postado no blog Diplomatizzando (link: ).

A trajetória do conservadorismo no Brasil, segundo Oliveira Torres - Paulo Roberto de Almeida

 A trajetória do conservadorismo no Brasil, segundo Oliveira Torres

 

Paulo Roberto de Almeida

João Camillo de Oliveira Torres

Os Construtores do Império: ideais e lutas do Partido Conservador brasileiro

São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968; Coleção Brasiliana vol. 340


No começo do século XIX, e sobretudo durante as turbulências das Regências, os fundadores do Império e os políticos da segunda geração viam no regime monárquico uma garantia de ordem e tranquilidade. Já no final do século, a intelligentsia brasileira, as novas camadas das escolas militares, civis e religiosas eram todas republicanas. Américo Jacobina Lacombe, diretor da Brasiliana diz, em sua orelha ao livro, repetindo Nabuco, que “causava mais escândalo um jovem declarar-se monárquico do que republicano”.

Em seu Prefácio a esta nova obra – que se segue a diversas outras de todo um ciclo dedicado ao pensamento político brasileiro, começando pelo Positivismo (1943; 1957), passando pela Democracia Coroada: teoria política do Império do Brasil (1952; 1957; 1964) e pela Formação do Federalismo no Brasil e pelo Presidencialismo (ambos de 1961) – João Camillo de Oliveira Torres diz que tinha iniciado a Democracia Coroada num espírito perfeitamente liberal, inclusive porque as ideias correspondiam ao “espírito da época”. Não obstante, ao terminá-lo, começou a “considerar a versão conservadora como a autêntica” (p. xiii). Ele confessa que “o livro terminou sendo de cunho nitidamente ‘saquarema’.” (idem). E completa: “Depois, meditando bem, senti que, de fato, não resistiria à força dos argumentos e do prestígio dos conservadores. Comecei liberal; o livro saiu conservador...” (pp. xiii-xiv).

Ele passou a admirar os conservadores, “construtores do Império”, e considerava o Regresso “talvez a época mais importante do Brasil” (p. xiv). Diz isso por causa da criação do Conselho de Estado, da obra do Visconde de Uruguai – “que em 1841 funda a máquina da autoridade no Brasil, criando uma aparelhagem policial de certo modo ainda em vigor até hoje, e depois, em 1862 e 1865, publica livros notáveis estabelecendo a teoria da centralização sem a qual, dizia ele, ‘não haveria Império’, ou, melhor dito, não haveria Brasil, hoje” (idem) – e também por causa da leitura de grandes obras saquaremas. Foi por considerar que a liberdade não se sustenta sem “condições efetivas e bem fundadas na realidade”, que JCOT percebeu a “força da contribuição conservadora para a grandeza do Brasil” (idem). Ao contrário dos Liberais, os saquaremas “eram homens que viviam a realidade concreta do país em que estavam, não do país em que gostariam de estar” (p. xv).

Os conservadores foram os que fizeram a “defesa do Poder Moderador, vale dizer, da autoridade do Imperador” (p. xv). Ele fornece imediatamente as razões dessa escolha: “Os liberais queriam um parlamentarismo à inglesa, reduzindo o Imperador à posição de meio juiz do jogo, governando de acordo com as maiorias parlamentares. Mas acontece que, por força das condições puramente sociais do país (densidade demográfica, população praticamente rural, etc.), a vida eleitoral era impraticável. Faltava o que havia na Inglaterra: uma população urbana densa, uma classe média sólida” (p. xv). Mas ele não esconde sua surpresa com “certos paradoxos da política conservadora – o conservadorismo liberal de um Rio Branco, o liberalismo conservador de Ouro Preto e Alves Branco, a Abolição como obra conservadora, etc.” (p. xvi). Considera que o ponto alto do republicanismo no Brasil é, de fato, um resultado do Partido Conservador, como o governo de Rodrigues Alves e a política diplomática do Barão do Rio Branco, “conscientemente na linha paterna e imperial” (idem).

 

Conceito de conservadorismo

Entre os elementos do conservadorismo, com base em Russell Kirk – The Conservative Mind (1953) –, se situam o reconhecimento da legitimidade da existência de classes e hierarquias sociais, a convicção de que propriedade e liberdade estão intimamente ligadas, o tradicionalismo, a distinção entre mudança e reforma, ou entre revolução e reforma (p. 1). O conservadorismo estima que as mudanças sociais, para serem justas e válidas, não podem quebrar a continuidade entre o passado e o futuro. Pode-se reformar, por meio de uma cautelosa adaptação do existente às novas condições, mas não empreender o estabelecimento de algo radicalmente novo (p. 2) Conservadores não são nem imobilistas, nem reacionários, mas tampouco são progressistas, que tendem a renegar o passado, algo que os conservadores reconhecem como válido e importante. O conservador considera que se pode conservar reformando, uma vez que as reformas, em si mesmas, são necessárias, mas não convém precipitá-las.

JCOT acredita que “Teoricamente, a restauração da monarquia no Brasil é possível; basta que ocorram circunstâncias que convençam os homens que dominam as alavancas do poder, da conveniência da solução” (p. 6). Mas ele não acredita que uma volta da monarquia não seria como no Segundo Reinado: “não traria a restauração do Império patriarcal e conservador de D. Pedro II, mas muito possivelmente, um tipo de monarquia socialista em moldes escandinavos” (p. 6). A “política verdadeiramente conservadora, não reacionária ou imobilista, não procura deter as reformas ou impedir as transformações, mas dar-lhes um tom moderado e tranquilo, acomodá-las às condições gerais da sociedade, naturalizá-las, em suma” (p. 8).

 

O conservadorismo no Brasil

No Império, o Partido Conservador lutava pela unidade nacional, fundada na democracia liberal (p. 9). “Os ‘saquaremas’ tinham como dogma fundamental que a liberdade somente está devidamente protegida se encontra o apoio de uma autoridade forte e imparcial. Contra a tendência ao anarquismo que as doutrinas de Rousseau possuíam em estado latente, fundando a liberdade na ausência de poder, na abolição de qualquer ordem ou categoria social, os conservadores postulavam o princípio de que os cidadãos não poderiam ser livres senão sujeitos à lei, a uma autoridade justa, neutra, imparcial, soberana, que fizesse a todos justiça reta e igual. Nada melhor simbolizaria essa autoridade do que o poder régio” (p. 10).

JCOT divide a história eleitoral do Império no Brasil em três fases: a anterior à adoção do governo de gabinete, em 1847, onde não havia voto partidário ou de bancada. Depois, quando se passou à adoção do governo de gabinete, surgiu o problema de como constituir uma verdadeira maioria, mas também surgiu a política das qualificações, ou seja, o “partido que controlasse as autoridades policiais ganhava as eleições por um processo muito simples: impedindo que os adversários se qualificassem, se alistassem” (p. 15). Depois da Lei Saraiva – o Decreto 3.029, de 29/01/1881, instituindo o título de eleitor, proibindo o voto do analfabeto e adotando o voto direto para todos os cargos eletivos do Império, inclusive o de juiz de paz, obra, em grande medida, de Ruy Barbosa –, que estabeleceu um alistamento permanente, feito pela magistratura, a situação mudou, mas o voto era censitário, ou seja, apenas os que possuíssem renda não inferior a 200 mil réis. Essa lei foi altamente favorável ao Partido Liberal, que a fez, a despeito do censo alto e da homogeneidade de candidatura num determinado distrito. Nas cidades, votava o eleitorado urbano, que estava bem representado; no interior, apenas os fazendeiros.

O Senador Nabuco de Araújo resumia o sentido dos gabinetes do Império, na segunda fase da trajetória eleitoral do regime monárquico: “O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios: esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la e esta eleição faz a maioria.” (p. 18) De certa forma se confirmava a frase: “Nada tão parecido a um ‘saquarema’ como um ‘luzia’ no poder” (p. 33).

A importância dos presidentes de província era crucial nas eleições e para diversos serviços públicos, inclusive polícia. “O chefe da polícia dependia do governo-geral, estando subordinado ao Ministério da Justiça. Mas os delegados e subdelegados eram de nomeação dos presidentes de província, por indicação do chefe de polícia, homem, também, de seu partido.” (p. 23) O título eleitoral, ou seja, a instituição de um eleitorado permanente, mudou a vida política do país, “pondo fim à comédia das ‘qualificações’, estabilizou a vida política em bases sólidas” (p. 24). “O corpo eleitoral do Império, dividido em duas correntes, passou a ter existência permanente, e que passou, afinal de contas, o comparecimento às urnas de eleitores liberais e conservadores.” (p. 25) As mudanças nas regras começaram com Paulino, a partir de 1841, quando centralizou a Justiça e a polícia. De certa forma, o Imperador passou a exercer o papel de corpo eleitoral a partir dessa fase (p. 30).

 

Quem eram os conservadores no Império?

O primeiro deles, fundador do Partido, foi Bernardo Pereira de Vasconcelos, liberal na origem, foi o líder do Regresso (p. 34). A ele se deve: o Código Criminal do Império, a lei do Supremo Tribunal, o Colégio Pedro II, o Arquivo Nacional, o texto do Ato Adicional (de 1834), o Conselho de Estado: “Seus discursos são autênticas conferências” (p. 34).

Honório Hermeto Carneiro Leão, mineiro, marquês de Paraná, líder da ala moderada, chefe do gabinete de Conciliação, esteve na missão que derrubou Rosas, e fez a pacificação de Pernambuco. “Era autoritário, objetivo, homem que sabia onde ia. Não possuía o talento e a cultura de um Vasconcelos, mas notável fibra de estadista” (p. 35).

Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara, natural de Angola, fez a extinção do tráfico africano e abriu o Brasil ao telégrafo.

Paulino José Soares de Sousa, visconde de Uruguai, ministro da Justiça do Regresso, principal redator das leis que fundaram as bases jurídicas do Segundo Reinado, e autor de dois livros de teoria política: Ensaio sobre o Direito Administrativo e Estudos práticos sobre a administração das províncias.

No plano militar, o Marechal Luis Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, o único duque de D. Pedro II.

Mais adiante, a figura de José Maria da Silva Paranhos, visconde do Rio Branco, chefe do gabinete de maior duração no Império. José Joaquim Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí, diplomata da confiança de D. Pedro. José Antonio Pimenta Bueno, marquês de S. Vicente, autor de Direito Público, um livro fundamental. João Alfredo Correia de Oliveira, o conservador que fez a Abolição, contrastando com seu antecessor, João Maurício Wanderley, barão de Cotegipe, escravagista intransigente. Havia ainda Pedro Araújo Lima, marquês de Olinda, antigo regente, Zacarias de Gois e Vasconcelos e José Tomás Nabuco de Araújo, estes dois últimos evoluiriam para o lado “luzia”.

Dentro do grupo dos Liberais, havia os conservadores, como Ouro Preto, os moderados (Silveira Martins, Saraiva, Dantas), os radicais liberais, como Ruy Barbosa, e os liberais sociais, como Joaquim Nabuco. Dos 36 gabinetes do II Reinado, 16 eram claramente conservadores, 22 eram liberais e um de Conciliação.

 

O Regresso e o conservadorismo nos gabinetes do Império

Os liberais viam com desconfiança o Poder Moderador, ao passo que os futuros conservadores viam com simpatia o reinado de D. Pedro I. Com a abdicação, a radicalização gerou conflitos e a reforma da Constituição. Os liberais queriam a abolição do Poder Moderador, a vitaliciedade do Senado e a adoção de um regime federativo. Esta última foi alcançada com a criação das assembleias provinciais, mas as duas primeiras não vingaram no Ato Adicional de 1834, preparado por deliberação da Câmara em outubro de 1831 (que, de toda forma estabeleceu o final da Regência Trina, efetivada em 1835); o Conselho de Estado foi abolido, para ser restaurado novamente apenas em 1842. Em 1840, finalmente, uma Lei de Interpretação do Ato Adicional impôs diversas restrições aos poderes concedidos às assembleias provinciais, seguido por várias leis “regressistas” a partir de 1941.

JCOT confirma os dizeres de Joaquim Nabuco, em Um Estadista do Império, segundo quem as Regências foram uma verdadeira República, ainda que provisória, mas de fato (p. 53). As revoltas provinciais – entre elas a Farroupilha, em 1837 – serviram para diminuir o ímpeto republicano, tanto que, a partir de 1837, ao final da regência de Diogo Antônio Feijó, reduziram-se notavelmente os adeptos da república e da federação. Foi quando entra para o governo de Araújo Lima o “liberal” Bernardo Pereira de Vasconcelos, com um programa conservador. Ele pronuncia um dos mais famosos discursos parlamentares da história do Brasil, como reproduzido por JCOT:

Fui liberal; então a liberdade era nova no país, esteava nas aspirações de todos, mas não nas leis; o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam, e muito comprometeram; a sociedade, que então corria risco pelo poder, corre risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-la, quero salvá-la; por isso, sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandonei a causa que defendo, no dia dos seus perigos, de sua fraqueza; deixo-a no dia em que tão seguro é o seu triunfo que até o excesso a compromete. Quem sabe se, como hoje defendo o país contra a desorganização, depois de havê-lo defendido contra o despotismo e as comissões militares, não terei algum dia de dar outra vez a minha vos ao apoio e à defesa da liberdade?...  Os perigos da sociedade variam; o vento das tempestades nem sempre é o mesmo; como há de o político, cego e imutável, servir a seu país?  (p. 55)

 

JCOT complementa: “A partir de então ficou havendo um partido conservador. Era o começo do Regresso. (...) O Brasil tornara-se um Estado liberal de direito e as suas instituições não destoariam das que brilhavam nos países mais livres. (...) Mudou-se o sistema de governo, conservou-se o mesmo regime político. Concluíra-se a Revolução Brasileira, que fizera do Brasil um Estado liberal de direito, uma open society, com instituições que permitem o livre jogo das tensões e as reformas sucessivas”. (p. 56)

O Regresso, por alguns chamado de Reação, inspira-se na famosa frase de Bernardo Pereira de Vasconcelos: “É preciso deter o carro da revolução”. Para JCOT foi um período antirrevolucionário ou contrarrevolucionário consciente. A cronologia costuma datar o Regresso do primeiro gabinete conservador, de 23 de março de 1841, se estendendo na Conciliação (1853, com Paulino Soares de Abreu). Mesmo os gabinetes liberais, e foram vários, acomodaram-se às leis regressistas. Os objetivos do Regresso eram dois: assegurar a prevalência da Constituição, com as modificações introduzidas nas Regências, mas preservando o Poder Moderados, que os liberais queriam eliminar, e garantir um governo eficaz, para impedir o desmembramento do Império, o que foi obtido. A recriação do Conselho de Estado, em 1842, e depois o cargo de presidente do Conselho de Ministros, a partir de 1847, contou com um primeiro ministro liberal, Manuel Alves Branco, que embora liberal era, no fundo, um conservador. Com a criação da “terrível figura do presidente”, diz JCOT, “de lá para cá, sempre temos tido presidentes” (p. 65).

Até então, cada deputado votava segundo suas preferências. A partir dessa data, com Alves Branco, criou-se o sistema de “derrubadas”, consolidando o regime dos dois partidos. Surgiram críticos do sistema parlamentarista, como Brás Florentino, em seu livro sobre Do Poder Moderador: ensaio de direito constitucional (Recife, 1864), que condena o sistema de fato oligárquico que se estava criando: a oligarquia ministério-parlamentar (p. 67). O gabinete conservador de 1848, com dois ex-regentes e ministros como Paulino, Rodrigues Torres e Eusébio de Queiroz, “acabou com a confusão no Prata (fim de Rosas), extinguiu o tráfico escravo, fez passar o Código Comercial até hoje em vigor [sic], aprovou uma importante lei de terras, talvez a mais famosa da nossa História, etc.” (p. 68). Em 1853, começa o gabinete da Conciliação, com Honório Hermeto Carneiro Leão, marquês de Paraná, um moderado que apoia o Regresso. JCOT não considera que seja verdadeiramente de conciliação, e sim de moderação, o que não impede uma crise em 1868.

JCOT elogia sobretudo o gabinete do Visconde do Rio Branco, em 7 de março de 1871, não esquecendo a Lei do Ventre Livre, aprovada em maio desse ano, promulgada em setembro:

Quase todos os historiadores consideram de fastígio esta época. O gabinete Rio Branco foi, indiscutivelmente, um período de progresso e de grandes realizações – basta recordar, no campo das coisas práticas e da modernização da vida brasileira, a introdução do sistema métrico e a realização do primeiro recenseamento geral do Brasil. O gabinete Rio Branco, o de maior duração na política imperial, marcaria época. (...) ... o câmbio chegaria a 28 (p. 75).

 

Mas, ele também registra a sequência de problemas surgidos a partir da crise de 1868: o republicanismo, a Lei do Ventre Livre, que “começou a abalar os alicerces sociais” (p. 76), a questão religiosa (ou seja, a religião do Estado, num sistema constitucional que se pretendia liberal), e as condições sociais em geral, no país, que não permitiam eleições do tipo da inglesa, livres da pressão governamental. JCOT resume os grandes problemas surgidos logo depois do término da guerra do Paraguai:

a) Como conciliar o princípio da religião oficial com o da liberdade de crenças?

b) Como fazer a Abolição sem destruir a economia nacional ou estabelecer uma luta do raças, como nos Estados Unidos da América?

c) Como conciliar o ideal do regime parlamentar num país de estrutura social agrária?

d) Como dar autonomia às províncias, sem quebrar a unidade nacional e sem ferir os princípios cardiais do regime imperial?

e) Como manter as forças armadas unidas e coesas, mas afastadas da política partidária, sujeitas que eram a governos partidários?

Certamente não era possível aos políticos do Império resolver todas essas questões. (pp. 77-78)

 

 

Os grandes livros e os grandes temas do conservadorismo brasileiro

JCOT apresenta os grandes livros do conservadorismo imperial, nomeadamente:

1) Ensaio sobre Direito Administrativo, de Uruguai (Paulino Soares de Sousa);

2) Estudos práticos sobre a administração das províncias, de Paulino igualmente;

3) Direito Público Brasileiro e análise da Constituição, de Pimenta Bueno (1857);

4) Do Poder Moderador: ensaio de direito constitucional, de Brás Florentino (1864);

 

Seguidamente, no capítulo IX, apresenta e discute os grandes temas dos líderes conservadores, nomeadamente:

(a) o Poder Moderador: “como montar freios constitucionais eficazes, que obrigassem o governo o respeito à Constituição, que fosse um instrumento de equilíbrio e harmonia entre os poderes” (p. 165);

(b) a centralização: a Constituição “não previa maiores poderes às províncias”, quando os liberais de 1831, na lei de preparação ao Ato Adicional, queriam uma monarquia federativa, ao passo que os saquaremas foram sempre antifederalistas (p. 167);

(c) o Senado e o Conselho de Estado: os liberais sempre combateram as duas instituições, sobretudo a vitaliciedade dos senadores indicados, e também queriam um Conselho de Estado sem funções políticas, ou mesmo abolido, como nas regências (p. 171).

 JCOT também apresenta e discute os “paradoxos” do conservadorismo (capítulo X). Seriam eles:

(a) Abolição, sendo um paradoxo porque os liberais eram abolicionistas e as leis que destruíram a escravidão foram todas obras dos conservadores. Na verdade, havia abolicionismo e escravagismo nos dois partidos, “em função de suas ligações pessoais, convicções íntimas e interesses eleitorais” (p. 178). Desde a abolição do tráfico, obra de um gabinete conservador puro, todas as demais leis foram de conservadores: Ventre Livre, por Rio Branco em 1871; Lei dos Sexagenários por Cotegipe, em 1885; Abolição total, por João Alfredo, em 1888 (pp. 179-180).

(b) Liberais e Conservadores: “A filiação política nem sempre quis dizer identidade ideológica.” (p. 181) No império, famosos liberais eram conservadores, como Alves Branco, Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto, que era uma espécie de anti-Ruy em seu partido.

(c) Igreja: havia no partido “atitudes de franca hostilidade à Igreja” (p. 185).

 

Outros temas abordados por JCOT em seu capítulo XI (“A grande tarefa”), são:

(a) Democracia: muitos conservadores eram liberais políticos e liam os grandes doutrinários estrangeiros da democracia. Mas, “o que todavia configurava a posição ‘saquarema’, além desta sóbria, austera e realista defesa do caráter benéfico, útil e justo da autoridade, era o reconhecimento de que o Brasil... não era a Inglaterra” (p. 191). Eles tinham consciência das diferenças econômicas e sociais, e não apreciavam o “governo das maiorias”.

(b) Unidade nacional: para eles, foi a monarquia quem fez a unidade nacional, acima dos interesses locais, das paixões políticas. O Regresso fez na prática essa unidade, criando uma polícia e uma Justiça de bases nacionais, depois restaurando o Conselho de Estado, que estabeleceu uma jurisprudência uniforme para todo o país.

(c) Sociedade aberta num mundo agrário: também feita e simbolizada pelo imperador, solidamente apoiado pelo Partido Conservador.

(d) Conservadorismo e desenvolvimento: Segundo JCOT, “liberais e conservadores se opunham a respeito de certos objetivos gerais do Estado. (...) grosso modo, os liberais eram mais sensíveis aos motivos ligados à liberdade dos indivíduos em face do Estado, consideravam que a garantia da autonomia das pessoas era... uma questão sagrada e ressentiam a tradicional ojeriza liberal pela autoridade...” (p. 205). “Os conservadores, porém, amavam a comunidade e aceitavam o Estado como uma condição da vida social – o homem não pode viver senão em sociedade e importa que haja uma autoridade capaz de manter a ordem” (p. 206). Por isso, eles aceitavam grandes responsabilidades para o Estado, daí o seu nacionalismo, ao passo que os liberais tendiam a ser “livre-cambistas”. Tavares Bastos, por exemplo, como bom liberal ortodoxo, “não era nacionalista, e queria o Brasil aberto a todos os povos” (p. 208), tanto que ele se batia pela internacionalização do rio Amazonas (p. 209), e também pela navegação de cabotagem aberta aos estrangeiros. Para JCOT, o desenvolvimento do Brasil no século XIX exigia a criação de um mercado interno consumidor, a obtenção de energia a bom preço, a substituição da mão de obra escrava pelo trabalho livre e o protecionismo alfandegário (p. 209). Este último sempre foi conservador, a começar pela equalização de tarifas a 15% para todos os países, realizada em 1828 por Bernardo Pereira de Vasconcelos, um liberal regressista, assim como a Tarifa Alves Branco, de 1844, um liberal moderado, ou conservador, segundo Paulino.

JCOT resume esse capítulo, e termina o livro, por esta frase:

“Enquanto os liberais defendiam os cidadãos contra o poder, os conservadores queriam a grandeza do Império, grande política e econômica.” (p. 214).

O livro ainda contém em Apêndice, uma descrição de cada um dos gabinetes conservadores a partir de 23 de março de 1841, com a nomeada dos ministros, até o de João Alfredo, presidente do Conselho em 10 de março de 1888, o último da monarquia, do Império e do conservadorismo (pp. 215-221).

 

PRA:

Pode-se dizer que, mesmo abolidos pela República, os dois partidos continuaram representados na política brasileira, com uma nítida predominância dos conservadores, transformados em republicanos em praticamente todos os estados da federação. Ruy Barbosa, monarquista federalista, converteu-se em republicano justamente por esse motivo, mas continuou um liberal perfeito, defendendo os direitos dos indivíduos em face do Estado.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 19 de agosto de 2019

 

Governança global, comércio internacional e integração regional - Paulo Roberto de Almeida

Governança global, comércio internacional e integração regional

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Notas para subsidiar palestra a alunos do pós-graduação em Direito, 14/10/2024

Fui convidado, como diplomata e professor, para falar para estudantes de graduação, especificamente sobre três temas: governança global, comércio internacional e integração regional. O primeiro, praticamente não existe, embora tenham havido tentativas ao longo dos séculos; o segundo, existe, e é praticado desde a mais remota antiguidade, sempre com mais intensidade, até chegar a esta terceira onda da globalização, embora tenha se retraído em algumas épocas, inclusive agora, numa fase de globalização fragmentada e de perspectivas sombrias na atualidade e nas próximas décadas; o último, finalmente, pelo menos o que se refere à integração regional latino-americana, também atravessa momentos de fragmentação e de recuo, não por culpa dos mecanismos próprios de abertura econômica e de liberalização comercial, mas por deficiências das políticas nacionais dos países da região.

Não pretende oferecer uma conferência ex-cathedra sobre cada um desses três temas, embora eu possa ter alguma capacidade acadêmica para fazê-lo com alguma suficiência intelectual. Prefiro traçar simplesmente algumas observações pessoais sobre cada um deles, com base em minha acumulação de conhecimento, adquirida ao longo de longuíssimos anos passados em bibliotecas públicas e universitárias e ao abrigo de minha própria biblioteca, e principalmente com base em minha própria experiência de vida, profissional como diplomata e turística como cidadão viajante, sempre que pude percorrer as estradas do mundo, em quase todos os continentes, desde muito jovem e ainda recentemente, como aposentado estudioso.

Vejamos o que eu poderia comentar sobre os três temas, reunindo um pouco do que aprendi e que venho transmitindo em meus trabalhos, artigos e livros, simples notas, muitas disponíveis em meus canais de comunicação, começando pelo blog Diplomatizzando. Também faço algumas recomendações de leituras.

(...)

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4743, 26 outubro 2024, 15 p.

Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/124291515/Governanca_global_comercio_internacional_e_integracao_regional_2024_Paulo_Roberto_de_Almeida);


 

Democracia aqui, e também acolá - Conselho Acadêmico do Livres (Estadão)

 Democracia aqui, e também acolá

Por ANDRÉ PORTELA, ELENA LANDAU, FERNANDO SCHULER, LEANDRO PIQUET, PAULO ROBERTO DE ALMEIDA, NATALIE UNTERSTELL E SANDRA RIOS SÃO CONSELHEIROS DO LIVRES

O Estado de S. Paulo.

27 de set. de 2024

Não há dúvida de que a Venezuela vive sob uma ditadura: falta de liberdade de imprensa, perseguição e assassinato de opositores, além de uma crise econômica severa que gerou o maior fluxo migratório das Américas. Para manter seu poder, Nicolás Maduro alterou a Constituição, controlou o Judiciário e as Forças Armadas, destruiu a economia e sufocou a sociedade civil, expulsando até o escritório de Direitos Humanos da ONU.

Esse cenário geral já estava claro quando o presidente Lula da Silva recebeu o ditador venezuelano com honras de chefe de Estado no Palácio do Planalto, em maio de 2023. Ou quando, em março deste ano, minimizou a situação de María Corina Machado, opositora barrada pelo regime, fazendo pouco caso do desrespeito ao Acordo de Barbados, que visava a garantir condições para a disputa. Na ocasião, ainda comparou a situação na Venezuela com a Lei da Ficha Limpa, que o impediu de concorrer em 2018, rebaixando as instituições brasileiras.

Ao enviar Celso Amorim para observar a eleição, Lula demonstrou conivência com o regime. O processo foi marcado por evidências claras de fraude. Organização dos Estados Americanos (OEA), Uruguai e Argentina, entre outros parceiros regionais, fizeram críticas duras. Assim como o governo de esquerda do Chile, liderado por Gabriel Boric, evidenciando que a defesa democrática pode estar acima de recortes ideológicos. O Brasil se apequenou.

A oposição venezuelana apresentou provas de fraude, corroboradas por observadores internacionais e pesquisadores independentes. Como resposta, a Justiça da Venezuela emitiu mandado de prisão contra o presidente eleito, Edmundo González, agora asilado na Espanha. E como se portou a nossa diplomacia? Não seguiu o mandamento constitucional, que aponta para a defesa da democracia e dos direitos humanos. Assistimos, na verdade, à minimização das violações à liberdade na Venezuela. Infelizmente, a atitude não surpreende.

Desde o final da década anterior, nossa política externa tem se deixado conduzir por concepções de mundo que nos aproximam de ditaduras. Sob o manto de uma iniciativa “contra-hegemônica” em prol do “Sul Global”, há a adoção de uma visão rasa de pragmatismo, que dimensiona incorretamente o interesse nacional. Na companhia dos maiores violadores de direitos humanos do planeta, esse processo penhora as melhores credenciais diplomáticas do Brasil – nossa confiabilidade.

O atual governo parece não entender que nosso respeito na seara internacional era fruto da defesa de princípios, por gerações, mesmo quando esta implicava prejuízos mais imediatos.

A reiterada indiferença em relação aos crimes de guerra na agressão da Rússia à Ucrânia tem sido outro triste exemplo. Ao não marcar a diferença entre agressor e agredido, o atual governo acaba por reconhecer as duas partes como iguais no conflito, em frontal contradição com a Carta da ONU e a própria Constituição brasileira, que consagram o respeito à soberania e à não intervenção nos assuntos internos de outros Estados.

Por absurdo, o presidente brasileiro chegou a sugerir a cessão do território ucraniano em troca da paz. Dessa forma, a ideia de “neutralidade” do Brasil nesse conflito é terrivelmente falsa, na medida em que nega material de socorro emergencial para um lado, e aumenta exponencialmente as importações de produtos do outro.

Há quem justifique o relativo silêncio do Brasil pelos descontos na compra de fertilizantes e óleo diesel, ou pela participação no Brics, “para discussão de problemas globais”. Será mesmo que o cidadão brasileiro aceitaria ser cúmplice das barbáries perpetradas pela agressão russa à Ucrânia em troca de uma ilusória projeção mundial?

Mesmo entre os que estão mais à esquerda do espectro político há dificuldades de justificar certos posicionamentos. Por exemplo, o que diria uma defensora da igualdade de gêneros sobre a aproximação do Brasil ao Irã – um país que persegue e mata mulheres por não seguirem à risca os códigos de “decência religiosa” dos aiatolás?

Na comunidade internacional, o governo brasileiro tem sido visto como indiferente ao conjunto básico de direitos e garantias individuais consolidados em diversos acordos subscritos e ratificados pelo Brasil. Há uma profunda incongruência da atual política externa com respeito a valores e princípios tradicionais de nossa diplomacia. Uma atitude injustificável no contexto de corrosão de regimes democráticos ao redor do mundo e aumento de impulsos autoritários em diferentes países.

Essa ambiguidade com a qual o governo federal tem tratado temas tão caros como direitos humanos poderá ter implicações domésticas. A relativização do valor da democracia no âmbito externo pode levar a uma degradação da confiança na democracia no âmbito interno. Por zelo às nossas liberdades, uma clara revisão de rumos é mais do que necessária.


Além da Hegemonia - Jeffrey Sachs (Savage Minds)

Além da Hegemonia

Jeffrey Sachs:

Savage Minds, 29 de setembro de 2024

https://scheerpost.com/2024/09/29/jeffrey-sachs-beyond-hegemony/

Estamos em uma nova fase da história humana por causa da confluência de três tendências inter-relacionadas. 

Primeiro, e mais crucial, o sistema mundial liderado pelo Ocidente, no qual os países da região do Atlântico Norte dominam o mundo militarmente, economicamente e financeiramente, acabou. 

Segundo, a crise ecológica global marcada pela mudança climática induzida pelo homem, a destruição da biodiversidade e a poluição massiva do meio ambiente, levará a mudanças fundamentais na economia e governança mundial. 

Terceiro, o rápido avanço das tecnologias em vários domínios — inteligência artificial, computação, biotecnologia, geoengenharia — perturbará profundamente a economia e a política mundial.

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PRA: A primeira tendência é pura especulação: o sistema ocidental pode estar sendo contestado por outros regimes, mas ainda não acabou. As duas outras tendências também são especulações: não se sabe bem o que ocorrerá exatamente.



O mundo doentio e perigoso das redes sociais orientadas para o maior lucro: entrevista com o criador do Orkut (Estadão)

 (Grato a Julio Hegedus pela transcrição)

Em entrevista, criador do Orkut diz que futuro das redes sociais é assutador

Por Bruno Romani, do Estadão (30/09/2024)

São Paulo, 29/09/2024 - Orkut Büyükkökten, criador do serviço que leva seu primeiro nome, está de saco cheio de redes sociais. Não que o engenheiro turco esteja cansado de um mercado que tenha ajudado a desbravar quando a internet brasileira era “mato”. Mas ele não vê com bons olhos os rumos que serviços do tipo tomaram nos últimos 10 anos, virando atalho para desinformação, polarização e degradação da saúde mental.

A mudança dos serviços coincide com o período no qual a rede social Orkut esteve desativada. Neste dia 30 de setembro, completa-se dez anos do dia em que o Google encerrou o site que ensinou a muitos brasileiros o que é rede social, comunicação online e comunidades virtuais. Ao Estadão, Orkut refletiu sobre toda as transformações pelas quais passaram as redes sociais durante esse período - e a sua avaliação não é nada animadora.

“Se você olhar para o que aconteceu com as mídias sociais hoje, elas se tornaram extremamente tóxicas. Há polarização política. Há isolamento. Há vergonha, ansiedade, depressão, problemas de saúde mental. E eles estão realmente prejudicando nossa sociedade, e especialmente crianças e a geração Z”, disse ele.

Para mudar, ele afirma que precisamos de líderes que pensam no futuro - e, talvez, a saída esteja fora de redes sociais atuais, que são turbinadas por algoritmos e viraram plataformas de consumo de conteúdo.

Na conversa, ele também lembrou dos momentos finais de sua rede social, falou sobre moderação de conteúdo e também criticou Elon Musk e Mark Zuckerberg pela maneira como administram suas redes sociais. Leia os melhores momentos abaixo.

Estadão: O que você se lembra dos seus últimos dias no Orkut?

Orkut Buyukkokten: Tínhamos mais de 300 milhões de usuários em todo o mundo. Mas a rede nunca se tornou uma grande prioridade para o Google. E tínhamos uma equipe muito pequena que operava principalmente nos EUA e no Brasil. Então, o Google decidiu tornar o elemento social uma prioridade da empresa. Eles queriam adicionar uma camada social em todos os serviços do Google, como a pesquisa, o Gmail e o Google Fotos. Foi assim que surgiu o Google Plus. Quando você pensa no Google, você pensa em pesquisa, você pensa em empresas, você não pensa em rede social. Eu sempre acreditei que uma plataforma social deve ter sua própria marca. Essa foi uma das principais razões pelas quais o Plus nunca decolou. A pessoa que estava no comando do Google Plus cancelou todos os projetos de rede social no Google, para que não houvesse conflito. E o Orkut foi um deles. Foi um momento muito triste.

Estadão: O sr. tentou argumentar para que o Google mantivesse o serviço?

Orkut: Vic Gundotra, gerente geral do Google, estava encarregado dos produtos de rede social da empresa. E o Google Plus era a visão dele. E foi uma decisão executiva dele fechar todos os produtos do Google. Eu não culparia o Google, mas foi uma execução muito ruim da parte deles. O único produto bem-sucedido que tinha um componente social era o Orkut, então eles tentaram muito forçar uma migração para o Google Plus. Obviamente não funcionou. E muitos usuários acabaram migrando para outras plataformas.

Estadão: O que o sr. aprendeu sobre moderação de conteúdo com o Orkut?

Orkut: Para ter boa moderação, você precisa de três componentes. Você precisa de tecnologia, e hoje há muita inteligência artificial (IA) e aprendizado de máquina que podem ser incorporados à moderação. O segundo é a própria base de usuários, a comunidade. Com o Orkut, sempre demos ferramentas para nossa base de usuários sinalizar e denunciar conteúdo questionável. E a terceira parte é ter moderadores humanos. E sabemos como a moderação não deve ser feita. Por exemplo, quando Elon Musk assumiu o Twitter, uma das primeiras coisas que ele fez foi se livrar de todos os moderadores. Durante a covid, houve campanhas massivas de desinformação no Facebook e no Instagram sobre vacinação.

Estadão: O Orkut teve todos os recursos necessários para moderar bem a plataforma?

Orkut: O Orkut moderava muito bem. Você não via nenhum conteúdo como está causando ansiedade, depressão ou abuso ou assédio online. Tínhamos muitas pessoas trabalhando muito duro, como engenheiros, a própria comunidade de usuários e moderadores internos que garantiam que tivéssemos um ótimo conteúdo e conteúdo saudável. As mídias sociais se tornaram extremamente tóxicas. Há polarização política. Há isolamento. Há vergonha, ansiedade, depressão, problemas de saúde mental. E eles estão realmente prejudicando nossa sociedade, e, especialmente, crianças e a geração Z. Se você olhar para o Instagram, alguns dos conteúdos criam problemas de imagem em meninas de 13 anos. E mesmo que a empresa soubesse disso, eles não tomaram as medidas necessárias para se livrar desse conteúdo. Mas a sociedade e a humanidade não têm sido uma prioridade nas corporações de mídia social. Isso trouxe o colapso da sociedade.

Estadão: O que mudou no cenário das redes sociais desde então?

Orkut: Três coisas principais mudaram bastante. A primeira é óbvia: A maioria do consumo de redes sociais está em nossos smartphones. Naquela época, as pessoas usavam desktops ou laptops para acessar o Orkut. A segunda coisa é que as pessoas passavam o tempo compartilhando, postando e enviando mensagens. E foi assim que eles se conectaram, foi assim que eles criaram comunidades, e foi assim que eles promoveram um ambiente saudável. Hoje, você fica rolando o feed e navegando em conteúdo sem sentido. A terceira coisa que mudou foi o surgimento do vídeo. Naquela época, eram textos e fotos. E agora que temos esses dispositivos poderosos é ótima banda larga, vemos as pessoas postando e consumindo muito vídeo.

Estadão: Agora há também a mediação de conteúdo por algoritmos…

Orkut: Exatamente. Esses algoritmos são otimizados para engajamento e monetização. Com o Orkut, o feed era cronológico, certo? Hoje, é reordenando, dependendo se aquele conteúdo específico gera reação. Eles escolhem as postagens que geram ódio e raiva. Então, as redes estão espalhando loucamente ódio, raiva e desinformação. Estão espalhando negatividade porque lucram com a negatividade. Eles lucram com o ódio. E essa é uma das razões pelas quais as redes se tornaram tão tóxicas. É a priorização da monetização sobre a sociedade.

Estadão: Ao criar o Orkut, o sr. imaginava que redes sociais poderiam ser usadas para corromper democracias em todo o mundo?

Orkut: As redes sociais hoje são administradas por aproveitadores. Eles só se importam com dinheiro e poder, certo? Quando você tem um tipo de plataforma que incentiva a polarização política, faz isso porque ela gera mais receita. Esse é o mal dessas pessoas que estão no comando. Com o Orkut, sempre garantimos que nossos usuários estavam felizes, nossas comunidades eram saudáveis. Não tínhamos conteúdo ilegal. O conteúdo era moderado diretamente. A maioria das pessoas nem se lembra que havia anúncios no Orkut, e ele era extremamente lucrativo. Mas sempre foi para melhorar a experiência.

Estadão: Estou com a sensação de que o sr. não está muito feliz com a maneira como Elon Musk e Mark Zuckerberg estão administrando suas plataformas atualmente.

Orkut: Eu acho que ninguém está feliz. Você acha que as pessoas estão felizes com como o Facebook, Instagram, TikTok e Twitter são administrados? Acho que não.

Estadão: O sr. se sente feliz por ter deixado o Orkut antes da chegada da ‘era sombria’ das redes sociais, quando a maiorias dos problemas dos serviços começaram a acontecer?

Orkut: Eu saí por causa da era sombria. Eu vi a era sombria chegando, então eu saí do Google para focar em criar uma plataforma que é sobre positividade, conexão e comunidade. Isso é ótimo. Na Hello, nosso maior desafio foi: Podemos criar uma plataforma que realmente faça as pessoas felizes e promova conexão e comunidade? Eventualmente nós acertamos. As mídias sociais são projetadas em torno de publicidade, corporações e lucro. Não são otimizadas em torno de felicidade, positividade, reunir pessoas e criar comunidade. E é por isso que tem sido tão prejudicial.

Estadão: Você usa alguma rede social atualmente?

Orkut: Claro, estou na maioria das redes sociais.

Estadão: Qual é a sua favorita?

Orkut: Eu não tenho uma favorita, e é por isso que estou lançando uma nova.

Estadão: Há espaço para novas redes sociais?

Orkut: Claro. A geração Z está procurando experiências autênticas. Eles não gostam das plataformas atuais. Os jovens agora não tiram selfies, por exemplo. É muito fascinante.

Estadão: O sr. está acompanhando a disputa entre Elon Musk e o Supremo Tribunal Federal aqui no Brasil?

Orkut: Claro.

Estadão: Qual é a sua opinião?

Orkut: Eu não aprovo a maneira como Elon administra o Twitter porque é só monetização. E ele age como se não se importasse se há terrorismo, crueldade animal, pornografia infantil. Ele não parece se importar com essas coisas. Porque se ele realmente se importasse, ele não teria se livrado da equipe de moderação. É muito importante se importar com a comunidade, ter empatia e compaixão. Eu não acredito que Elon esteja focado nas coisas certas. Não surpreende que o X tenha sido banido.

Estadão: Qual é o futuro das redes sociais?

Orkut: O futuro das redes sociais é muito assustador agora por causa desse monte de IA. Tivemos um salto gigante com o ChatGPT e a IA generativa. Resultado: um monte de fotografias no Facebook geradas por IA. A maioria das pessoas nem consegue diferenciar. Se você olhar para o Instagram, há muitas contas falsas onde todas as imagens são geradas por IA. E elas estão respondendo a comentários, que também são gerados por IA. E estamos recebendo mais e mais spam de IA. Você quer falar com máquinas quando está em uma plataforma social? Ou você quer falar com pessoas reais? E estamos apenas vendo a ponta do iceberg. Vai ficar muito pior no futuro próximo. Veja a pesquisa do Google. Parece estar muito pior comparado 10 anos atrás. Mas não é o algoritmo que está pior. O algoritmo é melhor. Mas a internet está muito pior agora porque há tanto spam e desinformação. Reputação vai ser uma das coisas mais importantes nas mídias sociais daqui para frente.

Estadão: Há alguma luz no fim do túnel?

Orkut: Sim. Precisamos de líderes que realmente se importem em criar um futuro melhor. Eu me importo com o futuro. Eu me importo com a sociedade. Eu me importo com nossos filhos. Eu me importo com nossos netos. Você quer que seus filhos conversem com chatbots no smartphone? Ou você quer que eles saiam e brinquem com outras crianças? Precisamos nos certificar de que melhoramos o capital social. E melhoramos o capital social passando tempo com as pessoas. Precisamos sair para jantar e conversar durante as refeições. Precisamos nos encontrar pessoalmente. Se você olhar para a geração X e os millennials, a principal forma de comunicação era por chamadas telefônicas, não pelo smartphone. Para a geração Z, a comunicação é online. E precisamos mudar isso. Há muitas coisas que podemos fazer como sociedade e também como governo. E muitas dessas coisas são fáceis. Por exemplo, a idade de uso do telefone celular precisa ser aumentada. Jovens de 10 anos não deveriam usar celular ou TikTok. Podemos proibir telefones celulares nas escolas, certo? O que podemos fazer também é apoiar o jornalismo. Isso é muito importante.

Estadão: E qual é o futuro para você? Há chances do Orkut retornar?

Orkut: Não posso falar porque não anunciei nada oficialmente. Mas estou levando toda a experiência que tive com as quatro plataformas sociais que lancei: Club Nexus, InCircle, Orkut, Hello. E vou lançar uma nova rede social que é toda otimizada em torno de comunidade e conexão, mas não tenho uma data.


Putin is chasing down every dissident, anywhere in the world - Lilia Yapparova (NYT)

Putin Is Doing Something Almost Nobody Is Noticing

Ms. Yapparova is an investigative reporter at Meduza, an independent Russian news outlet. She wrote from Riga, Latvia.


In November 2022 my editors asked me to be careful about what I ate and stop ordering takeout. Initially, I didn’t think much of it. But I soon realized the importance of their advice when, just one month later, my colleague Elena Kostyuchenko discovered she had been poisoned in Germany, in a probable assassination attempt by the Russian state.

Such stories have become routine. Last year an investigative journalist, Alesya Marokhovskaya, was harassed in the Czech Republic; in February the bullet-riddled body of a Russian defector, Maxim Kuzminov, was found in Spain. In both cases, the Kremlin was assumed to be involved. Russian opposition figures know well that even in exile they remain targets of Russia’s intelligence services.

But it’s not just them who are in danger. There are also the hundreds of thousands of Russians who left home because they did not want to have anything to do with Vladimir Putin’s war or were forced out, accused of not embracing it enough. These low-profile dissenters are subjected to surveillance and kidnappings, too. Yet their repression happens in silence, away from the spotlight and often with the tacit consent or inadequate prevention of the countries to which they have fled.

It’s a terrifying thing: The Kremlin is hunting down ordinary people across the world, and nobody seems to care.

I’ve been gathering information about Russia’s targeting of exiles since the start of the war in Ukraine. My sources range from people who survived abductions and surveillance to the leaders of Russian diasporas and the few human rights activists helping them. Many spoke to me on the condition of anonymity in order to discuss Russian repression without fear of reprisal. The Kremlin, of course, denies any involvement, mostly saying that it cannot comment on what is happening to people in other countries. But the evidence is piling up.

There’s a vocal coach arrested in Kazakhstan at Moscow’s request who went mad in a local jail. A caregiver for the elderly detained in Montenegro on Russian orders, carried out by Interpol. A schoolteacher detained by Armenian border guards after telling her students about Russia’s crimes in Bucha. A toy shop owner, an industrial climber, a punk rocker — these are some of the people caught in the Kremlin dragnet, all over the world.

And it is a truly global operation. In Britain exiles are being followed, and London opposition events are crawling with agents “who stick out like a sore thumb,” Ksenia Maximova, an anti-Kremlin activist there, told me. Russian intelligence officers have been sent to monitor the diasporas in Germany, Poland and Lithuania, according to Evgeny Smirnov, a lawyer who specializes in treason and espionage cases. Other emigrants have been stalked and threatened in Rome, Paris, Prague and Istanbul. The list goes on.

Some of the methods are especially insidious. Lev Gyammer, an exiled activist in Poland, has been receiving texts for two years, supposedly from his mother. “Levushka, son, I miss you so, when will you visit me?” Another reads, “Son, I’m waiting for you. Come back soon.” He ignores them: His mother, Olga, died five years ago. 

Another Russian expatriate — whose elderly parents are very sick — chose to believe it when his parents’ nurse of many years told him, over the phone, of a fire in their apartment. He rushed home from Finland and was immediately taken to prison and tortured, according to Mr. Smirnov. Of course, there never was a fire.

Those who cannot be tricked back to Russia are subjected to surveillance. An employee of an organization that supports L.G.B.T.Q. people was walking her dog around her neighborhood in Tbilisi, Georgia, when she noticed that she was being followed by a drone. It was an evening in early May — two years since she’d fled Russia with the rest of her colleagues. She hurried back to hide in her apartment but could still hear the buzzing. She followed the noise to the balcony and came face to face with the device, hanging there within arm’s reach.

Host countries are often complicit. In some places, local police officers even conduct surveillance on behalf of their Russian colleagues. In Kazakhstan local special services are helping Russia catch draft dodgers. In Kyrgyzstan the police are using facial recognition technology to search for those wanted by the Kremlin, forcing people to leave cities for the mountains, according to a host of advocacy groups. When not assisting Russian surveillance, the local authorities are sometimes slow to stop it.

This was the case with Sergei Podsytnik, a journalist investigating military links between Russia and Iran. In March of this year, still elated by the news that a drone factory he’d uncovered was getting sanctions imposed on it, he was returning to his room in Duisburg, Germany. Before going into exile, he was part of Alexei Navalny’s opposition network and picked up the habit of making sure he wasn’t being followed. Outside his door, Mr. Podsytnik casually glanced over his shoulder — and saw, peeking out from around the corner, a stranger following his every move.

One of Mr. Podsytnik’s colleagues also noticed that he was being watched by the same man, but it took them two appeals to secure an investigation from the local authorities. The police in Duisburg simply could not comprehend that it was possible for Russia-sponsored surveillance to be happening in their town, it seemed. The case was soon closed without finding the offender, which might’ve been a mistake. Duisburg is one of the places, according to the Dossier Center, a London-based research organization, from which agents of the Russian military intelligence unit have carried out sabotage abroad.

Mr. Podsytnik is safe now, but not everyone has been so lucky. Exiles who’ve experienced similar surveillance sometimes end up disappearing without a trace — be it from the doorstep of an embassy in Armenia or a rural church in Georgia — only to turn up in Russian detention centers. It is impossible to gauge how often this is happening. Yet we can assume, my sources say, that there are many more cases like that of Lev Skoryakin, who was taken from his hostel in Kyrgyzstan last October, shoved into a car and deported to Russia. We just don’t know about them.

Many Russians abroad are vulnerable and lack protection. In the summer of 2023, civil society groups petitioned the European Parliament to help with the legalization of people who refused to fight in Mr. Putin’s army; there was no meaningful response. Political asylum is routinely denied not only to draft dodgers but also to activists — sometimes “with monstrous arguments that the situation in Russia is normal and you can count on a fair trial,” Margarita Kuchusheva, an immigration lawyer in Cyprus, told me.

Antiwar exiles are supported by a handful of human rights organizations, perennially on the brink of closing because of lack of funds. Russia, by contrast, lavishes resources on the exiles as it accuses them of treason and terrorism and, driven by paranoia, pursues them all over the world. They are at immediate risk. But the greater danger is that the world forgets altogether about these people — and why they left their country in the first place.

Lilia Yapparova (@lilia_yapparova) is a special correspondent at Meduza, an independent Russian news outlet.

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