Uma reconstrução histórica de uma pequena parte da milenar civilização judaica que os bárbaros do século XX tentaram eliminar pela via genocida do Holocausto, mas que resistiu e que reaparece aqui na reconstrução histórica de um dos seus descendentes, cujos antenati conseguiram emigrar para o Brasil, um deles meu amigo e aluno João Pedro Levy:
Rodes: do florescimento aos vagões que não retornam
João Pedro Levy
(Recebido em 24/04/2025)
A Ilha de Rodes iniciou o século XX pertencendo ao decadente Império Otomano.
O século XIX trouxe importantes inovações tecnológicas para a vida do continente europeu: a Revolução Industrial abriu trilhos de trem que conectaram distâncias em tempo recorde. Esse ritmo não poupou a ilha otomana: no fim do século, Rodes começou a receber a influência do continente de maneira progressiva. A comunidade judia da ilha, que a dividia com populações gregas, árabes e outros povos – como era comum no Império Otomano - não passou ilesa desta tendência.
Durante as duas primeiras décadas do século XX, a comunidade viu seus filhos e filhas saírem em busca de aproveitar as benesses do desenvolvimento de forma mais intensa noutros espaços. Brasil, Argentina, Estados Unidos, Congo Belga (atual Zaire), África do Sul, Egito e Canadá foram espaços muito procurados por esses judeus sefarditas. Tradição e modernidade testavam os limites para a inserção desses imigrantes nas novas sociedades das quais passavam a fazer parte. Levaram consigo a religião - em torno da qual tinham aprendido a viver em Rodes, pois o judaísmo ditava como as pessoas acordavam até a hora de a pessoa se deitar, e tudo o que havia durante estes dois marcos -, as roupas do corpo, as receitas de comidas típicas e o Ladino, a língua que era falada pela comunidade no seu dia a dia.
Os anos 1900, 1910 e 1920 modificaram profundamente a ilhota: ruas, carros, máquinas, navios a vapor. Franceses aproveitavam a influência estendida sobre os territórios do Império Otomano e levaram a Rodes uma Alliance Française: os judeus da ilha, então, tinham a possibilidade de estudar no modelo laico criado na época de Napoleão, o chamado lycée, e entendiam um pouco melhor o que ocorria naquele mundo em transformação
Depois deste contexto prévio, nossa história começa seu rumo até o fim: em 1923, depois de 4 anos terminada a Primeira Guerra Mundial, o Tratado de Lausanne, imposto ao Império Otomano – que ficou no lado perdedor daquele conflito -, cede a soberania da Ilha de Rodes ao Reino da Itália.
A Itália vivia um regime monárquico com um Parlamento que passou, em pouco tempo, a ser controlado por Benito Mussolini. O regime fascista estava no poder desde 1923. Na Alemanha, Hitler ainda engatinhava neste momento.
O Reino da Itália construiu um objetivo: os territórios, no mar Mediterrâneo, que passaram à soberania italiana, mas estavam longe da península itálica original, deveriam passar por um processo de “italianização”.
Esse processo aumentou ainda mais a chegada da “modernidade” à ilha: rádios com músicas italianas, dança, revistas, livros dos grandes autores italianos. Abre-se uma “Scuola”, regida por mulheres pertencentes à hierarquia da Igreja Católica, e a vida da comunidade judaica da ilha se torna ainda mais influenciada pelo modelo de educação do continente. Muitos pensam em concluir estudos nas faculdades da Itália.
Algumas pessoas da administração do Estado italiano mudam-se para Rodes, tornando-se mais um ponto de encontro da população local com influências de fora. Italianos ricos se instalam na ilha e se encontram com a população da comunidade judaica, geralmente jovens, em pontos fora da cidade murada, onde a juderia se encontrava. São restaurantes, praias, bares. Alguns se apaixonam. Parecia que a ilha vivia realmente um momento de florescimento.
Porém, a década de 1930 mudará totalmente este cenário.
Em 1933, Hitler ascende ao poder na Alemanha e faz avançar, no país, a ideologia nazista. Parte importante deste movimento se concentrava em designar ao povo judeu um estereótipo de sub-humanidade e de o identificar como causador dos males maiores daquele momento. A fome vinda da depressão econômica que arrasava o mundo desde 1929, o desemprego, a derrota na Primeira Guerra, “retrocessos” entendidos na cultura que se instaurou na Alemanha depois da queda do Segundo Reich, o Império Alemão. Essas culpas e muitas outras foram cuidadosamente pensadas para criar, na concepção de todo um povo, um horror a um povo. O caminho para a sua posterior eliminação não começou nos campos de concentração e, sim, com a normalização quotidiana da violência verbal, física e da marginalização do povo judeu, às quais muitas pessoas se acostumaram e ignoravam seu acontecimento.
Nas vésperas da Segunda Guerra, em 1938, o Reino da Itália e a Alemanha nazista já tinham iniciado o processo de aproximação e de formação de uma aliança contra inimigos em comum.
A Alemanha nazista, contudo, tinha muito mais capacidade econômica e militar do que seu aliado italiano, e a influência do regime nazista na Itália foi inevitável.
Em 1936, Mario de Vecchio é apontado como governador do Dodecaneso, região admnistrativa onde Rodes se encontrava. Germanófilo, o governador começa a atacar direitos da comunidade judaica de Rodes: ordenou que as lojas dos judeus ficassem abertas no shabbat, nas festas do calendário e fechou a escola judaica (Yeshivá). Proibiu o abate de animais segundo os rituais judaicos e transformou locais importantes para a vida judaica em instituições públicas. Chegou a exigir a mudança do cemitério judaico antigo e usou lápides judaicas para construir sua nova casa. Stella Levi comenta que foi um momento de muita dor aquele de exumarem os corpos da comunidade, pois, no judaísmo, o repouso do falecido é visto como extremamente sagrado e sua profanação, algo impensável.
Em 1938, leis raciais são passadas na Itália e os judeus, que antes gozavam de direitos de cidadania como quaisquer cidadãos italianos, passam a ser identificados como cidadãos de segunda classe. Sua educação, seu lazer, sua religião e muitos aspectos ligados à manutenção de sua dignidade são repentinamente retirados de suas vidas. Não viram, porém, que esse processo era o início de uma aproximação da tendência que se desenhava no continente para os judeus que lá se encontravam. Essas leis proibiram que os judeus tivessem propriedade, contratassem não judeus, e a população não judaica não podia recorrer a farmacêuticos ou médicos judeus.
Uma lei estipulou que judeus chegados à ilha depois de 1919 deveriam deixá-la e isso afetaria mais de 500 judeus naquele momento. Uma comitiva judaica vinda do atual Estado de Israel se reuniu com De Vecchi para evitar esse deslocamento.
E os judeus não entenderam o que ocorria? Achavam-se muito distantes, afinal, Rodes é uma ilha mais próxima da Turquia e do Oriente Médio do que da maioria dos países europeus, e pertencente à soberania italiana, o que parecia garantir uma certa imunidade às políticas nazistas, embora houvesse a aliança entre os países. Além disso, a comunidade era pequena: devido às imigrações contínuas antes citadas, em 1944, pouco mais de 1600 judeus permaneciam na ilha. Para quem estava lá dentro, embora a vida parecesse estar mais difícil devido aos tempos de guerra, as notícias que chegavam do continente sobre o tratamento dos judeus pareciam exageradas e pouco prováveis de atingir de maneira contundente os habitantes da ilha. No seu livro, “Cem sábados”, Stella Levi comenta que ninguém se preparou realmente, porque não havia a perspectiva de que a deportação ocorresse e que, durante muito tempo, esse pensamento assombrou os sobreviventes, como se eles pudessem ter feito mais, salvado mais gente, saído enquanto era tempo. Não tinha como eles saberem disso. Fizeram o que puderam.
Nos anos seguintes, conforme a Segunda Guerra avançou para o momento em que a derrota de Hitler já era iminente, alguns eventos perturbaram a vida da ilha: a abertura de frentes de combate contra tropas nazistas e fascistas se tornou prioridade depois de 1943, quando apenas a frente contra a União Soviética, no Leste Europeu, estava conseguindo avanços dentro dos territórios dominados pela Alemanha nazista. Bombardeios começam a atingir a ilha de Rodes devido a esses conflitos entre tropas do Eixo (Itália e Alemanha) e Aliados (principalmente Império Britânico e Império Francês). Casas são atingidas e a principal sinagoga da juderia é avariada por estes bombardeios. A guerra se torna mais palpável para a vida dos judeus.
Começa também neste momento o aumento da presença de nazistas na Ilha: quando Benito Mussolini cai, em 1943, a apreensão da Alemanha nazista em relação à posse de pontos estratégicos no Mediterrâneo aumenta e, então, eles tomam a Ilha de Rodes, numa batalha chamada “Batalha de Rodes”, feita contra tropas italianas que tinham escolhido se manter fiel ao rei italiano e passaram a identificar os alemães como inimigos.
O general alemão Ulrich Kleemann é enviado a Rodes, em 1943, e monta uma guarnição com mais de 8 mil homens. Rodes vê se aproximar a guerra e a presença nazista.
Neste momento, o destino da comunidade já estava mais do que escrito, embora sua população o desconhecesse.
Anteriormente entendidos como amigos da comunidade judaica, os italianos, que conviviam com a comunidade antes das leis antijudaicas, fizeram a recolha de dados demográficos da comunidade judaica e compartilharam com os alemães, que dispunham de todas as informações necessárias para conceber a deportação.
Em 1944, na iminência da derrota, Adolf Eichmann, responsável pela execução da “Solução Final”, pede que as comunidades judaicas do Mediterrâneo sejam deportadas para o continente. Rodes estava incluída.
Em julho de 1944, um comunicado chega à comunidade judaica de Rodes pedindo que todos recolhessem seus pertences e se apresentassem, no dia seguinte, no estádio da Ilha.
A comunidade assim o fez, ignorando que isso se tratava da preparação para sua saída, sem retorno, da ilha.
Durante o deslocamento da comunidade, os nazistas tocaram sirenes de guerra para garantir que as outras comunidades da ilha não vissem a movimentação que ocorria.
Apenas 39 judeus da comunidade conseguiram ser salvos, porque tinham cidadania turca e o embaixador turco conseguiu intervir em favor da sua não deportação. Mais de 1600 judeus, contudo, não tiveram o mesmo destino, e embarcaram em navios abarrotados de pessoas em direção, primeiro, a Atenas.
O cruzamento até a cidade durou uma semana. Durante este período, todas as necessidades físicas dos judeus começaram a ser negligenciadas, com sede, fome, frio e violência física sendo empregada contra todos.
Ao chegarem ao continente, foram embarcados em comboios com direção a Auschwitz. Para eles, contudo, foi dito apenas que, em Atenas, sua cidadania turca seria contestada. Não era verdade.
Durante o traslado até Auschwitz, muitos judeus morreram devido às condições insalubres dos comboios. Não havia água, todos tinham de fazer suas necessidades dentro do espaço do trem, sem qualquer privacidade. Não havia comida.
Os corpos daqueles que morreram eram apenas jogados para fora do trem, quando esse parava em alguma estação, geralmente por motivos administrativos ou para reabastecimento dos soldados nazistas que acompanhavam os comboios.
Chegam a Auschwitz em agosto de 1944.
Mais de 2/3 daqueles que chegaram estarão mortos nas câmaras de gás em menos de duas horas depois da chegada ao campo de concentração, depois de passarem por um processo de escolha que distinguia pessoas capazes de serem usadas como mão de obra escrava. Idosos e crianças eram sumariamente enviados à morte. Passavam aqueles que eram adolescentes ou nos seus vinte anos.
Nunca mais a comunidade judaica de Rodes se reergueu depois. Seus descendentes, contudo, mantêm viva a memória de um lugar onde muita alegria sempre teve espaço e um modo de vida muito particular embalou sonhos e vidas por gerações.
Nunca mais!
Dedico este texto ao meu trisavô, Benzion Levi, e à memória de sua mãe, Bulisa Turiel, sua irmã, Estrea Turiel, seu cunhado, Moshe Hugnu, seu tio, Joseph Turiel e sua tia, Ricca Turiel.
Tenho esta foto de minha tataravó, Bulisa Turiel, que foi uma das deportadas da comunidade a perecer em Auschwitz
Esta é a filha da Bulisa, Estrea Turiel, também morta em Auschwitz.
João Pedro Levy
Niteroi, 24/04/3025
(Postado, com extrema afeição e afinidade intelectual, por Paulo Roberto de Almeida, neste espaco de inteligência histórica, que é o blog Diplomatizzando).
PRA:
Mensagem final de João Pedro Levy a seu amigo e outrora professor, que agora aprende com ele, uma pequena parte dessa história trágica e emotiva:
"Muito obrigado pelo interesse nesta história que minha família e eu começamos a tomar conhecimento e a escrever.
Será a primeira vez que alguns bisnetos da Bulisa, ainda vivos, saberão o que ocorreu com ela. Estamos reintegrando a memória da família a essa memória coletiva maior. Minha pesquisa se iniciou há apenas 5 anos.
Há um museu dedicado à história da comunidade judaica de Rodes na Califórnia. Já mandei para eles fotos da minha família que veio para o Brasil. Temos chance de aparecer em algum calendário enviado à comunidade anualmente para marcar a virada do ano judaico.
Quero muito visitar as instalações do Yad Vashem algum dia para ver os arquivos de minha família." JPL a PRA (24/04/2025)


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